Na Barriga do Verme
Na Barriga do Verme
Jorge Linhaça
Os monstruosos vermes percorrem as entranhas da terra serpenteando seus corpos enormes pelos tuneis abertos, buscando por alimento. Filas de condenados se postam diante de suas bocas escancaradas e marcham hipnotizados para dentro dos ventres das feras de encontro ao seu destino. São dezenas, centenas, milhares de almas que se espremem nos intestinos dos vermes. Assumem o papel de parasitas, alimentando-se dos monstros que se alimentam deles, numa simbiose quase que inexplicável.
Os vermes chegaram há décadas, atravessando o oceano e chocando seus ovos em Terra Brasilis. A verdade é que os monstros são famintos, precisam de grande quantidade de alimento e por isso até agora se restringiram a algumas grandes capitais, pois, em cidades menores pereceriam de fome por falta de alimentos.
Caminhei junto com uma multidão para dentro de um dos monstros para ver como é, e poder contar a todos, os sentimentos e angústias que se instalam em cada um dos seus segmentos. No ventre do monstro que me engoliu, o calor é insuportável, centenas de almas disputam o exíguo espaço onde dá-se por feliz aquele que consegue encontrar espaço para os seus pés.
Manter-se de pé é uma tarefa ao mesmo tempo facilitada e complicada pela grande quantidade de seres ali amontoadas, mormente quando o monstro resolve desacelerar para capturar mais vítimas ao longo dos túneis, nesse momento a sensação é de que a lei de Newton, que reza que todo corpo em movimento tende a permanecer em movimento, torna-se mais do que real, agarrados àquilo que possam segurar, as pessoas procuram por todos os meios impedir que seus corpos sejam arremessados contra outros corpos ou contra as paredes do próprio monstro. Em algumas das paradas nas praças de alimentação do monstro, algumas almas logram escapar da prisão enquanto outras tantas tentam de todas as formas adentrar às suas entranhas. Nesse momento lembro-me de Dante, da descrição dos condenados a rolar rochas até o cume de um monte de onde as mesmas despencam tão logo seja concluída a tarefa, condenando os pobres diabos a reiniciarem eternamente a mesma ação. Nas bocas do monstro ocorre coisa semelhante, as forças de opõem entre os que querem entrar e os que desejam sair, impedindo que alguns consigam o seu desejo.
Quanto mais o monstro come e regurgita, mais parece aumentar a sua fome, o espaço claustrofóbico torna-se cada vez mais exíguo no ventre do verme gigantesco, o suor escorre pela face de todos os prisioneiros, embora a maioria deles pareça alienada ao que acontece à sua volta, imersos em seu próprio mundo, com fones de ouvidos dependurados em suas orelhas e/ou os olhos fixos nas telas de seus equipamentos eletrônicos. O Condicionamento é tamanho que passaram a achar aquilo natural, aceitável e necessário.
Quando os monstros passaram a cavar seus túneis, poucos eram os que se atreviam a percorrer suas entranhas, mas, aos poucos a curiosidade foi maior e o seu ventre era menos frequentado, no entanto, quando os tuneis foram percorrendo cada vez mais o subsolo da cidade, maior tornou-se o número de pessoas dispostas a parasitarem e serem parasitadas pelos monstros. O monstro se alimenta de nossos sonhos e esperanças, de nossa curiosidade e de nossas necessidades e nós nos beneficiamos (ou achamos que sim) de seus túneis e de sua fome inesgotável.
Difícil encontrar quem já não tenha frequentado os intestinos dos vermes, quem não tenha, por bem ou por mal, viajado nas entranhas dos monstros. Ao redor dos buracos por onde multidões se dirigem para serem devoradas, floresceu o comércio, a habitação, faculdades e Centros de Compras. O monstro devora e é devorado, cada vez aumenta mais o afluxo de pessoas em busca da “proteção” de seu ventre e quanto mais próximo se possa estar das criaturas tanto quanto melhor, embora se pague mais caro por isso. Nada é de graça e tudo tem o seu preço.
O cansaço, o stress de viajar amontoado dentro dos monstrengos, vai minando as forças de seus usuários cada vez mais fracos psicologicamente, cada vez mais se comportando como se fossem manadas, destituídos da própria humanidade, indiferentes ao mal que possam causar a si mesmos e aos outros com o seu desespero incontido de alimentar-se dos monstros subterrâneos. Cada palmo do ventre do monstro é disputado com a fúria de quem pensa apenas na própria sobrevivência, os instintos mais baixos são ali liberados, como se não existissem outros seres humanos ao seu redor, apenas pedaços de carnes que perambulam no mesmo espaço.
O colapso parece ser inevitável, são poucos vermes para tantos parasitas, seus ventres parecem prestes a se romper a cada novo passeio pelos túneis. Os monstros não sentem, não pensam, apenas seguem a sua rotina de engolir e regurgitar os seres quase humanos que encontram pelo caminho. Somos devorados e defecados a cada parada e voltamos às barrigas dos monstros acreditando ser o melhor que podemos fazer por nós mesmos.
A solidão em meio à multidão, os rostos conhecidos e ao mesmo tempo tão desconhecidos como alguém que jamais cruzou nosso caminho. Robotizamo-nos e deixamos a nossa humanidade para quando estivermos em casa ou perto de nossos amigos. Na verdade viajamos na barriga dos monstros, mas não nos damos conta de que, aos poucos, vamo-nos tornando tão insensíveis quanto ele. Deixamo-nos ser absorvidos pela ilusão de pequenas telas de cristal acreditando haver descoberto um novo mundo, onde cada um pode criar seu próprio avatar e ser quem quiser ser, menos quem ele realmente é.
Din-don...”Estação final. Desembarquem pelo lado esquerdo do trem.” Cheguei ao meu destino. Que os céus tenham piedade de minha alma.