CAMINHOS PARA O SUBMUNDO - DTRL 15

I

“Não tenho nenhuma saudade de mim...

...o que já fui não mais me interessa. Clarice Lispector”... Dizia a lápide muda na escuridão, enquanto a terra vermelha a cobria gradualmente sem deixar vestígios de sua existência inútil para um cadáver.

A criatura cavava insanamente a cova ao lado, com instintos primitivos lhe espumando a boca, fazendo seu corpo monstruoso coberto por chagas inflamadas pelo tempo de exilio, tremer alucinadamente. Era a abstinência.

Todos os fins de tarde, quando a sombra do anoitecer avança sobre os montes daquela pequena cidade, a criatura irrompe das profundezas de sua existência e caminha sozinha por entre os bosques na neblina rala farejando a morte recente. Seus olhos são como estrelas negras, ainda carregam sinais de uma vida que ele pouco se recorda, que não mais se importa.

O cheiro cada vez mais forte o leva sempre para o mesmo lugar - o cemitério. E, noite após noite, ele cava a terra fofa das covas, em busca de um cadáver recém-enterrado. Carne semifresca para uma criatura faminta. Ao longe ouve ruídos de seres perversos, conhecidos como homens e, vez ou outra sente a pontada dos lapsos de memória que o açoita. Mas naquele instante algo parecia mais interessante, o corpo gélido depositado na caixa de madeira parecia muito saboroso, mesmo sentindo que havia algo errado nessa atitude, a criatura devora o cadáver com voracidade.

É viciado em carne humana.

II

Amigos de infância...

...desceram a viela estreita com alvoroço. O menor era moreno, franzino, quase desnutrido, levava uma bola de couro sob o braço, presente do irmão. O maior tinha a pele branca, robusto, cabelo que formava um tufo sobre a sua cabeça; conhecia um terreno baldio que dava um ótimo campinho para estrearem a bola nova. Os dois se conheciam desde bebê, eram velhos amigos.

Um chute de peito de pé e a bola imponente rompeu as fronteiras do campinho improvisado, levando os amigos ao seu encalço. Depois do muro razoavelmente alto havia um prédio abandonado. Era grande e sombrio - um antigo hospital - soava como uma grande aventura.

Os dois adentraram no soturno silêncio do local, já não havia portas, nem vidros nas janelas e o vento trazia consigo um uivo melancólico enquanto eles exploravam o lugar. No primeiro andar, apenas ruínas, no entanto, no segundo eles encontraram salas intactas e um cheiro doce como caramelo pairava no ar, enquanto os dois caminhavam pelos corredores pouco iluminados.

III

Um gemido longo e agonizante...

...como um grito de dor sufocado, interrompeu o longo silêncio dos amigos - Seria o vento? – eles se assustaram.

Uma porta grande e grossa rangeu num movimento tão lento que pareceu eterno, puseram seus olhos brilhantes e espantados na sala escura e úmida, apreensivos, á espera de algo que pudesse surpreendê-los... O medo vazava no semblante do menor que, ainda levava a bola a tiracolo.

O maior o desafiou a entrar, mas ele relutou, não queria saber os segredos daquele lugar, queria ir para casa.

Então o menino maior, de apenas nove anos, com índole de um sociopata infantil, teve a ideia que traria a amizade e as vidas dos dois à ruína. Com a mão fechada deu um soco na bola de couro e essa rolou rumo à escuridão e um baque escoou pelo hospital vazio – era só uma brincadeira - O pequeno sentiu o coração acelerar o corpo tremer, olhou para o amigo sem entender a atitude e foi em busca do brinquedo novo.

O escuro era total e ele tateava rapidamente na direção de onde veio o som, mas antes que pudesse encontrar o que procurava, a porta se fechou atrás de si e ele pode ver através da pequena janela o amigo rindo enquanto ele era dominado pelo desespero.

E, enquanto a luz do dia abandonava o continente, o amigo o deixou. Apenas virou as costas e foi embora. O pequeno esperou que ele voltasse, talvez estivesse escondido, mas ele jamais retornou. Os minutos foram se tornando eternos, a porta não podia ser aberta pelo lado de dentro, a sala era quase totalmente escura, apenas a luz escassa que entrava pela pequena janela... O garoto aterrorizado não conseguia desgrudar da porta e do feixe de luz que a atravessava, porém sua única esperança foi enfraquecendo, até se apagar por completo o deixando no escuro frio e silencioso. Até que com olhos abertos a escuridão era total, sentia a respiração cada vez mais fraca.

IV

A luz branca...

...muito forte, invadiu seus olhos acostumados com a escuridão, seres cobertos da cabeça aos pés com roupas brancas e capacetes de vidro aproximavam-se do garoto assustado. Seu corpo doía, suas mãos pequenas estavam ásperas, sentia a pele se soltando da carne, sentia muita sede; viu seu irmão sendo levado pela brancura e a luz forte, aos poucos foi se apagando.

Acordou novamente em uma sala branca, sentia frio – muito frio - notou que seu corpo estava imerso em gelo. Estava preso, não podia se mover. Em sua cabeça uma pressão tão grande que parecia querer explodir, os olhos e língua inchados e uma dor dilacerante dentro de si.

O irmão estava ao seu lado - sempre esteve - entretanto a sua aparência estava mudada... Ele parecia velho demais, pele enrugada, cabelos brancos. O garoto teve medo de que houvesse passado muito tempo desde o dia em que ficara preso, então o irmão lhe explicou o acontecido; disse-lhe que o encontrou três dias depois do ocorrido, mesmo assim, ele tinha ficado muito tempo exposto à radiação dentro daquela sala... A recuperação seria difícil, nunca mais seria o mesmo, mas não morreria por isso.

O pequeno sentiu um peso no peito, preferia à morte a prisão naquela dor, naquele corpo que se mutava dia após dia, dentro daquelas paredes silenciosas e brancas tudo se transformava em sonhos cada vez mais distantes. Não entendia porque aquilo estava acontecendo, não entendia porque seu melhor amigo, sem causa alguma, lhe roubou o direito de viver.

V

Por longos anos...

...seu corpo se transformou, e ele teve que reaprender a andar, comer, dormir, falar. Agora o pequenino já tinha mais de três metros de altura, orelhas grandes e pele escamosa. Estava se transformando em um monstro.

A vida lhe pregara uma peça e ele alimentava as duvidas em relação ao seu destino.

Seu irmão, o único com o qual tinha contato, tentava amenizar a dor do menino, porém em seus olhos ele não podia mentir - estava tudo perdido, não podia lhe negar nada... E o que o garoto queria... Era sair dali, nem que por um instante, queria ver o mundo lá fora antes de morrer - precisava disso.

VI

O calor do sol em sua pele morta...

... O fez sorrir – já fazia tanto tempo – a cada passo sentia a dor perfurar seu corpo como mil agulhas, mas valia a pena... Ainda podia sentir o mundo, a terra, o sol, os cheiros.

Estava livre.

Quando seu irmão se deparou com o monstro livre, sentiu um arrepio percorrer seu corpo, ele era muito grande e sua aparência era assustadora, cabeça grande, braços e pernas longas a pele se desfazendo e chagas. O arrependimento era explícito.

A criatura, ainda carregava consigo todas as lembranças do passado, e seguiu rumo ao seu objetivo, tinha apenas uma pergunta a fazer. A casa era simples, de paredes encardidas e quintal pequeno – era onde costumavam brincar – encontrou seu amigo a porta, estático, paralisado. Ele ainda era o mesmo, branco, robusto... Quase do mesmo tamanho que era.

A criatura queria dizer tanta coisa, mas não sabia como, não conhecia suas forças, seus limites, sua própria natureza. Com as mãos imensas, duras e escamosas envolveu o corpo inerte do amigo e o tirou do chão. O menino tremia.

Olhando no fundo dos olhos assustados do companheiro eles se reconheceram – mas havia entre eles um vácuo, um instante perdido na eternidade, um espaço gigante. E a criatura sentiu pena.

O monstro viu seu reflexo nos olhos do amigo e entendeu que estava tudo perdido, era um monstro e...

VII

Monstros fazem o que a natureza manda...

...Mesmo sem saber o motivo, abriu a boca repleta de dentes pontiagudos e mordeu com avidez a cabeça branca do menino. Foi tão fácil... Como se fosse um doce quebrou o crânio e sentiu o gosto do sangue morno e gordura fresca. Não era isso que ele queria ter feito, mas gostou do sabor, tanto que não pode parar... Nunca pode parar.

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 02/04/2014
Código do texto: T4753818
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