OLHOS DE FOGO - revisado e compactado- Parte 1 de 3

Olhos de fogo

Jorge Linhaça

Na escuridão da noite sem lua ele só podia ver dois pontos de luz entre as sombras. Luzes avermelhadas, quase que brasas de uma fogueira, que pareciam atraí-lo como um imã em direção a elas. Um misto de medo e curiosidade apossou-se de sua alma sendo que esta última foi mais forte que o seu receio. Caminhou pela rua estreita e escura vendo cada vez mais de perto aquelas luzes brasis. Aproximou-se do vão entre a cerca de onde brotava aquela luminosidade e deparou-se com uma face descarnada e demoníaca que o fitava com os olhos ardentes qual o fogo do inferno. Fez menção de correr, mas, já era tarde demais, das órbitas descarnadas brotou o fogo voraz que consumiu seu corpo transformando-o em uma imensa tocha humana. Seus gritos preencheram a noite e acordaram os vizinhos que abriram as janelas e tentaram socorrê-lo, mas já era tarde demais, polícia e bombeiros chegaram quase que simultaneamente e só encontraram o corpo totalmente carbonizado. A suspeita inicial recaiu sobre algum atentado ou vingança contra o pobre homem, porém, nada se conseguiu averiguar de concreto. A autópsia parecia indicar que o homem havia se queimado de dentro para fora. Combustão espontânea?

Em outro ponto da cidade, dias depois, uma jovem caminhava por um parque quando em meio aos arbustos viu a maléfica luminescência avermelhada, pensando tratar-se de um início de incêndio ou de brasas de cigarro ali jogadas, resolveu exercer a sua cidadania eliminando o foco do provável fogo. Mal se aproximara e surgiu do meio dos arbustos a sinistra figura que a fitou com um sorriso descarnado para logo em seguida imolá-la em suas chamas. O mistério voltava a rondar a cidade, agora eram dois os cadáveres carbonizados e, o pior, não havia nenhuma relação entre eles.

No dia seguinte, um grupo de trabalhadores, após o fim de sua jornada de trabalho, caminhava em direção a uma estação de metrô quando um deles se deu conta de dois pontos de luz vermelha intensa que vinham de um vão entre os pilares da estação... O grupo resolveu averiguar o que se passava e novamente a história se repetiu, a horrenda criatura saltou sobre eles e em poucos instantes quase todos estavam reduzindo-os a massas inertes e carbonizadas, com exceção de um que logrou escapar e filmou a criatura enquanto fugia com a câmera de seu celular. Infelizmente não chegou muito longe... Metros adiante teve o mesmo fim de seus companheiros mas ficara o registro do monstro nos arquivos de memória de seu telefone.

Os seguranças do metrô nada puderam fazer e nem mesmo presenciaram a criatura, para sorte deles, aliás. Chamaram a polícia e esta, após periciar o local, encontrou o celular do último a sucumbir, distante alguns metros do seu corpo... A filmagem começava com eles indo de encontro aos olhos de fogo e terminava com a derradeira rajada desferida contra o rapaz. Viram e reviram as imagens por diversas vezes, incrédulos sobre aquilo que viam... Parecia coisa de filme de terror de segunda categoria... Cogitaram até que fosse uma espécie de montagem como o conhecido " A Bruxa de Blair", todavia, isso não explicava os corpos estendidos no chão, a menos é claro que alguém houvesse cometido assassinato e usado os corpos para simular essa grande farsa. Infelizmente a identificação dos cadáveres revelou que se tratava mesmo daquele grupo de operários.

Tentaram evitar que o caso ganhasse as páginas dos jornais, mas, foi impossível, fotos da criatura retiradas da filmagem estamparam manchetes e o demoníaco ser foi batizado de "olhos de fogo". O imaginário popular não tinha limites, cada um imaginava uma origem mais fantástica para o ser, de acordo com o seu lugar de origem. Muitos chacoteavam dizendo que aquilo não passava de golpe publicitário para vender jornais e revistas, já que a história havia de render por um bom tempo , desde que, de vez em quando, um cadáver, pelo menos chamuscado, fosse encontrado.

A fantasia popular não tinha limites. Entre as possibilidades mais lembradas estavam uma versão mais urbana do boitatá e não faltava quem se lembrasse do gringo "motoqueiro fantasma":

Os ufologistas logo imaginaram que se tratasse de algum alienígena preso em nosso planeta e que apenas agisse de maneira a se defender quando se sentia ameaçado; Os pregadores do apocalipse o consideravam um precursor de um de seus quatro cavaleiros.

Teorias, como podem ver, não faltavam, porém, a identidade e a origem do "olhos de fogo" permanecia um grande mistério, bem como o porquê de seus ataques aparentemente aleatórios. Para a imprensa isso era um prato cheio. Pipocavam reportagens, entrevistas com celebridades e com curiosos nos mais variados veículos da mídia. Claro que não faltavam as famosas charges e as piadas chegaram aos programas humorísticos, principalmente os de "Stand-Up" tão em foco na atualidade.

Nas Igrejas, aqueles pregadores de sempre anunciavam o fim do mundo, fosse ao púlpito de suas pequenas comunidades ou transmitidos ao vivo pelas redes alugadas de rádio e TV, incitando os fiéis ao arrependimento de seus pecados e, claro, ao desapego das coisas materiais e o consequente “abrir de suas carteiras” em prol do esforço de evangelização para a salvação de um maior número de almas.

- "Eis que o inimigo hoje caminha sobre a terra, manifestando o flagelo de Deus e destruindo aos iníquos com o fogo do inferno. Arrependei-vos ou perecereis..." Toda pregação incluía alguma citação desse tipo.

Ironicamente, ou não, foi durante uma pregação que se deu a nova manifestação do terror. Enquanto o ministro pregava essas palavras ao vivo para os presentes e para os ouvintes e telespectadores de rádios e TVs espalhadas pelo país o caos tomou conta dos presentes... Os sons de centenas de gritos eram ouvidos vindos de todas as direções do templo religioso e retransmitidos para toda a nação pelos meios de comunicação.

Sobre o palco o corpo do ministro e de seus ajudantes mais próximos ardiam como grandes fogueiras do tempo da inquisição... Diante das câmeras de TV, pessoas corriam desesperadas tentando salvar suas vidas, nesse atropelo quem tropeçava e caía pelo caminho era simplesmente pisoteado pelos mais fortes que só queriam saber de salvar a própria pele.

Tudo isso diante do olhar de milhares de telespectadores que não conseguiam acreditar no que viam e nem desprender seu olhar de diante da TV. O número de mortos e feridos pisoteados pela manada humana era muito superior aos flagelados pelo fogo dos olhos do monstro. Na TV, a última imagem vista pelos telespectadores foi o close horripilante e pavoroso dos “Olhos de Fogo" dirigindo-se à câmera principal.

Bombeiros, polícia, helicópteros de resgate e ambulâncias chegavam incessantemente ao local da tragédia, cortando as ruas da cidade com suas sirenes ligadas e aumentando ainda mais o pânico já reinante pela vizinhança. Rabecões foram acionados e a atmosfera fúnebre instalou-se de vez no local.

Já agora todas as redes de TV transmitiam ao vivo, direto do local as imagens da tragédia em seus plantões extraordinários. Sensacionalistas ou não, estavam todos ali e completamente atônitos. O monstro mais uma vez desaparecera sem deixar vestígios senão a pilha de corpos atingidos ou não pelas suas chamas mortais. A sensação do telespectador era a de assistir a um filme de terror ao vivo. Aqueles que fitaram na tela de sua TV a face horripilante do monstro dos olhos de fogo estavam estáticos, alguns caiam em prantos, outros desmaiaram e alguns outros até enfartaram, aumentando as estatísticas macabras das mortes. A população, a princípio consternada com a tragédia, foi, aos poucos, sendo tomada pelo pânico. A sensação é de que não existia nenhum lugar seguro.

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“Olhos de fogo” caminhava entre as sombras pensando sobre o seu malfadado destino de destruir as pessoas através de seu olhar.

Essa era uma missão que preferiria não ter sobre os seus ombros, mas, por outro lado, era a única maneira de alimentar seu corpo já que, ao emitir as línguas de fogo através de seus olhos, a energia desprendida dos corpos voltava-se em sua direção, restituindo-lhe a aparência humana. Era por isso que passava despercebido entre a multidão minutos após os ataques devastadores. Ele nem sempre fora assim, mas agora precisava conviver com essa terrível maldição.

Não fosse a sua enorme necessidade emocional de manter-se próximo a seus familiares e amigos e já teria se permitido abandonar esta vida. Sentia-se um monstro egoísta, mas, por outo lado, não conseguia superar o seu instinto de autopreservação que o levava a buscar seu alimento em sua saga assassina. No principio hesitava, escondia-se, sem coragem para o ataque, direcionava sua fome para pequenos animais, porém, quando se sentiu acuado e prestes a ser descoberto, foi quase que obrigado a atacar. A verdade é que a energia humana durava por mais tempo e era quase que viciante. Seu último ataque, na verdade, o primeiro "não provocado", havia sido encarado por ele como uma forma de justiça contra a hipocrisia dos aproveitadores da fé alheia. Não esperava pelas mortes causadas no tumulto, por aquele “efeito colateral”, como o chamam os militares. Sua intenção e decisão foi a de que, já que deveria se alimentar dessa maneira para sobreviver, que causasse dano apenas àqueles que, segundo sua ótica, nenhum bem trazia aos demais, portanto não mereciam desfrutar do dom da vida.