SORAIA
É impossível prever o que está por vir em nossas vidas. Uma morte inesperada pega a todos de sopetão, e não foi diferente quando Soraia se foi.
Chorei copiosamente por vários dias, num misto de angústia e alívio. Não posso ser escroto a ponto de não confessar que sua doença estava minando minhas faculdades mentais e confesso que algumas vezes, a idéia do travesseiro na sua cara me cutucou.
Eu a amava, mas a doença, quando desfigura as feições e o caráter de quem quer que seja, nos faz ver além da banalidade da falsidade e perscrutar os labirintos sombrios da honestidade.
Mas fato é que não precisei exercitar minhas parcas habilidades assassinas e numa manhã chuvosa de 1967, ela nos fez o favor de ir visitar Jesus, embora eu ainda ache depois de tudo o que aconteceu em seguida ao seu sepultamento, que ela foi ter mesmo um papo reto com o capeta.
A casa onde morávamos era de seus pais,que prontamente me escurraçaram logo ao fechar de seus olhos. Os velhos achavam que eu tinha peso crucial na decadência física e moral da filha, mas na verdade foi ela quem quase me desgraçou no mundo das drogas. Sua voracidade frente à um prato cheio de cocaína era absurda e fosse eu ou qualquer outro ao seu lado, pouco poderia fazer para freá-la.
Perambulei um tempo nas ruas, pois sabia que daquele tempo áureo de baladas e todo aquele papo de vamos viver para sempre, nada havia sobrado. Não havia ninguém disposto a me estender um prato de comida, já que seu pai espalhara minha fama pelos quatro cantos daquela maldita cidade.
Cuspi na porta de entrada da casa de todos eles, e os amaldiçoei pela hipocrisia. Muitos riram e me chamaram de fracassado. Jurei me vingar de todos assim que me restabelecesse.
Tive a sorte de cruzar o caminho de uma frágil senhora podre de rica que não resistiu ao meu charme de mendigo de boas feições. Até porque os quase quarenta anos de diferença de idade me colocavam em franca vantagem no jogo da sedução.
Não entrarei em sórdidos detalhes, mas basta dizer que em pouco menos de um ano, havia drenado todas as forças e, melhor ainda, toda a fortuna da velha. Alguns arranjos com seus advogados corruptos e nenhum parente por perto, me deram toda a dianteira de que precisava.
Não demorou para que me jogasse novamente na vida de devassidão de antes, turbinado pela enorme quantia em minhas contas bancárias agora. Não havia antro de drogas ou prostíbulo onde eu não fosse conhecido e venerado por minha mão aberta com os amigos.
No auge dos meus quase trinta anos, minha saúde espantosamente era de aço. Podia ficar uma semana consumindo os mais variados tipos de bebidas e entorpecentes, sem me deixar abalar. Alguns comentavam que eu havia feito um pacto com o demônio, e dera a alma de Soraia em troca da minha.
Ria muito de todas estas especulações e replicava que não havia como enganar o Diabo numa transação desse tipo, ao que todos riam e concordavam comigo.
Durante quarenta anos desci aos mais profundos degraus da sordidez humana. Perdi as contas de quantos enganei, de quantas mulheres pilhei e de quantas boas almas me desfiz e humilhei.
Voltei já na idade madura a confrontar meus inimigos de outrora e um a um esmaguei com meu poder financeiro. Alguns se mataram ao verem todo seu patrimônio drenado por dívidas onde eu era o maior beneficiado. Outros eu mesmo tive que despachar para o outro lado.
Peguei um gosto lúgubre pela morte. Me satisfazia ao ver o último brilho no olhar de minhas vítimas. Ficava às vezes, horas observando seus rostos contorcidos de medo ao vislumbrarem minha presença. Tentava imaginar a recepção de cada um no inferno.
Foi nessa época, que ao completar setenta anos de idade, recebi uma estranha visita. Estava sozinho em meu apartamento, degustando uma taça de vinho, quando bateram na porta. Estranhei, pois geralmente a portaria me avisava de algum raro convidado. Concluí que devia ser algum vizinho e me levantei para despachá-lo sem delongas.
Sem perguntar quem era, abri a porta.
Nunca escondi meu gosto por mulheres jovens, ninfetas mesmo. Devo ter gasto milhões pagando por jovens que jamais olhariam em minha direção se eu não tivesse me tornado um homem rico. Um velho rico.
Mas aquela, parada ali na minha frente, eu tinha a certeza de não ter contratado.
Era linda, sua pele branca sem uma única mancha ou sinal. Seus cabelos eram negros e na altura dos ombros e não aparentavam terem sido penteados. Na verdade mostravam um certo desleixo que eu na hora achei extremamente sexy. Diria que tinha no máximo uns dezessete anos de idade.
Trajava calças e blusa pretas, e no peito exibia uma correntinha com um símbolo que eu nunca havia visto. Ela me encarava com um sorriso encantador e ao mesmo tempo ameaçador.
Pensei que era um presente de algum de meus amigos degenerados e sem ao menos perguntar quem era, a convidei para entrar. Num segundo ela já estava esparramada em meu sofá, balançando as longas botas que lhe davam uma aparência punk que me excitou mais ainda.
-Bebe alguma coisa? - perguntei.
-O que você sugere? - disse ela pulando de joelhos no sofá.
Sorri e fui até o bar. Voltei com dois copos de cinzano e lhe ofereci um. Quando ia lhe advertir para que não tomasse muito rápido, ela já havia virado o conteúdo de uma vez só. Ao ver minha cara de espanto, caiu na gargalhada.
-Mauro, não é?
Respondi que sim, era esse meu nome.
-Ah, então esse é o famoso Mauro...
Não gostei da entonação de sua voz, que achei sarcástica demais. Cortei logo o clima.
-Sim garota, eu sou o “famoso” Mauro. Agora não embace e me diga logo quem é você e quem te mandou aqui. Já vou avisando que não vou pagar nada, já que não fui eu que te chamei.
Senti um tênue frio gelar todos os pequenos ossos da minha já combalida espinha, quando ela soltou uma gargalhada, se jogando para trás no sofá. Fiquei petrificado com sua expressão e percebi que alguém me preparara uma brincadeira de muito mau gosto, mandando uma doida como escort-girl para minha casa.
-Você acha mesmo que eu vim transar com você velho? Você realmente se acha tão gostoso assim?
-Desculpe, não foi bem isso que eu quis dizer, mas você é tão...
Travei. Não conseguia mais proferir uma só palavra. Fiquei observando-a levantar e vir em minha direção. Um cheiro de coisa velha, muito antiga, se misturou no ao oxigênio da sala. Ela chegou seu rosto bem perto do meu e pude ver em seus olhos algo que não era moço, jovial, mas aparentava ter séculos de existência.
-Bobinho – disse ela batendo na ponta do meu nariz. - Guarde essa coisa enrugada no meio das suas calças, pois de hoje em diante você não vai mais usá-lo. Na verdade, aconselho a dar uma última boa olhada ao redor, pois você vai ter que me acompanhar.
Disposto a acabar com a brincadeira de mau gosto, lhe dei as costas e fui em direção à porta.
-Muito bem mocinha, acabou a brincadeira. Diga ao filho-da-mãe que te mandou aqui, que eu vou fazer o favor de não querer saber sua identidade, mas que nunca mais se meta a me incomodar. Não tenho tempo para idiotices.
Me esforcei para dizer cada palavra com a entonação de quem estava no controle da situação, mas a verdade era que eu estava me borrando de medo da garota.
Ela desfez o sorriso e caminhou lentamente até a porta, me encarando. Tirou minha mão da maçaneta e a fechou.
-Tome mais um drink Mauro. Acho que você vai precisar quando souber quem eu realmente sou.
Fiz o que ela mandou e me sentei no sofá. Um enorme peso caiu sobre minhas costas, e por um instante achei que fosse ter um enfarto. A garota sentou na outra ponta do sofá e acendeu um cigarro.
-Sei que você não fuma mais, portanto nem vou te oferecer.
-Quem diabos é você? - perguntei novamente. - Quem te mandou aqui?
-Ora Mauro, você sabe quem eu sou. Vocês passam a vida toda dizendo que isso que aquilo, que a hora que ela chegar eu vou de boa, que eu não tenho medo dela e blablabla. Então? Não tá me reconhecendo? Ah, desculpa. Não uso mais aquele capuz horrível, na verdade nunca usei um tão cafona. E a foice? A porcaria da foice eu não sei de quem foi a ideia. Deve ter sido de algum monge que não tinha o que fazer.
Ela tentou tocar a minha mão e eu a puxei numa fração de segundo. Sua voz era mais pausada agora, mas aquele sorriso de menina sacana brilhava no seu rosto.
-Vai se ferrar – respondi. - Você é uma louca drogada e eu vou chamar a polícia agora mesmo.
-Aff Mauro. Tudo bem vai. Eu tô com um pouquinho de tempo, e você é um dos meus prediletos. Sua vida não foi brincadeira, não é mesmo? Não via a hora de vir aqui te conhecer pessoalmente.
-Que merda você está falando?
Ela deu uma longa tragada no cigarro e soltou a fumaça sobre uma samambaia que eu tinha ao lado do sofá. A planta secou imediatamente. Dei um pulo e fiquei de pé, procurando uma maneira de sair correndo dali, mas uma forte dor no peito me fez desistir da ideia.
-Coração – disse ela. - Você abusou um pouco Mauro. Ele não já não é mais o mesmo.
-O que você quer? Por que eu?
-Eu quero o que é meu, meu amor, você! Desde que nasceu, desde que abriu esses seus olhinhos verdes, você assinou um contrato comigo. Um dia eu viria te buscar, e... bom, esse dia chegou.
Sentei novamente, dessa vez demolido pela constatação de com quem eu estava conversando.
-Admita que demorou bastante – prosseguiu ela. - Umas três vezes pensei em vir te buscar mas... nossa, você me mandou tanta gente e sempre foi tão divertido, que sei lá, acho que simpatizei com você.
-Mas...como alguém pode simpatizar com a …
-Morte? Mauro, você é um homem inteligente. Estava esperando quem, aquela caveirinha? Vocês humanos antropomorfizaram tudo, animais, objetos, comida, argh...Por que não admitir que eu também poderia ter uma forma humana? E confesse, que forma atrairia mais um velho safado como você?
-Foi ela, não foi? Foi Soraia quem te mandou. Ela acha que a matei, mas não fui eu, eu nunca quis, eu...
-Calma tolinho – disse “Ela” levantando-se. - Ninguém me mandou aqui. Eu venho quando eu quero. E agora, vamos logo. No caminho vou te contando o resto...
Ela me pegou pela mão, e todo o peso do universo desabou sobre mim. Mas o que deveria ser um suplício, na verdade foi maravilhoso.
Ela sorria enquanto caminhávamos.
-Já te disse que você tem lindos olhos verdes, né Mauro?
FIM
Inspirado livremente na obra de Edgar Alan Poe e no personagem “Sandman” de Neil Gaiman.