Tempo Perdido

O brilho do sol atingiu seus olhos de maneira brusca. Ele sentiu aquela pontada natural quando se é atingido por uma forte luz após muito tempo no escuro. Abriu os olhos de forma pesarosa. Não ouviu o relógio despertar e sentiu que havia perdido a hora mais uma vez. Esticou o braço para fora do cobertor e não alcançou o criado-mudo. Deixou que a mão caísse de forma pesada e ficou ali daquele jeito. Sua percepção estava demorando a voltar mais do que o usual e a cabeça doía de forma latejante e constante. As pálpebras doídas forçavam-se ao máximo para abrir, enquanto a mão voltava ao trabalho de procurar o relógio perdido. Pensava na possibilidade de comprar um novo, depois daquela semana inteira chegando atrasado ao serviço. Pela segunda vez, não conseguiu achar a pequena mesa. A cabeça chacoalhava enquanto, lentamente, ele se esforçava para levantar. Os braços fraquejaram e o derrubaram, fazendo surgir uma dor incomoda na lombar. Deu um grito seco e doloroso, levou a mão às costas e sentiu o estômago revirado.

Um braço carcomido e flácido surgiu a sua frente. Por um segundo, pensou em todos os tipos de coisas que via em seus filmes de terror, e seu coração disparou. As fortes pontadas no peito anunciavam que aquilo estava tomando um rumo sem controle. Tentou conter a respiração e então ouviu uma voz, seguida de uma garota que entrou no quarto.

– Vovô! Não fique se esforçando! Quer cair e quebrar o nariz? – lhe lançou um sorriso simpático e jovial. Segurava uma bandeja com uma comida insossa sobre ela.

A menina tinha os cabelos negros e a pele branca. O rosto angelical lembrava o de uma boneca, com os olhos verdes, grandes e inquisitivos. Aparentava ter 14 anos, e mostrava o senso de responsabilidade de uma garota mais velha. Por um instante, ele sentiu atração pela menina, mas então, a ficha caiu e ele percebeu a palavra que havia saído da boca dela.

– Vovô? – sentou-se olhando para ela e congelou.

Os braços moles e caídos indicavam uma idade avançada. Tinha mãos cansadas e calejadas pelo tempo. Percebeu que a cama já não era mais a sua cama, e que o local se assemelhava a um hospital. Também notou as agulhas em seu braço e mão, jogando uma solução intravenosa qualquer. Passou os dedos pelo couro cabeludo e sentiu que os ralos fios de cabelo, cobertos de caspas, eram esparsos. Parecia estar ficando careca há um bom tempo.

– Tudo bem com você vovô? – ela colocou a bandeja em uma mesa próxima e se aproximou do velho. Colocou as mãos na testa dele enquanto ele a olhava de forma incrédula. – Não parece ser febre, mas você está bem estranho.

– Eu não sou seu avô... – as palavras saíam baixas e quase irreconhecíveis.

A garota levou as mãos à boca e começou a chorar. As lágrimas escorriam em torrente enquanto ela soluçava avidamente. Ele apenas a fitava, com olhos baços e perdidos. O foco da visão oscilava e às vezes, não conseguia distinguir a silhueta parada a sua frente. Seus pulmões se encheram em um sopro de raiva, e a rajada saiu de uma só vez.

– Porque você está chorando? Isso é alguma brincadeira comigo? Eu já sei quem fez isso! Uma merda de brincadeira de mau gosto!

– Eu vou chamar a mamãe! – o choro se intensificou enquanto ela virava as costas e corria porta afora.

Ele tentou retirar os aparelhos, mas suas forças que haviam vindo de uma só vez antes, o abandonaram, tirando o último resquício do que lhe restava. Caiu novamente e sentiu-se incapaz de levantar. Conseguia perceber o sangue correndo por suas veias, em uma força cada vez maior, elevando seus batimentos cardíacos aos poucos. O peito pulsava como um tambor. Subindo e descendo em lufadas irregulares. A dor pontiaguda foi o que veio a seguir, enquanto a suposta velhice contribuía para um potencial ataque fulminante. Viu a vida esvair-se em frente aos seus olhos, e pensava no que deixou para trás. Não acreditava que aquilo realmente poderia ter acontecido. Ele não poderia ter perdido mais de 50 anos de sua existência, e de repente, ter se dado conta quando morreu. Seria uma loucura, e ele sabia que não estava ficando louco. Era apenas um pesadelo, um pesadelo de muito mau gosto, mas quando acordasse tudo ficaria bem novamente.

O som dos aparelhos indicavam o aumento da pressão e isso só piorava sua situação. O bip bip incessante parecia um relógio contando o quanto ainda restava, e estava desperdiçando as horas rápido demais. Ouviu o barulho de pessoas entrando na sala e conseguia vê-las de relance. Os vultos se amontoavam à sua volta enquanto ao fundo, choros eram audíveis. Conseguiu olhar de soslaio, e lá, parada com os olhos lacrimejados, um semblante cansado e um corpo ainda jovem, estava o amor da sua vida. Sua namorada que não havia envelhecido o mesmo que ele, e essa foi a certeza de que aquilo era um sonho. A dor impedia que conseguisse emitir qualquer som, e já podia sentir os músculos relaxando, perdendo os movimentos e morrendo, assim como ele também estava. Os médicos se movimentavam a sua volta, mas ele apenas tinha olhos para sua amada. Juntou o resto de fôlego que ainda tinha, levantou-se de forma brusca e falou em alto e bom tom: "Vejo você quando eu acordar!"

Todos pararam para observar enquanto o corpo caia pela última vez. O relógio contador emitiu seu ruído infinito enquanto as linhas na tela verde pararam de oscilar. Tentaram, inutilmente, revivê-lo, mas seu coração havia desistido e ele igualmente. Ao fim, acreditou que era apenas um devaneio.

De frente para o que um dia fora seu pai, a filha chorava e gritava. Abraçava sua menina que também chorava, compartilhando a dor de sua perda.