OLHOS DE FOGO- PARTE 3 DE 3

A Escassez

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Como vimos no episódio anterior, começavam a rarear as fontes de alimento "dignas" de seu triste fim. Olhos de fogo sentia que sua missão estava prestes a ter seu termo. Já não estava muita caça dentro dos padrões exigidos pelo seu senso moral e, no entanto a fome continuava a fazer-se presente e seu copo a sofrer a macabra transformação sempre que acabava o efeito da energia acumulada.

Restavam-lhe poucas alternativas, à bem da verdade, e levado pelo sentimento ainda latente da autopreservação resolveu buscar a caça no cativeiro.

Quando a noite cobria a cidade, dirigiu-se ao presídio de segurança máxima mais próximo, mais pela necessidade de alimentar-se do que pela sede de justiça que o guiara até então, mas esta era uma opção que lhe parecia menos injusta já que os que ali estavam eram monstros ainda maiores do que ele. Passou pela segurança qual um fantasma, sem ser notado pelos guardas da muralha ou pelos agentes penitenciários. Procurou o pavilhão dos detentos mais perigosos e, cela após cela realizou seu tétrico banquete, incinerando ”às dúzias” aqueles que representavam perigo à sociedade mesmo de dentro de suas celas. Os gritos de terror e o cheiro de carne queimada espalharam-se pelos corredores da penitenciária, corpos em chamas retorciam-se no chão das celas, os agentes penitenciários, desarmados, não tinham como esboçar qualquer reação e não estavam nem um pouco dispostos a sacrificar suas vidas para tentar defender os detentos.

Os guardas da muralha, portando fuzis e metralhadoras não tinham acesso ao que ocorria do lado de dentro da prisão. Acionaram a polícia de choque e os bombeiros, mas, quando estes chegaram já era tarde demais para os presidiários. O estrago era enorme, os bombeiros tiveram imenso trabalho para debelar o fogo que se espalhava dos corpos para os colchões e outros objetos e roupas nas celas.

A comoção entre a população foi generalizada, não porque nutrissem alguma simpatia pelos detentos, mas, pela maneira como as coisas transcorreram e se repetiram em outros tantos presídios. O fato dos ataques agora se darem nas prisões revelava que nosso herói já não encontrava na rua a sua fonte de vingança ou justiça. O medo do próximo passo era o que faziam com o que até então "herói" voltasse a ser motivo de medo e pânico entre a população, cada vez mais insegura quanto ao seu próximo passo. Olhos de Fogo, na sua forma humana acompanhava os noticiários e as discussões sobre a sua atuação, sentia-se incomodado pelas palavras e pelo medo da população... Por vezes sentia-se traído por aqueles que afinal das contas julgava proteger. Estava, por demais, confuso com tudo aquilo e já não encontrava uma solução para o seu impasse.

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Olhos de fogo deixou-se ficar deitado na caverna onde houvera iniciado a sua transformação. Sua mente divagava por todos os acontecimentos dos últimos meses, o terror que inspirara às pessoas, sua ascensão à condição de um quase herói, sua saga justiceira, seus ataque impiedoso aos corruptos e aos criminosos.

Não mais via razão para sua atividade e para satisfazer a sua fome de energia e nem a sua seda de justiça. A sociedade estava limpa, como jamais estivera de há muito tempo.

O único medo que as pessoas tinham agora, ironicamente, era dele mesmo. Pensou na natureza humana e na volatilidade de suas ideias e ideais, fora de vilão a herói e agora voltava ao seu status original. As pessoas temiam que ele aparecesse e atacasse algum inocente.

Pensou em sua esposa, nos seus filhos e nos gêmeos que estavam a caminho.

Havia deixado em casa uma razoável quantia em dinheiro que havia tomado de uns quantos facínoras quando os destruiu com seus olhos flamejantes. Estava tudo muito bem escondido e jamais dera conhecimento de nada que lhe acontecia sequer à sua esposa.

Ao deixar sua casa, dias atrás, deixara uma carta para a esposa explicando tudo e dando a localização do numerário. Devia ser o bastante para ela iniciar uma nova vida em algum lugar melhor que o lixão e dar conforto às crianças por um bom tempo. A carta foi propositalmente colocada em um lugar onde sua amada não a visse tão rapidamente.

Dava por concluída a sua missão nesta vida, sentia a fome o devorar por dentro, mas, recusava-se a tirar vidas inocentes para preservar a sua própria. A luta que travava, consigo mesmo, era hercúlea, mas não podia sucumbir à tentação.

Acorrentou-se a uma pedra e fechou os cadeados cujas chaves ele havia deixado entre os detritos do lixão. Sua única companhia agora era ele mesmo e seu diário, onde anotava a sua saga desde os fatídicos acidentes que o levaram a se tornar no que era agora.

No escuro da caverna seus olhos foram aos poucos perdendo a intensidade das chamas.As brasas iam se recobrindo de cinzas enquanto seu corpo se consumia como última fonte de energia que lhe restava.

Suas mãos, tremulas, escreviam as últimas palavras enquanto que a sanidade o permitia. Terminou com um adeus e um pedido de desculpas à família dos inocentes que atingira ao início de sua jornada de monstro. Um último brilho piscou em suas órbitas descarnadas e partiu para prestar contas de seus atos ao criador.

Semanas depois seus restos mortais foram encontrados juntamente com seu diário. A esposa já havia partido atendendo à sua última vontade, levando no ventre os dois filhos concebidos meses atrás. As manchetes nos jornais estampavam o fim de Olhos de Fogo e sua história foi explorada até que nada mais restasse para ser dito.

Chegava ao fim uma era. O futuro aguardava novas histórias.