A namorada do diabo: Transcrição de um relato
Tenho certeza quase absoluta de que aquele meu leitor que for uma grande connoisseur da História deve estar familiarizado com o fatídico Bal des Ardents de França – e aquele que não for, que procure saber a respeito em outro lugar, pois não é sobre isto que haverei de discorrer.
Em verdade, minha cidadezinha de — foi palco de um acontecimento igualmente insólito, mas por que ele não entrou para a História não sei dizê-lo: seja por minha cidade ser pequena e desimportante se comparada à grandiosa Paris, seja por não ter nenhum imponente monarca envolvido, seja porque os céticos querem desmerecê-la por seu bizarro teor supostamente sobrenatural, presentemente são pouquíssimas as pessoas que estão cientes do estranho caso da namorada do diabo – e menor ainda é o número daquelas que podem relatá-lo com acurácia.
Dentre as esparsas fontes que podem ser consultadas sobre o assunto, a mais confiável, sem sombra de dúvidas, é o Sr. A. G., de 81 anos de idade, residente na Rua E—. Seu avô foi um dos poucos sobreviventes da tragédia que matou mais de uma centena de pessoas: àquele que perguntar, está sempre disposto a contar a história, inclusive acompanhada por velhas fotografias do ancestral que teve grande parte de seu corpo queimada e alguns recortes de jornais da época que, obviamente, não fazem nenhuma menção a eventos inexplicáveis pela Razão – mas, em suas próprias palavras, “ninguém mais se recorda dele, ou do caso, há anos”. Fui, disse-me, o primeiro a perguntar-lhe a respeito em décadas.
O avô do Sr. G. era um dos criados da família R…, latifundiários cuja importância na cidade vinha aumentando exponencialmente naquele tempo. Os restos dilapidados e incinerados de seu enorme casarão ainda se encontram de pé, no cruzamento entre as Ruas T— e S—, aparentando um tanto quanto destoantes em meio às construções mais modernas que hoje em dia os cercam – G. garante que, nos primeiros anos subsequentes ao ocorrido, de acordo com seu avô, aqueles mais supersticiosos até mesmo evitavam passar perto do lugar; se era inevitável deparar-se com aquela ruína no percurso, se benziam profusamente. O patriarca dos R…, Renato, era um homem pio e bondoso, e sua esposa, Amélia, não o era menos; porém, um estranho desequilíbrio sucedeu-se em sua filha Teresa, que desde a mais tenra infância era uma garota pérfida ao extremo. Longe do tempo e uma boa educação lhe suavizarem os modos, aos 18 anos tornou-se uma coquete lasciva e vaidosa que não demonstrava qualquer reverência às autoridades, fossem elas divinas ou terrenas – ganhando, em decorrência de seu mau gênio, o apelido de “a namorada do diabo”.
Volátil e caprichosa, Teresa infernizava a criadagem pedindo-lhes incontáveis coisas (geralmente inventadas por elas no ato), apenas para depois desdizer-se e rir às custas dos pobres e confusos empregados, que aturavam tais impropérios com uma paciência que causaria inveja a Jó devido ao salário, que era pago em dobro pelos R… para incentivá-los a permanecer trabalhando sob seu teto. Entre outras de suas peripécias, se de fato devemos nos fiar totalmente no depoimento do Sr. G., conta-se que aproveitava-se de sua vasta beleza para namorar vários homens ao mesmo tempo, se comprazendo em destruir-lhes o coração de modos cada vez mais humilhantes, e quando era levada à igreja pelos pais para frequentar a missa, ao constatar que estavam distraídos, escapava exatamente para ver algum novo namorado. Seu avô, diz G., já ouviu várias vezes o Sr. Renato reclamar consigo mesmo, julgando estar a sós, que o apelido de “namorada do diabo” dado à filha afetava-lhe a reputação negativamente, e que receava que ela viesse a se tornar uma “reles rameira” no futuro – a Sra. Amélia, já sem saber o que fazer, chorava baixinho em seu quarto frequentemente.
Isto, porém, serviria apenas como o prelúdio da data em que seu cognome adquiriria um sentido demasiadamente literal.
Era a Sexta-Feira Santa do ano de 18—. Teresa, exultante, convocou todos os criados e proclamou que haveria de dar um baile, com o intuito de exibir um vestido novo que comprara alguns dias antes. De todos os blasfemos caprichos da garota, aquele era demais: promover uma festa justo naquele dia tão solene, em que medita-se a respeito do grande sacrifício que Nosso Senhor Jesus Cristo por nós fizera…! Todos imploraram para que desistisse da ideia, remarcando o baile para um outro dia, mas a garota foi peremptória:
“Ora! Meu vestido já não mais seria novo se deixasse para mostrá-lo outro dia, não é mesmo!?”
“Tal demonstração desgostaria grandemente a Deus!”, tentaram argumentar.
“Seja eu consumida por chamas, se for este o caso; mas de um jeito ou outro farei este baile e mostrarei meu vestido! Ao trabalho!”, esbravejou ela, e retirou-se para seu quarto.
Temerosos ante a fúria de Teresa, mais uma vez foram obrigados a atender-lhe as vontades, e os transeuntes, contemplando o único casarão a estar decorado para uma festa em plena Sexta-Feira Santa, não precisaram refletir demais para descobrirem que aquilo “tinha dedo da namorada do diabo”.
O avô de G. viria a recordar-se de que, apesar do imenso pavor da criadagem e da desaprovação de Renato e Amélia, a casa fora decorada com o máximo de requinte permitido; comes e bebes foram preparados às mancheias, e até mesmo uma orquestra, mediante a promessa de um pagamento exorbitante, fora contratada para providenciar a música. Em seu novo vestido, que era de uma viva cor vermelha, Teresa estava belíssima, e ansiava por conquistar (e depois partir) os corações de vários rapazes; os R… tentaram confortar-se dizendo a si próprios que ninguém seria suficientemente insensato para frequentar aquele aziago baile, mas para a sua surpresa a casa logo estava repleta de centenas de curiosos e curiosas que, provavelmente, queriam gabar-se de ver, e talvez até conversar com, a moça. Durante todo o dia, Teresa foi o centro das atenções, tendo flertado com os homens que mais a agradaram, ficando esfalfada de tanto dançar por horas e horas a fio.
Indo sentar-se para recuperar as forças, após alguns minutos ouviu uma voz masculina interpelar-lhe:
“É você Teresa R…?”
A garota ergueu os olhos para ver quem lhe dirigia a palavra. Era um moço mais ou menos de sua idade; Teresa pôde jurar que era o mais bonito que já conhecera. De acordo com a descrição do avô de G., que aparentemente o pudera ver tão bem quanto a própria garota, era exageradamente pálido, tinha cabelos louros e trajava uma casaca negra de aparência antiquíssima, mas muito asseada.
“Ela própria”, respondeu Teresa, deslumbrada com a beleza do rapaz. “Quem deseja saber?”
“Meu nome por ora não importa”, continuou o estranho. “Gostaria apenas de deixá-la ciente que a admiro há algum tempo, mas sempre tive receio de falar-lhe… Tanto é que até creio já estar comprometida no momento…”
“Mas que nada!”, exclamou ela, rapidamente se esquecendo de quaisquer namorados que pudesse ter seduzido. “Estou solteira. Não aceita dançar comigo para que nos conheçamos melhor? Só preciso refazer-me por alguns minutos.”
“Sente sede?”, indagou aquele moço tão peculiar. “Tomei a liberdade de apanhar-lhe um pouco de punch.” Numa das mãos, carregava uma pequena taça, que prontamente Teresa aceitou. Sentiu-se milagrosamente energizada após dela sorver, e borbulhando de luxúria tomou o rapaz pelas mãos a fim de dançarem.
Valsaram em silêncio por alguns instantes; Teresa notou que era um exímio dançarino, ao que o belo moço respondeu com um sorrisinho. “Não vai dizer-me seu nome?”, perguntou, embevecida, a garota. “A bom entendedor, meia palavra basta”, foi a críptica resposta do moço. Teresa nada depreendeu de sua fala, mas por uma fração de segundos tanto ela quanto o avô de G., que “observava tudo se desenrolar bem de perto”, perceberam que os pés do rapaz transformaram-se em cascos de bode. Não muito tempo depois, uma cauda vermelha e pontiaguda pareceu rodopiar junto com ele, escapando de seus fundilhos. O homem e Teresa, a princípio, creram que não passava de alguma ilusão de ótica causada pela luz; porém, quando o recinto começou a exalar um cheiro fortíssimo de enxofre, ambos começaram a preocupar-se. O rapaz sorriu novamente; um riso que tresandava a malícia e desejo. Antes que qualquer um pudesse esboçar alguma reação, bradou:
“Teresa R…! Sou o diabo, e quero-te como minha amada!”
Ele agarrou o braço de Teresa com violência, e antes que os convidados pudessem processar aquela cena, tudo explodiu em chamas. Como por mágica, o fogo se alastrou por todos os cômodos da enorme casa, e a catástrofe foi indescritível; apenas depois de horas, e com muito esforço, o incêndio foi apagado. Os depoimentos dos poucos sobreviventes a respeito de que o diabo em pessoa pisara no local não foram levados muito a sério pelos jornalistas, e aqueles mais licenciosos não hesitaram em tecer comentários um tanto quanto jocosos sobre a “namorada do diabo” ter sido finalmente pedida em casamento por seu companheiro – no entanto, dentre os inúmeros cadáveres, horrivelmente enegrecidos e carbonizados, que foram retirados do casarão, o de Teresa nunca foi encontrado, e com o tempo, os R… acabaram por cair no esquecimento, sua história tornando-se uma mera lenda urbana.
“Dadas tais circunstâncias tão inacreditáveis, é natural que poucos levem esta história a sério, mas meu avô era um homem probo, e não teria por que mentir a todo mundo por tanto tempo”, declara o Sr. G., à guisa de conclusão para seu conto. “Mas o que ouvirá em seguida é ainda mais inacreditável.
“Há quem diga (e eu próprio já o pude comprovar) que, nas noites de Sexta-Feira Santa, luzes podem ser vistas rodopiando através das janelas destruídas do casarão – dois fogos-fátuos dançando unidos. Penso eu que até o diabo sabe ser romântico, e goste de reviver com sua amada o primeiro dia em que se conheceram na data de seu aniversário de casamento…”
(Recolhido em 27 de março de 2014)