Zona de Contato - Primeira Parte - DTRL
O começo foi a luz de uma beleza e vivacidade singular, resplandecendo no céu em um dourado desbotado. Ela sangrava em lindas torrentes do sol da tarde que estava encoberto por nuvens pesadas, algumas de um tom de cinza tão escuro que parecia algo sólido, fazendo a luz se esgueirar no espaço entre elas como água escoando entre montanhas flutuantes. Abaixo, em terra, a estranha elevação de pedra assomava-se sobre o verde campestre como sinal indubitável tanto da engenhosidade quanto da obsessão de um homem.
Noah não via a elevação esculpida, no entanto. Não ainda. Nem seus colegas estudantes abarrotados no ônibus. Estavam todos conversando, ouvindo música em seus aparelhos portáteis – ou pelo menos tentando ouvir – e rindo, envoltos em um clima descontraído e juvenil que fez até mesmo a professora Edwiges, responsável pela turma, se surpreender com a capacidade dos alunos de continuarem com aquela agitação depois de horas enlatados naquele veículo, sendo sacolejados de um lado a outro enquanto o motorista seguia as curvas da estrada ou fazia ultrapassagens.
- Pessoal! – ela chamou, equilibrando-se de pé perto do banco do motorista – Quero apenas relembrar que são privilegiados por ganharem essa excursão para a feira de ciências na capital. Uma viagem dessas é importante e requer comportamento disciplinar... Dulce, você quer ficar quieta enquanto falo? – a professora olhou com uma carranca para a menina que contava as últimas novidades para a amiga do lado. Ela se calou e olhou para a professora que continuou: - Bem, como eu ia dizendo. É bom se comportarem ou não terão outra oportunidade como essa. E, claro, será descontado pontos do aluno que não seguir conforme o combinado.
Os alunos ouviram as palavras em silêncio, mas foi somente Edwiges se virar e se sentar em seu lugar para o burburinho começar novamente e evoluir para a algazarra de outrora. Risos, vozes falando alto, meninos contando piadas e a professora teve a impressão de ouvir até alguém cantando uma música que identificou como “La Isla Bonita” de Madonna. A mulher massageou as têmporas com as pontas dos dedos. Não pediria que ficassem quietos outra vez. Preferia guardar o fôlego para mais tarde, afinal, esse seria o início de uma longa viagem.
De Noah, pelo menos, ela não precisaria pedir silêncio. O menino estava sentado no banco da janela e lançava um olhar desanimado com seus olhos verdes que atravessava o vidro e ia de encontro à paisagem de campos a se perder de vista do outro lado.
- Acredita que meu celular não está funcionando bem? – falou Sofia, uma menina de longos cabelos loiros, que estava sentada ao lado – Ele está com a bateria carregada, mas fica travando e apagando sozinho – ela deixou de apertar os botões do aparelho por um momento e olhou para o amigo que permanecia distraído – Noah, estou falando com você!
- O quê? – Noah se virou, piscando como se ela o tivesse acordado – O que você disse?
- Eu estava falando que meu celular está ficando maluco, mas poderia está revelando um dos segredos do universo que você não ouviria. Está no mundo da lua desde que saímos.
- Não... Só estou um pouco enjoado.
- Sei. Você vai ficar enjoado justo em uma das raras ocasiões em que saímos em um passeio.
- A feira de ciências não é exatamente uma praia para se chamar de passeio e não tenho culpa de está enjoado.
- Ainda assim. Saímos da escola e vamos para a cidade grande. E é como a professora falou, vai ser importante, sabe? Sair com os colegas, visitar uma feira de ciências, talvez tirar umas fotos. É algo para se recordar daqui a alguns anos – Sofia argumentou, mas Noah não pareceu se importar muito e se virou para continuar o passatempo de encarar a janela. Os dois estudavam juntos desde a terceira série, neste tempo como melhores amigos por compartilharem tantas coisas e terem tanto em comum, Sofia aprendeu demais sobre Noah para saber que havia algo mais naquele suposto enjôo que ele não queria falar.
- Estamos bem perto dos lugares onde apareceram as marcas alienígenas. Acha que poderemos ver alguma daqui? – Sofia falou como quem não queria nada e viu o corpo do amigo enrijecer. Os sinais de que ela falava apareceram em fazendas próximas à cidade em que moravam, há alguns meses. Foi repentinamente. De um dia a outro, fazendeiros e trabalhadores do campo encontraram as marcas em suas plantações, como se alguma mão invisível gigante tivesse descido do céu e as pintado ali, uma escrita misteriosa e ilegível, pelo menos para humanos. Eram grandes círculos variando de tamanho, ligados por traços trilhados em meio às plantas das fazendas, deitadas e inculcadas no chão, de modo que se a pessoa visse de um lugar alto perceberia as formas circulares que parecia querer transmitir alguma mensagem ou registrar uma passagem desconhecida.
O surgimento de tal fenômeno foi recebido com controvérsias pelos habitantes da região e em uma escala maior, de todo o país. Os mais céticos diziam não passar de uma grande fraude, forjada por um maluco que queria apenas chamar a atenção e aparecer no noticiário da TV quando a farsa viesse à tona. Outros, que se deixavam levar pela esperança de que haveria algo mais entre as estrelas, argumentavam que o universo era grande demais para estarmos sós e que, ao julgar pela forma como os pés de milho estavam deitados e a escala e velocidade com que tudo foi feito, dificilmente as marcas teriam sido feitas por mãos humanas, então, contavam as histórias que corriam mundo afora desde muitas décadas sobre luzes noturnas e abduções, como se isso fosse indícios da presença de seres de outros planetas em meio a humanidade. Ninguém parecia ficar indiferente ao assunto que movia as rodas de conversas, estampava as páginas dos jornais municipais e levava muita gente, fosse cético ou não, a visitar os sinais extraterrestres em verdadeiras peregrinações, e em meio a tudo isso estava Noah.
- Você tinha que me lembrar disso? – ele falou, exasperado.
- Tem medo que impliquem com você? Por...
- Sofia – Noah falou baixo, mas duramente – Não ajuda você ficar falando nisso, sabia? Se ninguém está se lembrando, não vamos ser nós que os lembraremos.
- Está bem. Mas não acho que deva ficar muito preocupado e não aproveitar a viagem por causa disso. Fale com a professora se mexerem com você.
- Eu já falei. Contei que quando eu era menor eu me perdi em um passeio e meus pais, que eram hippies, acharam que eu tinha sido abduzido por extraterrestres, saindo espalhando pela cidade a notícia de que o filho tinha tido raptado por seres de outro mundo. Contaram até para a polícia. Quando me acharam, meus pais foram motivo de piada no bairro inteiro – falou Noah, pensando no quanto o jeito excêntrico de seus pais chamavam atenção de uma maneira que não era positiva para eles e para o filho, principalmente depois que os sinais apareceram.
- O que ela falou? – Sofia perguntou baixinho, se aproximando de Noah. Neste momento a conversa entre os dois era um cochicho perdido em meio ao barulho dos colegas.
- Achou estranho, mas tratou com seriedade. Não riu ou achou que eu e minha família fossemos um bando de idiotas. A professora disse que se alguém mexesse comigo ou se fizerem piada novamente eu poderia avisar que ela tomaria medidas severas.
- Está vendo? – Sofia falou – Agora você tem uma importante aliada. E se não for o suficiente há sempre a opção de recorrer a um bom soco na cara de quem implicar com você.
Noah revirou os olhos.
- Você e suas idéias. Está pensando que sou algum tipo de Bruce Willis? Se eu me metesse em alguma briga me matariam.
Sofia abriu a boca para fazer algum comentário, mas antes que pudesse falar o ônibus deu uma parada súbita e eles quase foram jogados para frente, se colidindo com as costas dos outros bancos. O motor roncou como um doente e voltou ao normal.
- Barbeiro! – ela disse, como se o motorista pudesse ouvir – Esse motorista deve está pensando que está transportando gado.
- Talvez por que às vezes nos comportamos como animais – comentou Noah, quase para si mesmo.
- Você poderia tentar.
- O quê? Se comportar como um animal?
- Não, bobo. Partir para briga. Tentar pelo menos intimidar.
- Você sabe que não sou nenhum faixa-preta. Eu entraria apenas para apanhar.
Sofia tentou inutilmente conter um riso.
- Realmente, Noah. Você não tem um físico de lutador.
O rosto de Noah se fechou, irritado, mas logo sua expressão se suavizou. O ônibus diminuiu a velocidade, e o barulho do motor cessou, voltando instantes depois em tosses roucas.
- Você acha engraçado, mas como minha amiga não deveria me incentivar a entrar em brigas tendo eu tamanha desvantagem.
- Custaria tentar?
- Sim. Custaria um olho roxo, um braço quebrado, uns hematomas.
- Bem, veja pelo lado bom. Pelo menos sobraria seu espírito.
- Meu espírito se apagaria devido à humilhação.
Sofia riu, e nem mesmo Noah conseguiu evitar um sorriso.
- Você sabe que não estou falando sério, não é? Não espero que você saia por aí comprando briga, seja com Ryan ou com qualquer outro.
- Eu sei disso, Sofia – falou Noah, que conhecia o humor da amiga.
- De todo modo – a garota falou – É provável que ninguém se lembre dessa sua história.
- É – Noah suspirou – Seria muito bom se isso acontecesse – ele se virou para a janela e contemplou o imenso manto de vegetação. Em algum lugar estavam os sinais feitos de círculos e traços cruzados e o garoto desejou, sendo eles fraude ou autênticos, que vendo as marcas ninguém se lembrasse desse episódio patético de sua vida e que esse assunto de Extraterrestres não lhe trouxesse mais nenhum aborrecimento.
O ônibus ameaçou parar, soltando sons de máquina travando pelo que pareceu ser a décima vez na última hora.
- Essa banheira ainda vai nos deixar na mão antes de chegarmos – falou Sofia, pondo o celular no bolso.
Noah levantou do banco, olhando por cima das cabeças de seus colegas e viu a professora Edwiges conversando alguma coisa com o motorista. Ela se voltou para a turma e tomou a palavra.
- Gente! Atenção! – disse e os alunos olharam para ela – O Ivo me falou que o ônibus parece está com problemas técnicos e vamos ter que fazer uma parada para verificar.
Elevou-se o burburinho de reclamações daqueles que já imaginavam que ficariam encalhados no meio da estrada. A professora pediu que ficassem quietos mais uma vez.
- Não precisam se preocupar. Vai ser uma checagem rápida e não vai nos atrasar muito para a feira de ciências que, aliás, é o dia inteiro.
- Vamos ficar nesse forno, enquanto consertam o carro? – perguntou um aluno e novos murmúrios se fizeram ouvir, agora de concordância. Embora estivesse nublado, o calor era sufocante e a possibilidade de ficarem mais tempo sentados no ônibus não era nada convidativa.
- Não vamos ficar no ônibus – disse a professora – Falei com o motorista e vamos fazer uma parada na fazenda Alvorada, aqui pertinho.
- O lugar onde apareceram as marcas dos alienígenas? – perguntou um garoto de traços asiáticos.
- Sim – falou Edwiges, o que foi recebido com entusiasmo por todos, exceto por Noah que engoliu em seco, sentido um amargor na boca.
- Isso não é um piquenique. Não vamos para ver esses benditos círculos, há algo mais para se ver. E eu posso cobrar relatórios, portanto, se comportem e prestem a atenção.
Edwiges se virou deixando os alunos conversarem entre si, entusiasmados. Sofia olhou para Noah que estava mais sério que antes, olhando pela janela.
Pouco tempo depois, em uma questão de poucos minutos, o ônibus deu a volta na pista e desviou para uma estrada larga cortando a vegetação, onde, percorrido certa distância passaram por uma placa acima de uma cancela de madeira aberta, dando-lhes boas vindas. Os estudantes olharam pelas janelas, esquadrilhando a paisagem em busca de algo dos sinais de que tanto se falava na cidade. Havia quem olhasse para cima, para ver se teria algum objeto voador os vigiando do alto, mas encontraram apenas as nuvens e algumas poucas aves viajando desorientadas pelo céu.
O ônibus avançou e viram uma grande casa branca com um vasto alpendre. Acima dela, ao longe, era possível ver as pás de um cata-vento imenso, provavelmente um moinho, girando ao ser tocado pelo vento. O veículo parou no terreiro em frente à casa e uma moça que colhia flores em um canteiro entrou apressada, porta adentro. Em seguida saiu um homem alto, com seu cabelo ligeiramente longo penteado para trás. Ele não apresentava exatamente o perfil de um homem do campo. Com seu olhar travesso, como o de um garoto que sofria de déficit de atenção, e suas canetas no bolso do peito em uma blusa azul-marinho abotoada até o último botão no pescoço, ele mais parecia um professor de matemática ou química que poderia dar aulas na escola em que Noah estudava. O homem ficou os observando da varanda da casa grande, com as mãos para trás.
- Podemos descer? – Edwiges perguntou para o motorista.
- Podem sim. Ele está acostumado a receber visitas. Eu mesmo já trouxe alguns aqui. Eu o conheço.
Edwiges se virou para os alunos.
- Descendo, gente. Com calma e sem bagunça. Podem deixar o material de vocês nos lugares.
Todos começaram a se levantar, se despreguiçando e deixando mochilas e bolsas nos bancos do ônibus. Eles caminharam abarrotados pelo corredor entre os bancos em direção à porta do veículo e saíram um por um, após a professora, uma enxurrada de jovens de fardas laranja se espalhando pelo terreiro.
O homem desceu os poucos degraus da varanda e se juntou à pequena multidão. A professora se adiantou e foi ao seu encontro.
- Desculpe por irmos chegando assim, sem avisar, mas nosso ônibus parece está com problemas e nosso motorista disse que poderíamos parar aqui para verificar – falou Edwiges.
- Sem problema algum – o homem falou amigavelmente – Pessoas são sempre bem-vindas. Meu nome é Anselmo.
- Edwiges – a mulher trocou um aperto de mão com o novo anfitrião – Eu sou a professora dessa turma. Estávamos indo para a feira de ciências estadual.
- Ah... Feiras Científicas. Já freqüentei muitas delas – Anselmo falou, divagando – Lugares assim é um celeiro de idéias e projetos. Um bom passeio, realmente. Mas qual o problema com o ônibus?
- Não sabemos – disse o motorista, se aproximando deles em meio aos alunos dispersos ao redor do veículo – Está com o tanque cheio e foi feito revisão antes de sairmos. Não entendo por que ele fica querendo morrer.
- Ivo... Camarada! Fez bem em parar aqui – Anselmo se virou para Edwiges – Ele dirige alguns ônibus com os turistas que vem aqui – ele falou, pondo aspas com os dedos ao dizer “turistas” – Será algum problema com a bateria?
- É o que vou verificar. Se não for abusar de sua boa vontade, dependendo do problema talvez eu precise de algumas de suas ferramentas.
- Claro... Pode pegar o que for necessário. Chamarei o Agnaldo. Ele vai lhe ajudar.
- É verdade que tem extraterrestres na fazenda? - perguntou uma garota de presilhas no cabelo. Os outros se concentraram em volta e Anselmo os olhou, guardando o suspense.
- Quem sabe? Eles seriam ótimos vizinhos, se me permitem dizer.
- Mas tem as marcas das naves deles nas plantações.
- Sim. As marcas. Não acho que sejam das naves, mas não deixa de ser algo interessante, se bem que há algo mais interessante para se ver aqui, além delas. – ele coçou o queixo, os olhando como um jogador de Pôquer prestes a revelar suas ótimas cartas – Está decidido! – ele falou, sem que ninguém tenha dito nada – Vamos todos olhar. Chamarei o Agnaldo para ajudar o Ivo e enquanto eles consertam o ônibus, vamos dar uma olhadinha no meu último projeto. Não fica tão longe e vai ser bom para vocês esticar as pernas um pouquinho.
Anselmo saiu para chamar seu empregado, o Agnaldo, um homem robusto de barba espessa para ajudar Ivo, e quando voltou, ele guiou a turma com a professora por um caminho largo que partia ao lado do terreiro, ladeado pelos pés de milho, cujas palhas acenavam ao sabor da leve brisa. Ele caminhava na frente, com Edwiges e os alunos o seguindo, conversando e olhando em volta. Nas vezes que a professora olhou para trás, viu com certa surpresa que os alunos pareciam estar realmente aproveitando a passagem pela fazenda, olhando e apontado em volta ao invés de estarem com os olhos vidrados em telas frias de aparelhos eletrônicos como geralmente costumavam fazer, o que a deixou satisfeita, apesar de ela desconfiar que essa mudança de hábito não tenha sido por acaso ou por vontade própria. O que mais se ouvia eram as reclamações dos alunos de que seus celulares e tablets não estavam funcionando bem.
Logo atrás da professora, Sofia vinha ombro a ombro com Noah que estava calado como uma pedra, caminhando com cuidado para não sujar os tênis novos na terra vermelha da estrada revolvida com marcas de pneus e pegadas. A menina olha para Anselmo de costas para ela, e se vira para segregar para o amigo:
- Não se parece com um fazendeiro.
- Não me pareço mesmo – Anselmo se virou. Aparentemente sua audição era formidável, ou Sofia falou mais alto de que pensou como geralmente acontecia – Embora eu viva aqui, nunca fui o melhor com o trabalho com a terra e com animais. Na verdade, sou ufólogo.
- Ufólogo?
- Sim. Ufólogos são os especialistas que estudam os ufos, que são objetos voadores não identificados, popularmente conhecidos como discos voadores, e outras manifestações alienígenas na terra.
- Você se tornou isso por causa dessas marcas que apareceram na sua fazenda?
- Não. Eu já era antes disso. Claro que fiquei muito animado com essas manifestações no quintal de casa. Considerei um presente.
- Então não é você que cuida da fazenda? – perguntou Sofia. Noah admirava a capacidade da amiga de manter conversas com estranhos, ainda mais com pessoas mais velhas, mas tinha que admitir que às vezes sua curiosidade fosse irritante. Pelo menos Anselmo não pareceu se importar.
- Realmente não sou eu. Meu pai é o dono, mas ele está na cidade cuidando da saúde. Quem toca a fazenda mesmo é o Agnaldo. Ele é o peão. Eu fico mais com a parte burocrática e, obviamente, cuido da minha bela construção – Anselmo falou, piscando ao se virar para eles. Um gesto que Noah achou bastante esquisito. O garoto não sabia do que ele estava falando e preferia não perguntar. Sabiamente, Sofia também ficou calada.
Noah olha para seu relógio de pulso para verificar as horas, encontrando apenas o vazio onde deveriam estar os números digitais. Não fazia sentido o relógio ter apagado, já que não fazia tanto tempo que tinha sido comprado. O garoto olha para cima e vê um céu mais fosco que um vidro embaçado, com nuvens mais escuras espalhadas aleatoriamente como manchas em uma tela em branco. Em um ponto, o sol era apenas um círculo luminoso no centro de um aro de luz. Noah já tinha lido em algum de seus livros de ciências sobre esse fenômeno que acontecia quando a umidade atmosférica ficava alta, criando um arco-íris ao redor do sol, mas não lembrava que poderia ter essa intensidade e essa coloração.
- Pessoal, chegamos – falou Anselmo, empolgado – Ali está.
Os alunos até então distraídos apressaram o passo para passar por Anselmo e Edwiges, com os olhares no fim do caminho que se abria em um espaço maior, além havia o que parecia ser uma montanha, erguendo-se imponente. Noah também andou mais depressa, abrindo caminho entre os colegas para ver o que estava deixando todos tão admirados. Até a professora levantou uma sobrancelha, como fazia ao se surpreender.
O garoto semicerrou os olhos, olhando para o que pensou ser a montanha, percebendo, com surpresa, que não se tratava de uma elevação natural de terra e que não estava distante. Sem que notasse, Noah estava praticamente correndo, junto com os outros, e mantinha o olhar no que estava à frente. Eles chegaram a uma área descampada no fim do caminho, onde, no centro, elevava-se uma pirâmide de vários metros de altura, com uma cor cinza de concreto ou rocha. Ela parecia feita de camadas, com partes sobrepostas e no meio do lado voltado para eles corria uma escadaria de muitos degraus do topo à base, no mesmo estilo das pirâmides sul-americanas.
- Formidável, não é mesmo? – perguntou Anselmo, orgulhoso, ao se juntar aos alunos que andaram um pouco mais, se aproximando da pirâmide, hesitantes. Um garoto foi até ela, tocou na cabeça de dragão na ponta de um dos corrimões de pedra que subiam com a escada e subiu um degrau. Ele parou e olhou para trás, de repente ciente de que Anselmo poderia não gostar.
- Não subam. Pode ser perigoso – foi Edwiges que falou.
- Não se preocupe. – disse Anselmo – É seguro e vamos subir para dar uma olhada lá em cima.
- De fato, impressionante. Vejo que é uma pirâmide maia – disse Edwiges.
- Exatamente – Anselmo confirmou – Uma replica dessa é um sonho realizado.
Edwiges o ouviu, tentando transmitir seriedade e interesse acadêmico, porém sabia que a estranheza que sentia em relação àquilo transparecia em seus olhos. Estava acostumada a ler em revistas sobre milionários excêntricos que construíam campos de golfe em seus jardins ou pequenas ferrovias com trenzinhos em seus porões e quando ela ouviu falar que alguém estava construindo uma pirâmide em uma fazenda, pensou se tratar de uma esquisitice assim. De cara com a construção, como estava naquele momento, viu que não se tratava de um mero hobby bobo e se perguntou a que nível de loucura uma pessoa precisava chegar para gastar seu tempo e dinheiro construindo uma pirâmide onde morava e ainda ter isso como um sonho realizado.
- Senhor Anselmo, poderia explicar para os alunos sobre essa pirâmide? – Edwiges perguntou, sendo muito sincera no pedido. Ela própria queria entender o porquê daquilo.
- Claro! – Anselmo andou até a pirâmide e os alunos, com a professora, ficaram em volta em um semicírculo ao pé da escadaria que levava para o topo.
O homem subiu um degrau e pôs o pé direito no degrau seguinte, em uma pose que manteve durante alguns instantes.
- Foi assim que tirei a foto para o pessoal de um blog que veio fazer uma matéria sobre mim – Anselmo falou.
Sofia se virou para Noah e fez um gesto discreto, girando o dedo indicador ao lado da cabeça.
- Maluquinho.
Por sorte, Anselmo não a ouviu dessa vez.
- O que estão vendo é uma réplica do templo do sol dos maias. A verdadeira fica na cidade mexicana de Teotihuacan. Essa pirâmide tem apenas um quinto do tamanho da original, mesmo assim é bem grande, não é? – Anselmo correu o olhar pela sua platéia, aproveitando toda a atenção – Dúvidas?
Uma menina no canto levantou a mão.
- Por que a construiu?
O fato de ser uma perguntar simples, talvez a mais simples de todas, não impediu Anselmo de se incomodar.
- Bem... Eu sou um admirador dessa cultura e achei oportuno ter uma cópia do templo – ele falou. Era a resposta que sempre dava quando lhe faziam aquela pergunta – Muito bem. Quem quer subir?
Os alunos levantaram a mão gritando “eu!” repetidamente. Anselmo pediu que ficassem calmos.
- Pessoal, não é possível subir todos de uma vez, não iria caber tanta gente, de modo que serão divididos em dois grupos. Um sobe primeiro e depois vai o outro. Vou deixar a professora selecionar.
Edwiges abriu caminho pela turma e subiu um degrau da escadaria. Os alunos a olharam com expectativa e ela começou a citar nomes e apontar para alguns dos rostos entusiasmados.
- Vocês – disse ela, ao terminar – Irão primeiro. Os outros ficam aqui e esperam. Daqui a pouco sobem também.
- Então, vamos lá – Anselmo falou, virando de costas e subindo. A professora foi em seguida, pisando com cuidado nos degraus de pedra como se não tivesse certeza do que estava fazendo. O grupo que ela selecionou a acompanhou, alguns segurando nos corrimões, meninas segurando na mão das amigas, outros rindo e contando piadas que Edwiges achou de péssimo gosto, sobre empurrões e escorregões.
Os outros que esperavam sua vez de subir, entre os quais estavam Noah e Sofia, observavam o grupo avançar para o topo durante alguns minutos, mas eles não ficaram de plantão com o rosto voltado para cima o tempo inteiro. Rapidamente eles se espalharam. Sem poderem tirar fotos ou jogar games com os celulares, os alunos apenas vagavam, olhando de vez em quando para o ponto mais alto da pirâmide.
Noah caminhava distraído, chutando ocasionalmente uma espiga de milho jogada no chão. Ele olhou novamente para o céu e viu o brilho ao redor do sol, oscilando entre amarelo e laranja cada vez mais vibrante através das nuvens, como uma vela atrás de uma fina cortina branca. Sofia, que estava com ele, corre até a orla da clareira, onde começava a plantação de milho. Se ela viu algo que pareceu promissor, se decepcionou, porque ela se virou chateada e dando de ombros. Aparentemente esperava encontrar um artefato alienígena. Noah a viu fazer uma expressão estranha ao olhar para ele e antes que pudesse perguntar o que ela tinha, ele sentiu um par de mãos o empurrando pelas costas. O garoto caiu e ficou com a cara rente ao chão, impedido de sentir o gosto da terra pelos braços com os quais se apoiou. Ele se virou e viu o rosto do garoto robusto que infestava seus pesadelos e o fazia suar frio, embora Noah não admitisse o medo que sentia.
- Ora, ora... Se não é o ET. Procurando o disco voador? – falou o garoto, cujo rosto era salpicado de espinhas.
- Ryan – falou Noah, entre dentes.
- O que foi? Perdeu a força nas pernas agora que está longe da professorinha?
Sofia se aproximou e estendeu a mão para ajudar Noah, mas ele a rejeitou e se levantou sozinho, batendo a terra para fora de seus braços e de sua calça.
- Sabe de uma coisa? – disse Ryan – Já que você tem tanta intimidade com os ETs, podia pedir para eles nos darem uma carona para a feira de ciências. É melhor que ficar perdendo tempo fazendo círculos nas plantações e abduzindo vacas. Se bem que tenho uma desconfiança de que são seus pais que fazem isso.
A face de Noah ficou rubra e ele cerrou os punhos. Podia sentir Sofia ao seu lado, praticamente puxando seu braço em um pedido silencioso para que saíssem dali. Mas ele não queria fugir como um animalzinho assustado. Mesmo que ela não tenha falado sério no ônibus sobre brigar, havia um fundo de verdade naquilo. Ele não podia viver à sombra da professora o resto da vida. Uma hora ele precisaria lidar com Ryan cara a cara.
- Por que não vai encher outro e me deixa em paz, Ryan?
- Opa! – Ryan levantou as mãos, simulando surpresa – E não é que ele sabe falar? Queria ver essa valentia antes para falar diretamente comigo e não com a Daniela.
- Daniela? Do que você está falando? – falou Noah, confuso. Já era bastante ruim o que sofria com as provocações de Ryan e ele não era idiota para atrair mais problemas pelo menos olhando para a garota que ele gostava.
- Não se faça de desentendido – disse o menino mais alto – Sei que andou falando com ela para me convencer a não falar mais com você.
- Eu não falei com ninguém. Quem te disse isso mentiu.
- Conta outra!
- Aliás – falou Noah – Quem te falou isso?
- Ninguém precisou me falar. De repente Daniela está entregando tudo o que é de trabalho atrasado e me vem com um papo de que eu pego pesado com você e tenho que ser seu amiguinho. Conta a verdade. Você está fazendo os deveres dela e em troca ela me vem com essa conversa, não é?
- Olha... Sinceramente não sei do que está falando – Noah passou por Ryan, mas este puxou seu braço, o fazendo olhar para ele novamente.
- Eu ainda não acabei, ETzinho.
- O que você quer?... Eu posso jurar que não falei com a Daniela. Até porque eu não precisaria disso – Noah falou a última parte por impulso e se arrependeu.
- Ah... Não? Não tem medinho de mim, é? – Ryan empurrou Noah que foi ao chão pela segunda vez – Quero ver se é homem o suficiente para me encarar, sendo terráqueo ou não.
Envenenado de raiva, Noah se levanta e parte para cima do outro garoto.
O topo da pirâmide tinha aproximadamente dez ou doze metros quadrados com uma espécie de mesa de pedra no centro, feito um altar. Anselmo estava encostado ao parapeito, explicando quando terminou de construí-la e o cimento utilizado, mas os alunos nem a professora prestavam atenção no que ele dizia. Eles apreciavam com mais interesse a vista que tinham da fazenda, com os círculos marcados se destacando no manto verde das plantações de milho. Edwiges nunca acreditou que eles realmente tenham sido feito por extraterrestres. Outras marcas parecidas tinham aparecido há anos em outros países e todas elas tinham sido desmentidas. Mas ela não deixava de admirar o interesse com que os alunos apontavam para elas, e se perguntou se não haveria realmente um fundo de verdade naquilo.
- Professora! – chamou uma garota.
- Sim? – Edwiges se virou.
A menina apontou para baixo, próximo da pirâmide e Edwiges viu um menino que ela não reconheceu de imediato, segurando outro garoto em uma chave de pescoço. Uma menina loira batia no ombro do maior distribuindo xingamentos e os outros se aproximavam e ficavam ao redor. Não era preciso ouvi-los direito para saber o que estavam gritando: “Briga! Briga! Briga!”.
- Ai... Não!
- O que foi? – Anselmo perguntou.
- Problemas. Eu agradeço por sua incrível recepção, senhor Anselmo, mas talvez esteja na hora de voltarmos para o ônibus – com isso a professora se virou e, após poucos passos, encarou o início da longa escadaria que a levaria para baixo.
- Solta ele! – Sofia batia insistentemente em Ryan até que ele soltou Noah que caiu com as mãos na garganta. Sofia o ajudou a levantar.
- Você precisa até da sua namoradinha para te defender.
- Ela... – Noah engasgou – Ela não é minha namorada.
- Bem que ela gostaria de ser. Daniela já me contou que ela tem uma quedinha por você – Ryan parou de falar e sua expressão se iluminou, como se tivesse tido uma revelação. O canto de sua boca subiu em um sorriso sarcástico – Claro! Por que eu não percebi isso antes? Foi você, não foi? É você que anda fazendo os deveres de Daniela para ela me convencer a ficar longe do Noah. Agora estou me lembrando que já vi vocês juntas uma vez. E ela não me contou nada. Quem diria. É mais sério do que eu pensei.
Noah se virou para Sofia, sentimentos conflitantes em seu rosto. Não levou a sério o que Ryan tinha falado sobre ela gostar dele, mas a segurança com que ele falou sobre Sofia e Daniela o afetou e ele não sabia que pensar sobre aquilo.
- Sofia, diz que você não fez isso – Noah pediu. Queria acreditar que tudo não passava de um delírio e que ela não teria tendo influenciar Ryan mesmo que indiretamente sem ter falado com ele primeiro. Ele esperou uma resposta da amiga que estava paralisada, olhando os colegas cochichar uns com os outros em volta. Ela olhou nos olhos de Noah, visivelmente agitada. Seria fácil para ela negar se Ryan estivesse errado, o que não era o caso. Para a surpresa de Noah, Sofia se vira e vai embora pela estrada pela qual chegaram.
- Sofia! – ele foi atrás dela.
- Ah... O amor – disse Ryan, em deboche. Ter percebido que era Sofia que estava de conversinha e tramóia com Daniela, e não Noah, o tinha aliviado mais do ciúme e o deixado contente, apesar de não ter gostado de Daniela ter aceitado se rebaixar ao plano da garota e não ter lhe contado a verdade.
Ele olhou para trás e viu a professora descendo da pirâmide acompanhada pelos alunos. O jeito firme de seus passos e o olhar dela fixo em sua direção indicava claramente que vinha encrenca para ele, mas Ryan não ficaria parado, esperando de bom grado as broncas de Edwiges. Ele aproveitou a saída de Noah e Sofia e foi atrás deles. Se tivesse sorte, a professora pensaria que ele estava seguindo eles para pedir desculpas, embora soubesse que era muito mais provável que pensassem que ele queria apenas continuar zoando Noah, o que, tinha que admitir, era justamente o que tinha vontade.
Os demais alunos que estavam acompanhando a briga se dispersaram ao ver a professora se aproximar, com receio de que acabasse sobrando para eles, e se misturaram com o resto da turma que estava com Edwiges quando ela seguiu pelo caminho. Chateados por não terem subido na réplica do templo do sol ou querendo ver mais briga, todos deixaram a pirâmide para trás, devolvida à sua solidão silenciosa.
- Ryan! – a professora o chamou, se esforçando para alcançá-lo. O garoto fingiu que não ouviu e continuou andando. Noah e Sofia tinham sumido ao longe e outros estudantes passavam por ele para chegarem primeiro ao ônibus que ainda não era avistado.
- Ryan! – Edwiges falou de novo, mais próxima, e o menino percebeu que continuar fingindo não ouvir seria pior. Ele parou, chutando a terra de forma impaciente, e não ousou se virar quando a professora chegou.
- Deveria ter percebido que era você assim que vi a briga. Não consegui passar um dia sem aprontar uma? – disse Edwiges, enfurecida. Anselmo vinha logo depois dela.
- Não aprontei nada – falou o garoto – Noah é que não sabe brincar.
- Eu disse que se você mexesse com Noah mais uma vez, receberia suspensão. Com essa briga, não vamos ter outra escolha. Chamaremos seus pais para uma conversa.
- Mas...
- Chega! – falou Edwiges – Foram lhe dada todas as chances. Mais do que pessoas como você merece. Vamos falar com seus pais e não duvide que eu faça o que estiver ao meu alcance para que essa suspensão se torne expulsão.
Ryan emudeceu e, mordido de raiva, se virou para continuar seu caminho, sem dar à mínima se a professora teria algo mais para falar.
- Foi bem dura com ele – disse Anselmo. Provavelmente tinha sido um pensamento alto e não um comentário que ele esperasse que Edwiges ouvisse, porque se surpreendeu quando ela se virou para ele.
- Você não conhece Ryan. Ele tem nos dado problemas há tempos. Vive brigando e implicando com os colegas, principalmente com Noah – Edwiges continuou andando e Anselmo a acompanhou.
- Aquele garoto com quem ele estava brigando? – perguntou o ufólogo, que tinha pegado do alto da pirâmide o vislumbre de um menino de cabelo escuro assanhado e calças jeans esverdeadas.
- Sim. Tenho vontade de puxar a orelha de Ryan toda vez que ele chama Noah de ETzinho.
- Por que ele o chama assim?
- Tem a ver com o jeito esquisito dos pais deles. Parece que um dia eles acharam que o filho tinha sido abduzido por alienígenas.
- E foi? – Anselmo perguntou, rápido demais – Quero dizer, tudo foi esclarecido?
- Sim. O menino tinha apenas se perdido. Claro que um casal hippie saindo gritando e espalhando que seu filho tinha sido raptado por extraterrestres, sendo que ele estava apenas andando por aí, virou motivo de chacota. Ainda hoje Noah sofre com isso. – Edwiges falou e continuou caminhando, tão distraída que não notou que Anselmo tinha parado e ficado para trás. Um sorriso sutil e enigmático se fazia presente no rosto do ufólogo, a pensar sobre abduções.
A professora já podia ver o moinho e um pouco do telhado da casa por cima das plantas próximo a ela e viu também o momento em que os alunos correram, sumindo para o terreiro de onde vieram gritos de susto. Seu coração pulou uma batida. “Outra briga?” ela pensou e outras idéias vieram à sua mente, fazendo-a gelar. Era impossível sair em excursão com tantos adolescentes confiados a ela sem sentir uma pressão lhe oprimir o peito. A tensão era uma constante nessa equação rica de variáveis. Bastava uma criança perdida, um acidente, um ferimento, e ela nunca se perdoaria.
Edwiges se apressou agitada. Ela chegou ao terreiro e viu os alunos se aglomerando em volta de algo. O ônibus estava atrás deles, apitando enquanto dava a ré. Todos falavam ao mesmo tempo, uma trovoada de vozes de onde se podiam identificar trechos soltos: “acidente” “Bem?” “Machucada?” “Saiam de perto” “deixem-na respirar” “Dêem espaço” “Fiquem calmos”.
Cada palavra era uma faca na mente de Edwiges, uma corda apertando o laço em seu pescoço. Ela quis correr e o fez apenas ao ter certeza de que sentia suas pernas e que o chão não se dissolveria sob seus pés.
- O que houve? – ela entrou em meio aos estudantes e encontrou no meio do espaço uma aluna sendo ajudada pela amiga a se levantar. Ela segurava o ombro e exibia uma expressão de dor.
- Dulce... O que você tem? – a professora foi até elas.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo, sem que ela entendesse o que se passou.
- Foi um acidente! – a voz de Ivo se elevou. Ele tinha saído do ônibus e corrido até ela – Perdi o controle do ônibus por um minuto e ela foi atropelada.
- O quê?! – Edwiges estava chocada – Ela foi atropelada?
- Não – disse a menina que ajudava Dulce a ficar de pé – Na hora que o ônibus vinha, ela conseguiu se desviar. Pegou só no ombro.
- Está doendo muito, Dulce?
- Está... Um pouco...
- Vamos para o hospital.
- Tenho quite de primeiros socorros, se precisar – falou Anselmo que tinha chegado e acompanhado tudo.
- Agradeço muito, mas é melhor levarmos ela ao hospital. Não temos certeza o quão grave é. Ivo, o ônibus está concertado?
- Sim. Verificamos. Não há nada de errado com ele.
- Ótimo. Vamos – Edwiges pôs o braço de Dulce em volta do pescoço – Consegui andar?
A menina fez que sim e a professora a levou devagar até o ônibus.
- Tem certeza que não querem cuidar dela aqui? – perguntou Anselmo, mais por gentileza.
- Tenho. Foi bom conhecê-lo, senhor Anselmo. Vemo-nos em outra ocasião. Estão todos aqui? – Edwiges perguntou e os alunos confirmaram – Muito bem. Tchau – ela ajudou Dulce a subir para o ônibus, onde Ivo já estava no banco do motorista. Anselmo se afastou para a varanda e depois que a turma subiu no veículo, se acomodando em seus lugares, eles partiram tão aturdidos com o pequeno acidente com Dulce que não perceberam que ainda faltavam dois estudantes.
Noah precisava admitir que Sofia corresse muito mais rápido que ele quando queria. Depois que a perdeu de vista ao virar para o terreiro, ele estava convencido de que a encontraria no ônibus. Ele subiu no veículo enquanto Ivo ligava o carro e murmurava que estava tudo bem, e se frustrou. Não havia ninguém. Perguntou ao motorista se a tinha visto e ainda a descreveu, caso ele não a conhece de nome. Ivo disse que tinha visto uma menina com aquelas características passar para o outro lado dois minutos antes. O garoto agradeceu e foi na direção que ele indicou, deixando o motorista ligando o carro e o motor roncando. Isso foi há uns bons minutos e ele ainda não tinha visto nem sinal da amiga.
- Sofia! – ele chamou. Já tinha se distanciado da casa grande, mas podia ver onde ela estava principalmente pelo moinho que ficava perto. Seria desastroso se ele se perdesse na fazenda. Noah desceu por um caminho e chegou a um curral. As vacas iam e vinham entre as cercas, agitadas. Pareciam desconfortáveis. O garoto até pensou que fosse por causa de sua presença, mas não fazia sentido. Elas deveriam está acostumadas com a presença humana. Além do mais, não apenas elas apresentavam um comportamento anormal. Ele olhou para cima e viu uma ave voar em ziguezague no ar, como se tivesse sido envenenada ou drogada em pleno vôo.
Por fim, o garoto viu que era perda de tempo continuar procurando Sofia. Era melhor voltar para o ônibus e esperá-la por lá. Na hora de ir embora ele falaria com ela e diria que não estava bravo. Mas havia motivo? Tudo bem que fazer os deveres de Daniela e pedir para ela pedir a Ryan que o deixasse em paz era um plano arriscado e ela não ter contado a ele e ainda a forma como tudo foi exposto foi muito humilhante para Noah, mas ele sabia que ela queria apenas ajudar. Teria dito isso se ela não saísse literalmente correndo dele. O temperamento impulsivo de Sofia era algo a ser trabalhado.
Ele estava prestes a se virar quando reparou no que parecia ser um celeiro ou um estábulo não muito longe de onde estava. Será que Sofia estaria lá? Ele observa com mais atenção e percebe o brilho metálico de uma imensa antena no telhado. Por que alguém precisaria de uma antena daquelas em um celeiro? Noah se perguntou, mas ele nunca poderia ir verificar. Um pano com um cheiro estranho envolveu seu rosto e o garoto desfaleceu, caindo no vácuo da inconsciência.
O mundo foi se materializando em sensações, na medida em que ele recobrava a consciência. Sentiu seus pés presos e o mesmo acontecia com as suas mãos, amarradas juntas, e uma corda enrolada em seus pulsos. Sentiu também a superfície fria e dura em que estava deitado. Ele abriu os olhos e foi ofuscado pelo brilho amarelado do sol. Quando sua visão se acostumou, viu a silhueta de alguém ao lado, entrando em foco.
- Acordou rápido – falou uma voz masculina – Foi difícil trazê-lo aqui. É mais pesado do que eu pensei.
- Anselmo? – falou Noah, confuso.
- Os outros me chamavam de senhor Anselmo – o homem disse, com um sorriso.
- Que lugar é esse? – o garoto olhou para os lados, levantando o pescoço, não vendo nada além de peitoris de pedra e o céu nublado – Por que estou amarrado?
- Calma. Uma pergunta de cada vez – Anselmo falou, se sentando na beirada do altar em que Noah estava - Se quiser mesmo saber, estamos no topo da pirâmide.
- Onde estão os outros? A professora?
- Foram embora.
- Hã? – Noah estava incrédulo – Não pode ser. Não iriam sem mim.
- Mas foram. E fico feliz que tenha ficado. Queria mesmo falar com você. Somos mais parecidos do que pensa, Noah. A professora me contou tudo. Que você foi abduzido quando menor. E que implicam com você por causa de sua relação com os alienígenas.
- Nunca fui abduzido. Foi tudo um engano.
Anselmo suspirou, arrastando um som do fundo da garganta.
- Tem certeza?
- Claro.
- Tudo bem. O importante é que você me parece ser um rapaz inteligente, vem de uma família que gosta de extraterrestres e vai me entender.
Noah se debate tentando se livrar das cordas que oprimiam seus membros e machucavam sua pele, principalmente nos pulsos.
- Quer me soltar, por favor?
- Não posso. Preciso de você para me comunicar com eles.
- Eles quem?
- Com os alienígenas, cara. Esses círculos nas minhas plantações são tentativas de comunicação, sabia? Eu preciso me comunicar com eles. Estabelecer um diálogo. Foi por isso que eu construí essa pirâmide. Não sei se você já leu o livro “Eram os Deuses astronautas?” – ele esperou Noah responder – Pois bem, no livro o autor lança a teoria bastante fundamentada de que culturas antigas tiveram contatos diretos com seres de outros planetas e que estes são os responsáveis pelo prodigioso desempenho dos antigos nas ciências, o que se inclui nesse avanço, a construção das pirâmides. Ora, o que seria melhor para eu me comunicar com eles do que com algo que eles mesmos projetaram?
- Senhor Anselmo, não sei que jogo é esse, mas não quero participar. Vai ver que esses círculos nem foram feitos por extraterrestres. Talvez eles tenham sido feitos por humanos.
Anselmo riu.
- Claro que foram feitos por humanos, seu besta. Eu mesmo os fiz.
Noah abriu a boca, em surpresa.
- Foi você?
- Sim. Eu disse que eram tentativas de comunicação. Minhas tentativas. Eu fiz essas marcas.
- Então...
- Há outros sinais que não se pode ver – Anselmo o interrompeu – Eu tenho um pequeno observatório na fazenda, você deve ter visto. Tenho captado ondas em uma freqüência que só pode ser alienígena. Estou monitorando elas há meses, e tenho percebido que estão cada vez mais fortes. Entrei em contato com observatórios e eles me disseram que essas ondas exóticas são efeitos das manchas solares e que rapidamente elas cessariam. Estão todos terrivelmente enganados. Eu as estudei exaustivamente e não correspondem a qualquer outro fenômeno natural. São alienígenas tentando se comunicar, provavelmente dando um ultimato. Eu avisei, mas ninguém quis me ouvir. Nem mesmo meus colegas ufólogos. Disseram não ter certeza da procedência delas e que se a NASA não se importa com elas é por que realmente não são importantes. Hipócritas. Eu fiz esses círculos, querendo chamar a atenção das pessoas e dos alienígenas, já que não posso enviar ondas na mesma freqüência. A maioria das pessoas não trata o assunto como se deve e quanto aos extraterrestres, eles talvez não compreendam. Então, tive a idéia de fazer essa pirâmide para eles verem e hoje... Ah... Veja – Anselmo apontou para cima, para a luz dourada se espalhando a partir do sol, incendiando as nuvens – Esse é o sinal. O último sinal. Eles estão chegando. Os ufólogos sempre disseram que os alienígenas preparavam algo grandioso para a terra e se as pessoas olhassem para o céu veriam que é hoje. Por que ninguém olha mais para o céu? – perguntou Anselmo e Noah viu, como que em um lance de luz, que não era a reta razão que estava por trás daquelas palavras e sim uma obsessão doentia.
- O que você fará comigo?
Como resposta, Anselmo levantou a mão e nela estava uma faca que o garoto nunca tinha visto antes, com uma lâmina feita de um material semitransparente da cor de âmbar.
- Sabe o que os maias faziam nos altares dos templos? Eles matavam. Deve ser uma cerimônia alienígena, já que as pirâmides foram feitas por eles. Devo agradecer por sua professora ter parado aqui, justo hoje. Deve ser o destino. Agora tenho você e vou preparar um banquete para nossos visitantes, feito de sua carne e de seu sangue, tal como nos tempos antigos.
Noah se contorceu, tentando se livrar das cordas que o prendiam à mesa de pedra.
- Não!... Você não pode... – o garoto falou. O brilho nos olhos de Anselmo indicava que ele não estava brincando – Socorro! – Noah se debateu e Anselmo o segurou pelos ombros, o pressionando contra o altar.
- Não adianta gritar... Estamos sós – ele falou e o barulho de estalo quicando o interrompeu. Anselmo olhou em volta – O que foi isso? – ele perscrutou com o olhar perspicaz.
Outro barulho de estalo oco foi ouvido e uma pedrinha rolou pelo piso da pirâmide. O ufólogo soltou o garoto e a pegou.
- Tem alguém aí? – ele falou, após examinar a pedrinha, e foi até o parapeito – Não pode ser o Agnaldo – Anselmo se virou para Noah – Vou conferir o que é. Fique quietinho aí se não quiser rolar escada abaixo e morrer mais cedo – disse Anselmo e sumiu da vista de Noah, descendo pela escadaria.
O garoto se contorceu, tentando se desvencilhar das cordas, mas tudo o que conseguia era ficar mais dolorido e cansado de tanto esforço. Ele ouviu passos. Aparentemente Anselmo estava voltando e ele ainda não tinha se libertado um milímetro, mas não foi o ufólogo que apareceu da direção da escada.
- Sofia! – disse Noah com uma mescla de alívio e surpresa. Os cabelos da amiga pareciam mais brilhantes e dourados; o garoto não soube dizer se era impressão sua, causada pela alegria em vê-la ou se por causa da luz do sol.
- Noah! Que bom que você está bem! – Sofia foi até ele e pôs-se a desatar os nós da corda nas mãos do amigo – Ele te machucou? – a menina falou ofegante, estava com a face brilhando com suor. Antes que terminasse de desfazer os nós e sem que Noah pudesse fazer qualquer coisa a respeito, um par de braços agarrou a menina pelas costas, uma das mãos segurava a faca âmbar.
- Veja só... Outra para se juntar à nossa reuniãozinha – veio a voz de Anselmo.
* * *
Edwiges sabia que otimismo era um luxo àquela altura. Por mais que Ivo tenha chegado muito rápido à cidade, o que a animou e fomentou a esperança de que tudo iria melhorar, os demais fatores não colaboravam para o sucesso da excursão. Eles estavam presos no trânsito de um viaduto que o motorista julgou ser o meio mais rápido para o hospital. Um caminhão bloqueava a passagem deles e o fluxo de carros na outra faixa não dava margem para ultrapassagens. A professora não o culpava pela escolha ter se mostrado um infortúnio, no entanto. Ele que era o motorista experiente e, além do mais, os outros caminhos não seriam muito diferentes. O que ela via da avenida em baixo dava para perceber o trânsito lento e problemático que também enfrentava.
- Professora – chamou uma aluna, vindo até ela – O Noah e a Sofia não estão aqui.
Edwiges suspirou, cansada.
- Eu sei. Já me disseram – ela falou. Estava sentada com Dulce nos primeiros bancos, exatamente atrás do motorista. A maioria dos alunos estava fora de seus lugares, alguns de pé, conversando em grupinhos as bobagens que sempre falavam. Mas Edwiges não se importava mais com a desordem. O passeio estava se mostrando um desastre de qualquer maneira.
- Onde eles estão? – perguntou a garota.
- Devem ter ficado na fazenda. Quando deixarmos vocês na feira de ciências, voltaremos para buscá-los. Não se preocupe. Eles devem está melhor do que nós, se duvidar.
A menina deu de ombros e se virou em uma jogada de cabelo para voltar a conversar com a colega. Perto de onde ela se sentou, Ryan permanecia emburrado. A ameaça de expulsão funcionou para ele se comportar por um tempo.
- Não tem mesmo como andar mais rápido? – a professora se inclinou para o motorista.
- Não – Ivo buzinava para o caminhão da frente – O trânsito está péssimo. Um carro deve ter quebrado em algum lugar ou houve um acidente.
Edwiges olhou para Dulce.
- Agüente mais um pouco. Está doendo muito?
- Não. Está melhor – a menina falou. Se o braço não estava doendo como antes, passou a doer quando foram jogados para frente com o impacto que atingiu a traseira do ônibus.
- Ivo! – a professora se recompôs.
- Droga! Alguém bateu na traseira.
O ônibus deu a ré e eles sentiram outra batida, o estampido de metal contra metal veio com um solavanco. Os faróis traseiros do caminhão acenderam, indicando que ele iria dar a ré. Ivo girou o volante para sair do caminho, a frente do ônibus invadiu a outra faixa e um carro por um triz não se chocou com ela. O veículo ficou em posição diagonal na pista, buzinando e apitando, os faróis descontrolados, piscando como enfeites de natal.
- Ivo, o que está acontecendo? – Edwiges se dividia entre se segurar e acalmar Dulce que estava praticamente chorando, segurando o braço.
- Não sei! – Ivo estava aturdido, girando o volante e apertando os pedais aleatoriamente – O carro não responde, não estou...
Uma menina grita ao fundo. Ela jogou o celular no chão e o aparelho explodiu, feito uma bombinha de festa junina. Foi o necessário para o pânico se instaurar mais entre os colegas. A professora gritou por calma, mas sua voz não se sobressaia sobre o barulho dos estudantes. O caminhão deu a ré e a caçamba começou a levantar, parecendo querer esmagá-los. O ônibus saiu e invadiu a outra faixa. Uma moto passou e Edwiges viu horrorizada, o motoqueiro perder o controle e atingir a barreira de contenção, caindo do outro lado.
Todos os outros veículos perdiam o controle, atropelando uns aos outros. Sons de buzina, apito, freio, derrapagens, gritos e colisões formavam a macabra sinfonia do caos. A rodovia tinha se transformado em um brinquedo de bate-bate de parques de diversões, mas a brincadeira não era divertida.
- O que está acontecendo? – perguntou Dulce, chorando.
A professora tomou fôlego, sem saber responder. Mais gritos vieram do fundo. Celulares explodiam, roupas rasgavam e se chamuscavam, mãos sangravam. Uma bolsa pegou fogo quando o tablet nela explodiu e a dona a jogou no chão. Os outros a pisoteavam para apagar o fogo. Estavam de pé, assustados demais para lembrarem-se das dicas de segurança no trânsito que receberam na escola. Um menino asmático permanecia em seu banco, se concentrando para não perder o fôlego. Ivo amaldiçoava ao volante.
Edwiges abraçava Dulce, sua mente era um limbo mais lento que a realidade que parecia um pesadelo. Um carro bateu na lateral e todos foram jogados para o lado. Se fosse maior ou se estivesse com mais velocidade, eles teriam virado. O transe na mente de Edwiges foi interrompido pelo som ensurdecedor do que pareceu ser o bater de asas de um gigantesco beija-flor de aço. Ela não sabia o que era, mas devia ser assustador, pois os motoristas abandonavam seus carros e corriam olhando para cima e gritando algo sobre queda e cuidado.
Uma sombra deslizou pela pista, os encobrindo como um manto e avançou para longe. A professora a seguiu e viu pelas janelas do outro lado do que se tratava. Um helicóptero rodopiava no ar, caindo semelhante a uma ave abatida, em pane como os carros, e atingiu o viaduto, metros de onde eles estavam. Um estrondo parecido com o som de mil trovões em uníssono se propagou, ferindo os tímpanos de todos, e o clarão os atingiu com um terremoto reverberando pelo lugar.
- Saiam! – Ivo gritou e abriu as portas do ônibus – Saiam agora!
Os alunos se esbarravam uns nos outros, correndo para fora. O ônibus estava acelerando de ré, preso ao caminhão e outro carro, o que gerava certa estabilidade para os estudantes que saiam e corriam pela pista, se desviando dos carros se movendo para frente e para trás, a maioria abandonado.
As chamas ardiam onde o helicóptero tinha caído e no momento em que a professora conseguiu sair do ônibus com Dulce, ouviu-se o som de uma avalanche de concreto e uma nuvem de poeira e fumaça irrompeu para cima. Parte do viaduto tinha cedido, caindo na avenida embaixo e esmagando os que lá estavam. No fosso formado caiam os veículos que patinavam na pista do viaduto, sem controle.
- Para o outro lado! – Edwiges gritava, ajudando Dulce – Para o outro lado! – ela gesticulava para a barreira de contenção. Seus alunos corriam difusos pelo caos, óleo e gasolina espalhados pela pista os faziam escorregar. E também pelo chão estavam o sangue e os corpos de pessoas atropeladas, mortas pelos carros tomados de vida própria e enlouquecidos.
Edwiges chegou à barreira e ajudou Dulce a passar para o outro lado.
- Aqui! Aqui! – ela gritava. Os alunos correram para ela, ziguezagueando pelos automóveis. Ryan pulou por cima de uma motocicleta caída, acelerando sozinho com os pneus levantados e soltando fumaça pelo carburador.
Os primeiros chegaram e fizeram o melhor para pular a barreira e se juntar à professora. Quando não faltou mais nenhum, ela correu com os alunos pela área de pedestres, os sentidos deles castigados pelo calor das chamas dos veículos, pelo barulho dos gritos e batidas e pelo cheiro de gasolina.
Ignorando as dores, eles chegaram à descida do viaduto e se esbarraram com outras pessoas que também tentavam se salvar, uma corredeira de gente em pânico indo para baixo. Um rapaz pulou pelo corrimão e ficou onde caiu, desacordado.
Conseguiram chegar à rua e viram ao longe, carros capotando, rolando pela encosta da montanha de escombros do lugar do viaduto onde o helicóptero tinha caído. Uma carreta estava virada na pista e todos correram para o outro lado. Eles seguiram pelas calçadas pavimentadas pelos estilhaços de vidro, concreto e pedaços de aparelhos que tinham explodindo. Mais à frente, um banco queimava devido à explosão simultânea de todos os caixas eletrônicos e depois uma caminhonete que tinha invadido a calçada completava o bloqueio da passagem.
- Aqui! - gritou um homem, e subiu no capô de um carro. Naquele trecho da avenida, o engarrafamento fazia com que os automóveis ficassem pressionados uns contra os outros, sem poderem se mover, tornando-os a melhor opção para se chegar ao outro lado da rua.
As pessoas pulavam por cima dos carros como que fugindo dos incêndios dos prédios e das vitrines de lojas, o que foi imitado pela professora e por seus alunos. De algum lugar veio um estrondo e aflorou o cogumelo de fogo de uma explosão e o desespero pela fuga fez com que tropeçassem por cima dos veículos, sem se importar com as pessoas dentro deles que, sem poderem abrir as portas, clamavam por suas vidas, tentando quebrar o vidro das janelas e pára-brisas para sair. Algumas tossiam sufocadas pela fumaça do fogo causado pelos aparelhos que transportavam. Celulares, notebooks e tudo o que fosse eletrônico ainda estalavam em faíscas e estilhaços. No cruzamento, os semáforos alternavam freneticamente entre verde, amarelo e vermelho em um ritmo desordenado e sem sentido. Toda a tecnologia humana era um joguete nas mãos de forças obscuras.
- Diego! – a professora gritou para o aluno que tinha acabado de pular para a calçada – Ajude Dulce – ela ajudou a garota com quem passava pelos carros a chegar ao meio fio. O garoto ajudou a colega a descer e, pondo o braço dela em volta do seu pescoço, correu para a esquina.
Na calçada, Edwiges olhou para trás, à procura de seus alunos. Ela contou as fardas laranja chegando junto com outras pessoas ao lado da rua em que se encontrava, desejando em uma oração silenciosa em meio ao som de buzinas e alarmes que estivessem todos bem. Somente então ela se deu conta de que não tinha visto Ivo sair do ônibus. Os sentimentos cortantes de tristeza e preocupação a trespassou. A professora esquadrilhou a rua em volta, tentando ver mais alguém conhecido, e avista uma de suas alunas com a perna presa entre dois carros. Edwiges subiu em um capô e, afastando cacos dos pára-brisas, engatinhou até ela.
- Fique calma. Vou lhe ajudar – a professora falou em seu ouvido, devido ao barulho. Ela pegou a perna da garota e a puxou com cuidado, deslizando ela entre os dois carros até onde um espaço maior entre eles a permitiria libertá-la. Antes que conseguisse, a menina toca em suas costas para lhe chamar a atenção. Edwiges se vira para ela. A menina olhava boquiaberta para cima, e levanta o braço, apontando. A professora seguiu seu olhar e, entre prédios e colunas de fumaça dos focos de incêndio, ela viu estrelas amarelas como fragmentos vivos do sol contra o céu nublado do dia. E foi vendo tais estrelas – que não eram estrelas, na verdade – cortando as nuvens como uma procissão de tochas em um nevoeiro, que Edwiges soube que o pior ainda estava por vir, e vinha com a fúria de um exército celestial.
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