SOB O SIGNO DE TOURO
A neblina gelada cobre os campos, esconde as serras, velando o mundo inteiro dentro de suas entranhas misteriosas. Densa camada de umidade entra pelas frestas das portas e janelas, fazendo tiritar os moradores do sítio. Quem tem, puxa o cobertor até à cabeça, esconde-se como pode da frigem da madrugada. Quem não tem, encolhe-se, enfia as mãos entre as pernas, na tentativa vã de conservar o último calor do corpo. Os galos cantaram de madrugada, mas agora estão calados, dormitam nos poleiros, também relutam em sair para o quintal gelado.
O sol demora a aparecer. A névoa insiste, seu lençol de brancura só desaparecerá pelas nove horas, a manhã já indo a meio. Os topos das serras aparecem primeiro, despontam na paisagem, a claridade do dia teimando e vencendo a nebulosidade. Os vales e grotões ficam escondidos até quase meio-dia.
— Jair! Jairo! Acorda, gente, vamos, tá na hora!
Dona Claudina acicuta os filhos. Não será pelo frio da manhã que eles vão ficar mangando na cama. As lides do sítio não esperam, cada qual tem sua tarefa, não adianta estremunhar-se nem ficar rolando na cama, aproveitando o último calor das cobertas e lençóis.
— O café tá pronto. — Chegando à janela, grita para o marido, que se lava na bica do quintal. — Marcionílio, traz um balde d’água pra cozinha.
Os meninos se aproximam, bocejando e esfregando o rosto, olhos, nariz. Loiros cabelos amassados, as faces vermelhas e sardentas, já de roupas trocadas para a faina do dia. São gêmeos e tão semelhantes que até o pai, por vezes, faz confusão. Têm doze anos e são crescidos: na ajuda ao pai trabalham como gente grande. Principalmente durante o período de férias escolares. Apesar do frio, que começou em maio e irá até fins de agosto, levantam-se bem cedinho, estão sempre dispostos e não enjeitam serviço.
No Matadouro Municipal a rotina começa também muito cedo. Além da alvorada de cocoricós nos galinheiros e de bem-te-vis madrugadores, o mugir do gado no curral desperta os moradores da pequena chácara. A neblina esconde as casas, construídas aparentemente a esmo na área, sem planejamento. Mas estão todas a cavaleiro da construção principal, do abatedouro, de tal forma que os moradores possam se servir da água do córrego antes que ela seja poluída pelas atividades do abate dos animais.
Aos poucos, vão descendo os trabalhadores. Quando chegam à grande construção, Gigão já está no seu posto: de pé sobre o muro alto e largo, nas mãos a sua ferramenta de trabalho: pesado chuço de ferro, de ponta aguda que ele mesmo se encarrega de manter muito afiado. No ambiente soturno a figura enorme de Gigão se destaca. Alto e corpulento, a barriga proeminente não atrapalha sua agilidade. A barba comprida desce até o peito, os fios grisalhos entremeados com o negrume original. As feições rudes e grosseiras do rosto combinam com o tipo e com a profissão: Gigão é o matador das rezes que abate com precisão adquirida em longos anos de exercício do lúgubre mister. Nas manhãs frias do rigoroso inverno, ele usa uma capa comprida, dessas capas de montaria, e pesadas botas de cano alto. Visto de baixo, Gigão assoma-se como figura bíblica, um emissário do outro mundo, de lança em punho no aguardo de suas vítimas.
Tem início a matança. O primeiro animal a ser sacrificado é laçado pelo próprio Gigão, que, de cima de seu posto, manobra o laço com maestria. A ponta do laço é passada por uma argola de metal, entre as travessas da pesada porta de ferro e o animal é puxado para o pequeno cubículo onde será morto. Se resiste, e a maioria dos animais resiste ao arrasto, dois trabalhadores, munidos de longos bambus, vão cutucando o animal, na direção desejada. O bicho vem chegando, chegando. O curral é afunilado, de tal forma que o animal não tem como se esgueirar. O piso do cubículo de abate é de madeira: rústicas pranchas assentadas sobre rodas. As grossas paredes são de pedra e na medida exata para que o boi ou a vaca fique em pé, sem espaço para movimentar-se. O arrasto termina quando conseguem colocar a testa da rês junto à porta de metal. Então, num movimento rapidíssimo, Gigão, do alto da parede lateral, lança o ferro pontiagudo, atingindo certeiramente a nuca do animal, que desaba sobre o chão, morto.
Enquanto Gigão puxa de volta a sua lança, amarrada por comprida corda a uma argola de ferro, sob seus pés, os trabalhadores abrem a porta de ferro, arrastam o carrinho com a rês abatida para o recinto de descarnar. Ganchos de aço recurvos são enfiados nas pernas traseiras, à altura dos jarretes. O animal é içado e transportado lentamente ao longo de uma ponte rolante.O corpo ainda está quente, a cabeça pende e imediatamente é sangrado: um golpe profundo de facão à altura do coração faz o sangue jorrar em baldes adrede preparados. Segue-se uma verdadeira carnificina, na qual diversos trabalhadores vão cortando o animal, enquanto é arrastado pela ponte rolante. Uns tiram as tripas, outros o bucho, os bofes, os miúdos (coração, rins). Cuidado especial para tirar a bexiga urinária e a vesícula com o fel: não devem contaminar as outras glândulas nem os músculos, a carne. As ferramentas são afiadíssimas: facas, machados e serras constituem uma coleção especial de objetos cortantes. Dois agilíssimos operários tiram o couro, outro magarefe corta a cabeça, a seguir um outro começa a serrar a carcaça, separando as metades. Mesmo sangrado no início do processo, o sangue escorre das partes internas, dos músculos, e o chão é vermelho. Um rapaz joga água, com uma mangueira, sobre o piso, a fim de evitar que fique escorregadio pelo sangue acumulado. O fedor é insuportável. A atividade é freimática, ninguém pára, todos sabem onde cortar, serrar, separar. Cada peça tem seu destino: os bofes, ou pulmões, e a buchada (tripas, o bucho, vísceras não aproveitadas para o consumo humano) vão para um tanque; rins, fígado, coração, o miolo (cérebro) são colocados em baldes de metal, seguirão para os açougues. O couro é jogado por um buraco no piso, para um depósito inferior onde será salgado. A cabeça, serrada para retirada do miolo, é jogada num canto.
Não demora nem uma hora, e o animal já está todo separado, as partes prontas para serem despachadas aos açougues.
— Hoje é dia de pegar a buchada no matadouro. Vamos, meninos! Vê se não demoram demais, hein? — O pai é exigente, mas não sobrecarrega os filhos. Três vezes por semana eles vão até o matadouro buscar a buchada. As vísceras são trazidas para serem cozidas num grande tacho, com mandioca, abóbora e o que tiver disponível. Servirá de alimento para os porcos, que o pai cria em grande número.
— O carrinho quebrou a roda. — Jairo avisa. — Tem de consertar.
Seu Marcionílio vai, expedito, até o galpão onde estão as ferramentas e em dois tempos aplica uma travessa de madeira à roda. Um carrinho rústico, feito de caixão de madeira, com rodas pequenas e longos varais, apropriado para ser puxado pelos garotos.
— Pronto, podem ir. Com cuidado, depois mando fazer outra roda.
E partem os dois meninos. O percurso é curto, talvez uns dois quilômetros, passando pela estrada boiadeira, depois entrando pelo pastinho do seu Ditinho e chegando ao matadouro pelos fundos. No pastinho estão algumas vacas e um boi, pastando.
— Uai, seu Ditinho ainda num recolheu as vacas pra tirar o leite. Tá atrasado. — A observação é de Jairo, que é mais conversador.
— É mesmo. E aquele boi é novo. Tem cara de mau. — Comentário de Jair. — Óia só o jeito de ele olhar. Não tou gostando nada.
Entre as vacas mestiças, todas malhadas, umas castanhas-e-vermelhas, outras brancas-e-pretas, o touro se destaca pelo tamanho e por ser totalmente preto. Impressionante, mete medo até em gente grande.
— Cê é besta mesmo! Vamos, anda, num fica aí parado perto da cerca. — Jairo, além de mais prosa, é mais afoito, e adentra-se pelo pasto, puxando o carrinho.
Jair segue o irmão, bem perto, quem sabe se a gente ficar junto esse boi fica cum medo e não ataca a gente, pensa. Quando estão bem no meio do pasto, o boi caminha na direção dos garotos. Jair começa a correr.
— Corre, Jairo, ele tá vindo pra cima de nóis!
Jairo também sente medo: o animal está vindo, num trote cadenciado. Quando Jair grita, o bicho estaca, a cabeça erguida, abanando o rabo. Jairo também corre, sempre puxando o carrinho vazio, que sacoleja por entre as moitas de capim barba-de-bode, batendo em pedras e cupins espalhados pelo pasto.
Correndo e gritando, conseguem atravessar o pasto. O boi, parecendo satisfeito com a carreira dos garotos, voltou a pastar tranqüilamente. Esbaforidos, passam por debaixo da cerca, o carrinho agarrando no arame-farpado, mas sendo logo desembaraçado.
— E na volta, como vai ser? — Jair expressa seu pavor.
— Ara, até lá o seu Ditinho já recolheu o gado. Fica frio, cara!
O dia de emoções estava apenas começando para os gêmeos. No matadouro, a faina do dia continua a pleno vapor. Já estão descarnando a terceira rês e todo mundo se movimenta a fim de dar seqüência à verdadeira oficina de desmanche de vacas e bois para o consumo. O “caminhão da carne” já encostou para receber as primeiras carcaças. É um caminhão construído especialmente para a finalidade: a carroceria é um grande armário de madeira, fechado, com portas abrindo para a parte posterior. No teto do armário estão dependurados muitos ganchos. A cabine é forrada por dentro com folhas de zinco, que estão sempre limpas. Por fora, é pintada de cor escura, o que dá ao veículo uma aparência de carro funerário.
O veículo é manobrado por seu Vicente, que encosta bem perto da entrada do enorme barracão. Ele não só opera o veículo como também o carrega com as partes das reses que levará para os açougues da cidade. Faz tudo sozinho. Homem grande, forte: cabelos brancos, um bigode basto e o sorriso sempre alegre que exibe alva dentadura.
Seu Vicente veste sua roupa de trabalho: uma capa de plástico, que um dia fora branca mas depois de muitos anos de uso está castanho-escura. Vestida a longa capa, escancara as portas da parte traseira, vai até onde estão as grandes mantas de carne, pega a primeira, coloca sobre as costas, caminha com cuidado, sobe os dois degraus que levam ao interior do armário e dependura a peça num dos ganchos. Arrasta o gancho com a carne até o fundo, para acomodar as outras carcaças que virão a seguir.
Os gêmeos chegam ao matadouro a tempo de presenciar o próximo abate. Deixam o carrinho perto das buchadas e vão até onde os homens se aproximam do cercado do abate.
— Saiam de perto, meninos! — Fingem que não escutam o aviso de um magarefe.
No seu posto exclusivo, Gigão continua a sua lida. Prepara-se para abater a quarta rês. A neblina ainda está forte, a umidade está em todo lugar, molhando o laço e dificultando a laçada. Mas ele tem experiência, pois não é de hoje que trabalha naquele mister. A lança também está molhada e ele enxuga as mãos nas roupas. Da mesma forma, local onde ele fica, o topo do largo muro de pedras está molhado e escorregadio. Mas Gigão não se importa.
— Pega o laço, o “barroso” já tá laçado! — Grita para os três colegas, que vão puxar o animal.
O animal é puxado com vagar: pesado e teimoso, vem chegando a custo. Gigão prepara a lança e aguarda até que o boi chegue na posição apropriada.
— Puxa, gente, puxa! — Lá em cima, o vulto negro se mistura com a neblina. Os garotos se impressionam. O animal é resistente, os puxadores se esforçam. Gigão prepara-se para atirar o ferro a qualquer momento, assim que o alvo ficar imóvel.
Puxa que puxa, o boi força as pernas na lama. Quando finalmente é arrastado para o cubículo, cai de lado. Gigão, notando o esforço dos colegas que estão puxando o animal, apressa o lançamento da lança e atira-a quando o momento lhe parece azado.
Mas, pela primeira vez na sua longa carreira de matador, não acerta na nuca do animal. O ferro resvala pela cabeça e vai ao chão, onde tomba com o próprio peso. A corda que está amarrada perto do pé de Gigão estira, embaraça no próprio corpo do atirador, que perde o equilíbrio, escorrega na pedra molhada e despenca sobre o animal.
Estarrecidos, os operários e os gêmeos vêem quando o corpo de Gigão despenca, dá uma reviravolta no ar e tomba sobre o animal. Caindo de borco sobre a cabeça do boi, o peito do matador é atravessado pelos chifres que despontam nas costas, brilhantes de sangue.
Antonio Roque Gobbo, Belo Horizonte, 28 de agosto de 2001
CONTO # 113 DA SÉRIE MILISTÓRIAS