Legados DTRL15

Nota do autor: Sei que o texto é grande, mas a história, em si também é. Grande em tamanho; quando a qualidade, não sei ao bem informar. Como autor, tento não julgar o que escrevo, apenas o faço porque gosto e quero contar histórias. A ideia desta história me perturbou durante semanas, e vejo isso como a definição de uma boa ideia(concordo totalmente como Stephen King): é a ideia que fica e que fica, e na hora certa, flui.

Aos que irão ler, sejam bem vindos.

I - Juliano

No altar da igreja, o sacerdote se flagelava. Ele havia chegado ali, numa noite como aquela, vinte e cinco anos atrás; fora abandonado pela mãe, enrolado num manto vermelho, junto com algumas roupas para bebê e a foto de um casarão destruído.

A cada chicotada, o homem se sentia melhor consigo mesmo, mesmo que seu corpo gritasse em protesto a cada ardente chicotada que abria tiras em suas costas. A cada vez que manejava o chicote, com firmeza e determinação, ele se sentia mais leve e mais próximo de Deus.

Perdoai-me, Pai. Perdoai-me. Sei que não sou digno de Ti, mas peço que em Tua bondade me abrigue e me alimente.

O chicote estalou pela vigésima terceira vez quando o sino da torre principal tocou uma única vez, anunciando que meia hora já se passava da meia noite. O frio daquela noite fazia com que cada corte ardesse mais e, então, o chicote estalou novamente, quebrando o silêncio.

Perdoe o mundo, Senhor. Sou Seu servo. Sou só Seu.

A oração era feita em silêncio enquanto o sangue escorria, a última chicotada acertou exatamente o centro de suas costas, e abriu uma fenda mais profunda que qualquer outra; as cicatrizes de dez anos sumiam para abrir lugar a novas a cada vez que o bebê que ali fora deixado completava mais um ano de vida. Não era digno de viver, e sabia disso, e sabia que o mundo também não era digno, a cada aniversário, um golpe era acrescentado – Somente assim ele poderia realmente crescer e somente assim poderia ver os pecados alheios e os próprios expiados.

O som de pingos de água caindo do céu começou sob o teto da nave central da catedral da Sagrada Ordem dos Peregrinos, o sacerdote olhou para fora e viu, pelo vitral dos fundos, um trovão atingir uma gárgula, depois do clarão, um urro e, então, os poucos sons de pingos multiplicaram-se.

O homem ensanguentado se levantou e vestiu o hábito, cobrindo assim sua nudez, desceu do altar e se ajoelhou perante seu Senhor quando chegou ao chão da nave – Já passava da hora dele estar na cama – tomou o rumo do Mosteiro, andando rapidamente, sentia seu hábito grudar no sangue que agora parava de escorrer; já aprendera a suportar a dor, desde criança, cresceu sem mimos, e aprendendo que Jesus havia suportado o peso da cruz para salvar a todos. Com quinze anos de idade, quando alguns de seus irmãos haviam-no apresentado o pecado original, Juliano pecou, desse momento em diante, as torturas e orações foram mais presentes para o garoto, as chicotadas porém... Essas vinham de uma reflexão próxima aos dezesseis anos. Era simples, explícito e evidente. Qual é o meu objetivo nesse mundo?

Uma voz o respondeu então, para sua surpresa:

“Seu objetivo no mundo é continuar meus ensinamentos, Juliano. Seu objetivo nesse mundo é retirar os pecados do mundo.”

E então se calou, e não se apresentou mais desde então, contudo, Juliano a seguiu rigidamente.

Ao chegar no mosteiro, retirou se hábito, sujo de sangue e limpou as costas com um pano embebido em álcool, reprimiu seus gritos, em parte por sua postura firme contra a dor, em parte para não acordar os outros irmãos que dormiam nos quartos ao lado; após isso, passou outro pano, agora imerso na água, nas costas, já quase não sentia mais os cortes.

Ele guardou o chicote abaixo de seu criado-mudo e apagou a lâmpada de seu quarto, onde até dois anos atrás eram usadas lamparinas de querosene, mas que foram substituídas após um incêndio que ocorreu acidentalmente e queimou a cozinha dos monges; a Ordem era avessa a tecnologias, mas as vezes ela era necessária. O sacerdote se deitou em sua cama e orou e, então, dormiu.

Naquela noite, a voz ouvida há anos atrás voltou para Juliano.

II – Juliano

No dia seguinte, acordou cedo, fez suas orações matinais e tomou o café da manhã junto de seus irmãos. Havia na grande mesa queijo, leite, pão, e algumas uvas. Após seu café, Juliano viu uma faca sobrando na mesa e a pegou, guardou-a em seu hábito e se levantou, sentindo o tecido áspero do hábito raspar em seus cortes. Gostou da dor, fazia com que ele se lembrasse do peso da cruz que seu Senhor carregou. Saiu da cozinha discretamente, sem que qualquer um reparasse algo fora do normal.

III – Giovani.

O dia nasceu bonito após a tempestade que havia despencado na noite passada. Giovani se levantou e tomou banho, e então se vestiu para o trabalho, era professor numa escola de ensino médio que ficava próxima a uma catedral de monges que saíram de um tribunal da inquisição – Um bando de babacas sem vida, em sua opinião. Ele tossiu.

Mas, do que é que eu posso falar? Sou professor e nem sei o porquê.

Morava sozinho, a dois quilômetros da escola. Seguiu sua rotina matinal, que era fazer café enquanto lia O Diário, onde não viu nada interessante até a página cinco, mas na página seis seu interesse foi desperto quando se deparou com a notícia:

“Criméia comemora provável anexação à Rússia.” E então o seguinte pensamento lhe ocorreu: “Como é que isto não está na primeira página, porra?”. Insatisfeito, fechou o jornal, pegou sua bicicleta, e tomou seu caminho até a escola; minutos depois, passou em frente à catedral – como fazia todos os dias, mas notou que faltava um pedaço da cabeça em uma das gárgulas. Presumiu, corretamente, que chuva havia feito aquilo. Giovani adorava aquelas gárgulas, adorava o estilo arquitetônico daquela catedral. Mas, ainda assim, achava que aquele monges eram babacas sem vida – Mas, novamente, ele era professor. Então, qual direito tinha de dizer algo?

Dobrou a esquina e se viu no pátio frontal da escola onde lecionava, desceu da bicicleta, acorrentou-a num poste de iluminação e fez menção de ir em direção ao portão. Ele não sabia, mas esta seria a última vez que passaria por ali.

IV – Juliano

Acordou junto da quinta badalada do sino. Era segunda feira, o que significava que teria catequese na nave lateral esquerda da catedral junto do irmão Bruno. Toda segunda e quarta feira essa rotina se repetia, e só então o pequeno catequisando iria para o café da manhã. Em duas semanas, ele completaria onze anos, e em quatro meses, completaria sua catequese e poderia comungar.

Arrumou sua cama e foi para o banheiro; lavou o rosto, escovou os dentes, tomando cuidado para não fazer barulho e acordar os outros quatro meninos que dividiam o quarto com ele – todos eram mais velhos, dentre estes, um já era homem feito, e mantinha algumas perversões estranhas. Estranhas, mas ainda assim, deixavam-no talvez excitado, ou ao menos ligeiramente curioso. É claro que o Padre o aconselhou – na verdade, obrigou-o – a não pensar em tais assuntos, e depois da confissão, bastaram vinte Pais-nossos para que fosse liberado.

Então abriu a porta e saiu.

Juliano adorava as aulas de catequese, adorava aprender sobre os mistérios e dogmas, sobre o antigo e o novo testamento. E, as vezes, até sobre Filosofia. Dentro da Ordem, Juliano ouvia – o que não era muito raro – maldizeres sobre Bruno. Quaisquer que fossem estes, eram falsos testemunhos, pensava o jovem monge que seguia em direção a capela com sua Bíblia sob seu braço direito. O dia estava bonito, era primavera e os grande ipês floresciam imponentes espalhados pelos jardins. O sol ainda não havia nascido, e já se viam carros do lado de fora da grade, com seus vidros fechados e motores ligados. Quando Juliano estava indo para o café da manhã, após suas aulas, conseguia ver várias crianças indo para a escola que ficava do outro lado da rua.

O grande portão de madeira da Catedral estava aberto, como sempre estava nos dias de catequese. Bruno já o esperava ali, mas parecia diferente do normal. Já faziam algumas semanas que o jovem monge era o único catequisando; os outros já haviam tido sua primeira eucaristia. Na primeira eucaristia, um novo hábito era dado como presente; sinalizando a passagem da infância para algo maior, mais amplo. Afirmando sua responsabilidade para com Deus.

-Sente-se, Juliano. Não irá precisar de sua Bíblia hoje. Apenas se ajoelhe e feche os olhos, e reflita sobre o paraíso. Reflita. – disse-lhe seu tutor e se levantou, enquanto seu pupilo fez o que lhe foi pedido. – O que significa a maçã?

De fato, o que significava a maçã? Todos diziam que era a causa do pecado original. Mas a contradição presente era tão gritante que as vezes Juliano não via sentido naquilo. Se o Criador, em toda Sua Perfeição havia feito tudo, porque falhas surgiam tão facilmente? É claro que a maçã estava ali, mas não isso somente: alguém teve de mordê-la.

O menino ficou ajoelhado por alguns minutos antes de sentir uma mão encosta-lhe no ombro, apertando-o.

- Levante-se. – disse-lhe o tutor. – Espero que tenha entendido, filho, que todos temos nossas maças. Até mesmo o Padre. E até mesmo os Bispos. É difícil ter fé... e a cada dia que passo eu a perco...

A expressão do homem era de angustia, aflição. Ou talvez apenas confusão, como uma criança que não sabe o que fazer.

- Estudei muita filosofia, e me atrevi até a estudar assuntos que poderiam me colocar numa fogueira há anos atrás. E a cada dia que passa, minha fé é menor. Já não creio mais que a tenho... aliás, todo o significado de fé é falacioso. Até mesmo os mais estudados, como o Santo Padre, afirmam com certeza de que Deus existe. – nesse momento, Bruno havia se ajoelhado atrás de Juliano. – Mas se temos certeza, porque chamamos de fé? No momento em que temos certeza, a fé se faz desnecessária... ore comigo.

Ambos fecharam os olhos, e o menino orou. Pediu ao seu Senhor que aquela situação estranha fosse apenas um sonho. O que estava acontecendo com seu catequista?

O menino sentiu uma mão tocar-lhe a coxa direita, e subir... o homem ao seu lado levantou-se e se virou, andando de maneira estranha e lenta

- Venha comigo, Juliano. – disse-lhe, em tom de ordem.

Juliano o seguiu.

V – O menino preso no banheiro.

Procuraram por Juliano por dezesseis horas e alguns minutos até que o encontraram nas acomodações antigas da Sagrada Ordem dos Peregrinos. O estranho era que as acomodações antigas estavam todas lacradas, e a pergunta de como o menino fora parar ali ficou jogada ao ar por vários dias depois do ocorrido. O sacerdote que o encontrou quebrou as correntes que lacravam o portão com um grande alicate, e a jogou ao chão. Ele estava deitado no chão frio, despido e cheio de roxos pelo corpo, além de um corte fora aberto no queixo do garoto. Um pedaço de trapo velho fora amarrado em sua boca, para impedir que gritasse, o que fez com que alguns músculos de seu rosto doessem a ponto de fazê-lo desmaiar; quando o encontraram, ele mal respirava e estava frio, seu hábito estava jogado dentro de um dos vasos sanitários. Quem o achou foi o sacerdote Fábio, que era o responsável pelo comércio e administração dos bens da Ordem.

O levaram para o quarto do Padre, o único equipado com aquecedor elétrico, o deitaram na cama e cobriram-no com grossos cobertores, para que o calor voltasse a seu corpo.

Quase não voltou.

Ele estava em estágio inicial de hipotermia, e os primeiros sinais de que ele havia retomado a consciência foram lágrimas que saiam de seus olhos e alguns tremores. Horas mais tarde, seu corpo já estava aquecido – até de mais, o termômetro marcava 39ºC -. Os tremores continuavam.

Dois dias se passaram sem que ele dissesse qualquer coisa que fizesse algum sentido: eram apenas coisas sem nexo, que iam e vinham de hora para outra.

Porque? Frio...

Calma...

Bem...

Frio...

Não...

Xa... me... Xa...! Não...!

Não...

Falava sozinho, e olhava para um ponto fixo ao fazê-lo. Olhava como se fitasse os olhos de alguém – ou algo – que supostamente estava ali. E fazia gestos, se apertava e arrancava o próprio cabelo. Os monges foram forçados a amarrar suas mãos para que não se machucasse mais, os roxos no corpo do garoto apenas aumentavam em número; alguns eram hematomas, outros – e isso um dos monges soube dizer – não eram. (Frio... Xa... N... Sa...).

A primeira palavra que realmente teve algum significado veio quatro dias depois de terem o encontrado, e era um nome.

VI – O motorista

- Coloque a porcaria do cinto de segurança, Sofia. – Disse Jonas para sua esposa.

Estava dirigindo seu carro em direção à Catedral, para a missa, que ocorreria naquele domingo particularmente frio. Havia começado a cair uma leve chuva quando eles saíram de casa. Estavam passando em frente ao supermercado quando Sofia lhe perguntou se havia retirado a carne do congelador.

Merda, pensou ele, me esqueci. Mas não o disse desta forma; apenas desculpou-se e disse que havia se esquecido. Um xingo viria, deduziu, mas não veio, para sua surpresa. Ela disse que estava tudo bem, que comeriam a carne amanhã. Após isso, veio o silêncio, que predominou, até Jonas ter ligado o rádio – a pedido de Sofia - e empurrado o álbum ‘Sgt Pepper’s Lonely Heart Club Band”. A música que dava nome ao álbum tocou.

“With Sgt Pepper’s Lonely Heart Club Band, we hope you’ll enjoy the show...”.

Estavam próximos da Catedral, e a chuva que outrora caia calma, agora demonstrava toda sua fúria, os pingos se derrubavam na lataria do carro de tal forma que impossibilitava a música de ser ouvida, e o vento balançava para lá e para cá as árvores, mesmo as que tinham as raízes mais profundas. Sofia falou algo, ou talvez tenha gritado, apontando para frente. Jonas, naturalmente, ouviu somente os pingos que caiam descompassados na lataria do carro, e sentiu, segundos depois, uma batida. O carro deveria estar á 65km/h, e com o chão molhado e a impossibilidade de ver um metro a frente, não houve tempo de pisar no freio.

Na hora o impacto, ele estava olhando para sua esposa. Logo após um grito, ela foi projetada de seu banco, e um terrível estalo quebrou o som contínuo do cair da chuva. Treck.

- Sofia! Sofia! – O motorista gritou, perplexo e em agonia.

Com o que havia acontecido, a atenção que o homem dava ao seu carro foi desviada, voltando-se para a pessoa que esteve junto dele por vinte e dois anos, e que agora estava desmaiada no painel do carro. Sangue escorria de sua boca e testa, e o vidro havia se quebrado em volta do ponto onde a pancada ocorreu. O rosto de Sofia estaria, para qualquer outro que não seu marido, irreconhecível; mas era inegável, estava ali. A falta de atenção fez com que o carro perdesse controle, e segundos depois da primeira batida, batesse novamente, desta vez em algo sólido.

O cinto de segurança salvou a vida de Jonas, mas mesmo assim, não o impediu de se machucar. E não pense que a chuva deu trégua, porque ela não o fez. A última visão de Jonas antes de que tudo ficasse escuro foi o rosto deformado de sua esposa.

VII – Juliano

Sem saber, ele sonhava.

Em seu sonho, estava nu, e deitado no altar da Catedral. Alguns anjos dançavam acima dele, e cantavam, em uníssono, de modo tão perfeito e único que fazia com que Juliano não conseguisse segurar seu choro. Ele chorava, sem medo, sem se importar com isso. Nunca teve pai ou mãe onde pudesse encontrar um abraço confortante, e em sua vida como aspirante a monge, sempre fora instruído a não demonstrar fraquezas, pois Jesus sofreu tudo o que sofreu e ainda assim morreu de braços abertos.

A língua do canto era estranha, desconhecida, mas seu entendimento era total. As lamparinas penduradas na estrutura que suportava o telhado oscilavam, brilhantes, acima dos anjos. Sombras se moviam no chão na medida que as lamparinas balançavam e os anjos dançavam, imponentes em seu domínio. O homem deitado no altar se sentia feliz, se sentia completo. Seus olhos se fecharam, e mesmo assim as lágrimas ainda vinham. O mês era Julho, sabia ele, mas o frio do inverno não o afetava – ao contrário, ele se sentia quente-.

Em seus devaneios, se via junto dos pais. Um sonho que era sonhado dentro de outro, como consequência daquele singular pensamento feliz. Não soube em que momento exatamente, soube somente que aconteceu, e que segundos depois ele abriu os olhos. Também não soube quando o anjos pararam de cantar, soube somente que isso ocorreu. E que isso deu lugar ao soar de um trombeta. E que então soou novamente, pela segunda vez. E novamente...

O que viu quando abriu os olhos não foram os anjos, nem sequer o teto, e nem mesmo a catedral. Não estavam mais ali, haviam sumido, dando lugar ao espaço. Astros, nebulosas, nuvens de gás que, na verdade, eram imensos planetas, e tudo girava. O único ponto fixo em meio aquele caos era o altar de pedra, sobre o qual ele estava, e que agora estava encharcado de sangue, cujo qual o futuro monge não soube dizer de onde vinha. Todo aquele caos, toda aquela infinidade girava em torno do altar de pedra. Tomou coragem, e levantou, pedindo perdão por derramar sangue no sagrado altar.

Perdão, Senhor...

Ficou em pé, se sentindo sozinho. Em meio a tudo aquilo, sentia-se só, como sempre foi; sem pai ou mãe que o auxiliassem, apenas com os irmãos da Ordem... pediu perdão novamente após este pensamento.

Olhando tudo aquilo, em pé naquele pequeno espaço de pedra cinzenta, sentia-se só. E a imensidão, o tamanho e a amplitude daquilo tudo fez com que Juliano se sentisse fraco. Teve a sensação de que aquilo o sugava, o puxava para longe de seu porto seguro – o altar –. Suas pernas começaram a treme, até que cederam. Aquilo era um sonho, é claro, e portanto, ele caiu, soltando um grito. E é claro que seu grito não foi ouvido, mas a vibração em suas cordas vocais foram sentidas. Ele não conseguiu respirar durante a queda, que parecia infinita e pior a cada instante que se passava, mas por fim, terminou. Quando aterrissou, estava novamente na capela, mas tudo estava diferente.

A grande cruz da Catedral estava virada de ponta-cabeça, os vitrais estavam todos quebrados, o teto havia sido arrancado – e as lindas pinturas renascentistas junto dele -. O céu não era mais azul, e nem mesmo era céu; era fogo. O chão estava ali, mas era invisível, e abaixo dele viam-se rios de fogo e fumaça, objetos de tortura que pareciam ter saído de um tribunal da inquisição e grandes ampulhetas onde a areia não corria, e alguns anjos que andavam e voavam, gritando ordens e aplicando torturas em algumas pobres almas que gritavam, agonizavam e se ressentiam abaixo dos pés de Juliano. Ele estava ofegante e horrorizado com tudo aquilo, mas reuniu coragem, fazendo uma oração, e olhou em volta.

As paredes eram as mesmas, mas os pilares estava quase cedendo. De súbito, Juliano percebeu que a catedral era um refúgio, um refúgio de Deus. Então ele olhou para a grande porta, na nave central, e viu que alguém – ou algo – estava tentando força-la a abrir. Murro atrás de murro, a porta ficava cada vez mais frágil, mais propensa a cair, deixando passar o que quer que estivesse atrás dela. Ele pôs-se a rezar com mais força, com mais vigor. E então ouviu uma voz.

- Não adianta rezar quando se está no Inferno, Juliano. – falou um homem encapuzado, virado de costas para ele. – Agora que está aqui, não há nada que possa fazer para sair. Você pecou, menino. Pecou... e eu também. Por isso estamos aqui. O que há de livre na nossa vida? Nada... – A porta voltou a ser pressionada, e agora parecia a ponto de ceder. O homem encapuzado olhou para a porta e riu. – Ela não vai se abrir, menino. Somente se alguém de dentro a abrir. E sabe do que? – o homem se levantou.

Ele começou a andar em direção a porta, calmo e sereno, mas temeroso, furioso. Sua túnica negra balançava ao caminhar. Agora ele estava parado em frente a porta... colocou as mãos dentro da túnica, que foi quando Juliano conseguiu perceber que era um hábito, e retirou dali uma adaga de lâmina negra. Estocou a porta e girou a adaga, e então puxou lentamente... o homem riu, e se virou, abaixando o capuz. Dois chifres projetavam-se de sua cabeça, e uma cicatriz grande profunda havia sido aberta naquele rosto. Quando a porta se abriu, vários anjos entraram naquele refúgio do Senhor, e o pensamento de Juliano foi que aquele poderia ser o último dos refúgios; para ele, ao menos, seria o último. Os anjos seguravam chicotes em suas mãos, e pareciam incrivelmente pessoas normais, mas quando um deles abriu a boca, o menino conseguiu ver dentes imensos e uma língua bifurcada, e então os olhos deste anjo ficaram totalmente negros.

- Porque? – Perguntou o menino ao homem que vestia o hábito negro. Ele ainda estava nu, mas isso não era relevante agora. – Pai Nosso...

- Porque você pecou, Juliano. E porque eu também. – disse-lhe o homem. – Ainda não sabe quem sou?

Será que sei? Pensou... Ele não sabia.

- Você me desaponta, menino. – vociferou o homem, e completou: - ataquem.

Os anjos se aproximaram do Juliano, com os chicotes prontos, e então um lapso ocorreu. A catequese, a Bíblia, o pecado...

Juliano fechou os olhos, e gritou um nome. Quando ele acordou, não se lembrava do sonho por completo.

IIX – Fábio

- Bruno... – essa foi a primeira palavra de Juliano depois que ele abriu os olhos, após quatro dias dormindo. – Que sonho louco... Senhor... Socorro...

- Ele acordou! – exclamou o monge que encontrou e cuidou do menino enquanto foi preciso. Fábio mal dormira naqueles quatro dias, e fez suas refeições ao lado da cama, enquanto orava fervorosamente para que o garoto acordasse. Ele foi abusado, Santo Deus, e ainda por cima, foi abusado por um de nossos irmãos!, pensou o monge. A confirmação de tudo veio no dia que o menino foi encontrado naquele banheiro, pois sabia-se que ele deveria estar na catequese, portanto foram procurar Bruno para lhe perguntarem se ele havia visto o garoto. O quarto de Bruno ficava na Casa Grande, construção atrás da Cozinha, pois sua posição na Ordem era de destaque. A porta do quarto estava aberta, e o ambiente estava totalmente bagunçado; as gavetas abertas, os armários vazios, e as duas malas que eram de Bruno não estavam ali. A polícia municipal havia sido notificada da fuga do monge, mas não haviam encontrado nada até então.

Ele provavelmente está em outra cidade agora, talvez junto de parentes. É onde a polícia vai procurar primeiro. E, de fato, a polícia procurava pelo agressor em outras cidades, mas as tentativas de encontra-lo foram em vão. Bem, que Deus o tenha.

Quando a surpresa passou, Fábio pediu que chamassem o Padre, para decidir o que faria então. Sabia que ele não viria logo, pois era domingo e neste dia a missa havia de ser rezada por ele.

- Água... tenho muita sede... – disse o menino em voz fraca, e Fábio lhe deu um copo cheio d’água, do qual o menino tomou vigorosamente e com pressa, e então um pequeno acesso de tosse o atacou, mas passou rapidamente. – Obrigado, irmão.

Fábio sorriu. Colocou nesse sorriso o máximo que conseguiu de conforto. Ele conhecia o garoto que estava deitado na cama, e sua história. Sabia que era órfão, e nunca teve família ou amigos. Era diferente da maioria dos irmãos ali, que começavam suas vidas como servos já homens. Está tudo bem, Juliano, disse-lhe Fábio, e perguntou: você se lembra de algo? O menino ponderou, então, antes de responder.

- Eu me lembro... de acordar, e ir para a catequese. Bruno... ele está bem? Eu não me lembro de nada depois da catequese. – Então ele parou e bebeu mais um pouco d’água. Enxugou a boca no cobertor que lhe cobria, percebendo que ainda estava nu, o que o deixou, de certo modo, envergonhado. –Eu tive sonhos estranhos, irmão... Fábio? – disse com entonação de dúvida na voz. E o monge assentiu lentamente. – Eu sonhei com anjos, mas depois tudo ficou estranho... Sonhei com planetas e luas, e tudo era tão escuro... e sonhei com fogo. E Bruno... ele está bem?

Fábio ponderou sobre contar ou não o que havia acontecido. Ele aparentemente não se lembrava de nada. Um presente de Deus o garoto não se lembrar de nada. Ele decidiu omitir, sem mentir, o ocorrido.

- Bruno nos deixou, não se sabe porque ou por quanto tempo. Espere aqui, Juliano, vou buscar roupas limpas para você vestir. Precisa de mais algo, irmão?

- Tenho fome... se puder, por favor, me trazer uma fatia de pão. – pediu o menino, corando. Nunca havia pedido comida antes; sempre a recebia nos horários determinados.

- Claro que sim, claro que sim... lhe trarei um grande prato. – Quase lhe disse que havia ficado quatro dias dormindo, mas deu-se o presente de privar-se deste fardo. O Padre saberá melhor como falar com ele. – Não tenha medo. Logo voltarei.

Saiu do quarto e fechou a porta, era julho, era frio. Quando voltou para lá, o garoto estava deitado na cama, com os olhos fechados. Ele deixou a roupa ali, para que se vestisse, a comida em cima de uma mesinha redonda com três cadeiras; três fatias de pão e uma grande tigela com ensopado de peixe. E água, para beber. Ele agradeceu, e então Fábio saiu novamente. Tudo o que ele queria era descansar, e agora poderia fazê-lo. Nesses dias que acompanhou a saúdo do jovem aspirante, criou um forte laço fraternal para com ele. Decidiu, então, que se ofereceria para ser seu catequista quando tudo se resolvesse.

Chegou em seu quarto, deitou-se na cama e dormiu. Pela primeira vez em quatro dias, Fábio conseguiu descansar de verdade.

IX – Jonas.

Ele acordou no Hospital, nove horas após o acidente. Sofia havia morrido no carro, e ele quase tomou o mesmo rumo. Tinha uma costela quebrada do impacto, e além disso, não conseguia respirar sem auxílio de um aparelho. Não sentia dor, entretanto, graças aos narcóticos com os quais estava sendo medicado. Para Jonas, nada mais havia sentido. Sua vida havia chegado ao fim naquele asfalto escorregadio, na exata hora em que Sofia havia quebrado o pescoço. Eu falei pra ela colocar o cinto, porra! Eu deveria ter colocado o cinto nela eu mesmo! E eu atropelei um monge! Um monge!

Ele se sentia culpado, culpado por estar dirigindo, culpado por ter batido e não ter freado, culpado por atropelar o monge. A culpa era pior que a dor, e para isso não havia remédio. Deitado na maca, pensava no que faria a seguir. Não tinha mais motivo para viver, tinha? Um cinquentão que é dono de uma loja de materiais para construção e cujo parente mais próximo mora em outro estado não tem muita coisa o que fazer no mundo. Ele pensou, pela primeira vez na vida, em escrever um ponto final em sua história. Não sabia o porquê dele estar vivo, e não sua esposa. Sentia um ímpeto quase incontrolável de gritar, mas não conseguia, graças a sua respiração de araque. Não podia sequer se mexer, e nem sentia vontade de fazê-lo.

Só conseguiu deixar a cama numa cadeira de rodas duas semanas após o acidente, mas recebeu alta somente quarenta e oito dias depois. Graças aos altos ganhos (nem todos legais) de sua loja de matérias, o plano de saúde que era pago arcava com todas as suas necessidades. Pegou um taxi para casa, e logo se arrependeu; o terror que sentia ao estar dentro de um carro era imenso, falta de ar lhe veio, e também tontura. Por sorte, a casa era perto do hospital, e ele venceu o trajeto antes que o contrário acontecesse. Desceu do automóvel e deu de frente com sua casa. O lugar no qual morou com Sofia durante todo o tempo que o casamento durou. Pegou a chave no bolso do jeans e abriu a porta, antes que perdesse a coragem para tal, e entrou. Tudo estava exatamente como eles deixaram.

Acima da mesa da cozinha, estava um vaso cheio de flores mortas. Das quatro cadeiras, três estavam encostadas, e a quarta estava afastada da mesa. Era a cadeira de Sofia, ela nunca encostava sua cadeira. Jonas segurou o choro. Na pia, a louça do almoço daquele dia ainda estava suja, e começava a criar fungos; ele decidiu que jogaria todo o aparelho de almoço/jantar no lixo.

Sentia sede, e então foi em direção da geladeira, na limitada velocidade que sua costela quebrada permitia que ele fosse sem que a dor fosse muito forte. Abriu a geladeira e viu ali dentro duas garrafas de água, algumas cervejas e uma garrafa de whisky, que ele adorava tomar de vez em quando; muito de vez em quando. Pegou a água, ponderando sobre pegar o whisky. Foi quando um pensamento distante e maldoso lhe ocorreu.

Abra o freezer.

Ele o fez, e ali estava, intacta, a carne que ele se esqueceu de tirar dali. Congelada e exatamente a mesma daquele dia, dois meses atrás. A garrafa d’água escapou-lhe das mãos, e as lágrimas escaparam-lhe dos olhos. Ele se sentou na cadeira que não estava encostada, apoiou sua cabeça mesa sem se importar com a dor que começava a chegar, e chorou.

X – Padre

O Padre saiu do quarto do menino, já próximo das três horas da manhã. Quando chegou lá, o garoto dormia, e ele o acordou com cuidado e lhe explicou parte do que havia ocorrido. Omitiu a parte de que fora abusado por Bruno, e como isso tudo havia acontecido; se ele se esqueceu, bem, era o que Deus queria, e Lourenço não iria contrariar isso. A parte mais conturbada veio quando lhe foi dito que dormiu por quatro dias inteiros, mas o que lhe foi contato a partir daí foi totalmente diferente do que realmente aconteceu. Disseram-lhe que um homem havia entrado nas propriedades e o encontrado no caminho da catequese; era um assaltante, o Padre disse, que te desmaiou e espancou, e tentou te sequestrar. O garoto era inocente (mesmo depois do ocorrido), e engoliu. Três e meia da manhã, aproximadamente, quando deixou o menino. No outro dia, quando acordou e foi para seu escritório, viu dois irmãos esperando por eles.

Um deles segurava alguns papéis nas mãos, ambos pareciam aflitos. Os papeis eram, na verdade o jornal do dia. Na primeira página, estava a foto de um carro amassado, perto de um bar – que por sua vez ficava perto da catedral -. O resumo da notícia, escrita acima da foto, era a seguinte:

“Carro perde controle e atropela Bruno Farias de Melo, 41, e o mata. No carro, estavam duas pessoas, Jonas de Belas Gomes e Sofia Camila Gomes. O homem (marido) está na UTI do hospital municipal, e sua esposa morreu no acidente.”

“Leia mais pag. 4”

Lourenço tirou um livro de sua estante, abriu-o e guardou o jornal dobrado ali dentro. Fechou o livro e guardou-o na estante. Olhou para seus dois irmãos, e disse, em voz decidida e triste.

- O garoto não pode ter acesso a esta notícia.

Ambos disseram que sim, e com um sinal com uma das mãos, pediu que se retirassem.

XI – Sobre escrever.

Se você chegou até aqui, seja bem-vindo novamente. Como autor, sei que não foi muito fácil vencer estas dez partes, e sei o quanto elas parecem confusas, mas peço que continuem confiando na história; nunca fui muito conciso, disto sei, mas também posso afirmar; adoro contar grandes histórias, mesmo que estas sejam contos. Posso garantir a vocês que, se chegaram até aqui, não irão se arrepender. O que vem em frente é muito menos íngreme, muito mais fácil de ser lido.

XII – Giovani

Depois de dois períodos infernais com aquele maldito segundo ano, o sinal tocou, indicando que o final daquelas aulas tinha finalmente chegado. Ele saiu da sala de aula e foi em direção à sala dos professores, pois agora teria dois períodos vagos. Sentou-se à mesa e pensou no que iria almoçar. Não queria comer na cantina da escola; ali aconteciam assaltos à mão desarmada diariamente. Resolveu, então, pedir uma marmita. Que mal faria? O máximo que iria ocorrer era o seus alunos lhe chamarem de pedreiro, ou seja, nada fora do normal.

Discou o número que encontrou no catálogo e pediu uma marmita grande, quando a voz feminina do outro lado atendeu.

Olhou para o telhado da sala, que era cheio de infiltrações e algumas rachaduras, e se lembrou da gárgula. A chuva da noite passada havia, provavelmente, abalado um pouco mais aquela porcaria de telhado. Mas o pensamento da gárgula lhe despertou um antigo rumor, um boato que diziam, de que um túnel de emergência ligava a escola àquela Catedral; Bem, ele teria dois períodos livres, e sua marmita chegaria apenas na hora do almoço. Porque, então, não procurar saber se os boatos eram verdadeiros? Ele já estava de saco cheio daquela escola, e se fosse demitido... bem.

Ele sorriu, e se levantou.

XIII – O segundo filho.

Benedito era o Padre da Ordem que falia. Por motivos econômicos e políticos, ajuda de superiores não chegariam – assim, seus domínios estavam fadados a ruir, falir, morrer -. Entretanto, a culpa não era apenas dele, mas sim de uma má sucessão de líderes da Ordem; ora, ele era o sétimo, e em seu tempo de reinado já viu seus irmãos e a si mesmo passando por situações piores. Ele era o filho menor entre dois, e mantinha uma relação muito forte com seu irmão, Pedro. Estranha era a situação: Um era Padre, o outro era uma espécie de xerife, uma espécie de coronel, que impõe ordem onde quer que vá.

Além do sangue e do nome, carregavam outra característica em comum; A corrupção. O irmão mais velho havia entrado em um esquema de tráfico – apenas para arrecadar fundos para o município, dizia sempre ele quando era questionado pelos poucos que sabiam. Resumindo a ópera, o esquema ficou demasiado lucrativo para que parasse, e seu nome demasiado grande para que sumisse do nada.

Estava sentado numa cadeira estofada, com sua escrivaninha a frente e uma carta de seu irmão (é claro que assinada sob um pseudônimo) sobre a ela. Este é o legado de minha família: dois irmão corruptos, um jurado de morte e o outro jurado a Deus, pensou, solitário, o homem cujos cabelos brancos já começavam a se fazer notar. Quando tinha dezenove anos, ainda sendo somente um dos aprendizes da Ordem, havia deixado de acreditar em Deus tal como a religião cristã diz. Estudava teologia, filosofia, física, e tudo isso era deveras grande frente sua religião. Era tudo grande demais frente ao universo, que era igualmente grande. Nesse ponto, o nome do menino já era famoso dentro da ordem, e o caminho dele já apontava ao poder, ao trono. Prematuramente, ele foi indicado Padre e líder da Ordem (aos vinte e três), quando seu antecessor, em sua longevidade, morrera.

A herança de Benedito não era leve, e nem o tempo o seria, descobriu ele nos anos que se seguiram. E a resposta para o fim de seu pesado fardo estava em sua frente, em forma de carta. Uma proposta ousada, perigosa. Faria com que a Ordem pudesse se reerguer, e o estranho nisso era que mesmo não acreditando em Deus na forma convencional, a Ordem era sua casa. Ele nunca pôde escolher ser ou não ser líder; uma vez os votos feitos, ele era obrigado a arcar com isso. Mas pôde escolher que líder seria. E dependendo dele, o navio chegaria ao porto. E esse caminho sempre foi seguido – e na maioria das vezes, a trilha era tão suave e difícil de se seguir que desistir daquilo tudo foi cogitado.

E agora este caminho apontava para sua frente, para a carta aberta sobre sua escrivaninha. Depois de muito pensar, ele escreveu seu veredito e assinou a carta. A resposta era, simplesmente, sim. Com isso, o legado da família cresceria, tal como o nível da corrupção do Padre. Mas, afinal, de que isso importaria? A ordem seria salva, não seria? Ele não ligava para quantos quilos de químicos seriam transportados pelos túneis cuja construção ele havia acabado de permitir, e não se importava com quantos milhões o esquema de tráfico iria lavar ás custas da Ordem.

Afinal, quem desconfiaria dele e da Sagrada Ordem dos Peregrinos? Para não dizer ninguém; poucos. No que restava daquela noite, ele não dormiu, nem ao menos ponderou sobre isso. Entregou a carta bem cedo no correio.

Em oito dias, obteve seu retorno. Em um mês e dez dias, as obras começaram. O dinheiro chegou logo à ele, e neste ponto qualquer resquício de dúvida sobre o acordo se dissolveu. Haveria dinheiro suficiente até para reformar a Catedral da Ordem, e essa ideia o fez feliz; seu legado cresceria, e ao menos isso pesaria para um lado bom.

XIV – Juliano.

Ele entrou no banheiro e lavou o rosto. O suor vinha sem parar, e aquele não era um dia quente. Tudo estava muito estranho, ele sentia-se perdido, sentia-se zonzo, e seu hábito fazia com que se sentisse sufocado. Ele olhou para o espelho e fitou seu rosto, seus olhos, suas feições, e então viu uma figura envolta em preto atrás de si; a figura ria, mas não de modo natural, era um sorriso seco e frio. E então sumiu; o sorriso, e seu dono com ele.

Lavou o rosto novamente, e olhou em volta. O que estou fazendo aqui? Pensou ele, e, é claro, Deus o respondeu. O respondeu como sempre o fazia, como fez ontem, antes de Juliano dormir. Olhou em volta. Se viu no espelho, seu rosto estava molhado e um pequeno corte ornava sua testa, quase indetectável por baixo do cabelo que esperava para ser aparado, mas ali estava ele, cruciforme.

O monge levou as mãos ao hábito, para enxuga-las, e sentiu um estranho frio numa das mãos. Fechou a mão e sentiu um corte, e entretanto não sentiu dor. Era uma adaga, e pelo corte que deixou em suas mãos, afiadíssima. Olhou a adaga. O que isto está fazendo aqui?

A voz o respondeu novamente, é claro que respondeu. Sozinho, no banheiro, Juliano falava e fazia gestos, olhava em volta. Ora com medo, ora admirado por Deus estar se dirigindo à ele. Saiu do banheiro e foi para a casa grande, onde ficava o Padre. Ele precisava falar com o Padre, precisava, ora: a voz disse que precisava. Dizia que ele havia roubado algo que o pertencia, e que isso deveria ser tomado de volta. Não se questionou, apenas obedeceu.

Quando chegou lá, as portas estavam abertas. O Padre não estava em seu quarto. E também não estava em seu escritório, mas Juliano ficou ali. Abriu suas gavetas, tirou livros da estante, abriu o baú de arquivos da Ordem e revirou-os todos, não sabendo exatamente o que procurava. De longe, a voz o instigava a continuar procurando. Quando se deu conta do que estava fazendo, já estava escorrendo suor novamente. Limpou a testa com as mãos e levou-as ao hábito, para enxuga-las.

Sentiu algo frio ali, e fechou uma das mãos em volta do objeto que trazia consigo, mesmo sem saber, no bolso. Um novo corte havia se aberto em sua mão, que estava fechada em volta da lâmina de uma adaga. O monge olhou o objeto metálico em sua mão. O que isto está fazendo aqui?

XV – O camareiro.

Rafael tomou seu café junto dos irmãos e então foi para o quarto do Padre, para que pudesse deixar tudo arrumado, afinal, este era seu trabalho. Passou pelo íngreme caminho de pedras brancas que levava até lá, mas notou algo estranho. Algumas manchas vermelhas em meio a branquidão das pedras. Abaixou-se e olho de perto, e se levantou, concluindo que era sangue. Apressou o passo, e reparou que as gotas se tornavam cada vez mais frequentes. O que será isso, meu Deus?

Um trovão ribombou, e ele pediu perdão por ter usado o santo nome de seu Senhor em vão.

Chegou na casa grande e se deparou com as portas abertas, como era comum, mas então ouviu alguns barulhos vindos de dentro. Encolheu-se perto da porta e observou com calma e atenção. Uma leve chuva começou a cair – uma mudança repentina no tempo, notou ele. -, e não demorou muito para que visse o Irmão Juliano saindo do quarto e indo para o escritório do Padre. A imagem do monge era aterrorizante: tinha as mãos cortadas, o rosto deveras suado e um olhar distraído, e além disso, sangue escorria também de sua testa. Seu hábito estava igualmente molhado de suor – ao menos, na parte da frente, pois atrás havia sangue, que se propagava em tiras. O cabelo do monge tinha um aspecto terrível, como se estivesse sendo usado como ninho por algum roedor.

Rafael pensou em sair dali, mas sua curiosidade foi maior. Ele seguiu Juliano quando este adentrou o escritório, e o viu desarrumar a gaveta, a estante e o baú. O que o deixou ali não foi a mesma curiosidade que o fez ir até ali, mas sim o medo: medo se ser visto ao tentar sair. Se encolheu num canto e continuou a olhar. Apesar de tudo, o homem parecia focado, parecia disposto a encontrar algo. Depois de algum tempo, o homem parou e pareceu ficar congelado por um momento, como se esperasse alguma ordem, e tão repentinamente quanto parou, limpou o rosto e enxugou as mãos no hábito, e então parou novamente.

Quando voltou a se mexer, puxou as mãos para fora, e numa delas estava uma adaga... exatamente como as adagas da cozinha. A mão do homem sangrava, mas ele não pareceu se importar, ao contrário, sorriu após algum tempo e começou a falar sozinho. E a gesticular.

- Entendo, meu Senhor, eu entendo... farei como comanda, Senhor. Minha vida é sua. – guardou a faca no hábito novamente.

Essa foi a deixa para que Rafael se levantasse e, calmamente e em curtos passos, saísse dali. Frustrada foi sua tentativa, porém: mesmo quase não fazendo barulho algum, Juliano o ouviu, e correu para fora do escritório.

- Fique parado, herege! – gritou ele, retirando a adaga do hábito. – Eu sei o que vocês andam fazendo aqui! Eu sei sobre a metanfetamina! Sei dos túneis. Ele me disse. – Gritou ele, e se Rafael já não estava entendendo nada, agora menos ainda. Sentia medo. Mais que isso, sentia pavor. Ele começou a caminhar de costas, até que parou quando bateu na parede.

Juliano o olhou, com seus olhos que agora estava vermelhos. A adaga estava em sua mão direita, e a outra estava livre. O menino se via preso, e estava tremendo, a medida que Juliano ia em sua direção, cheirando a suor e merda. Deus, que cheiro forte. O camareiro começou a andar para o lado, e então trombou em uma mesa, e ali avistou sua única possível fonte de esperança. Era um vaso, de porcelana, com a imagem do Inferno de Botticelli pintada. O monge o olhava, macabro, e agora vinha com a adaga levantada. O sangue de suas mãos escorria e pingava, mas mesmo assim ele não parou, e tampouco parou de sorrir.

Quando ele estava suficientemente perto, Rafael agarrou o vaso e o atirou. Acertou um dos ombros do monge que portava a Adaga e se quebrou; os estilhaços caíram no chão, inofensivos. Fechou os olhos e rezou, em vão, e então sentiu uma mão tapar lhe a boca, sentiu o gosto de sangue, e então sentiu o frio. Um pensamento ocorreu-lhe: eu vou morrer.

Sentiu o frio objeto sem vida atravessar-lhe na altura na barriga, e então um pouco mais acima, no diafragma. Encostou na parede e caiu lentamente, e não chegou a ouvir o próximo trovão ecoar. Tentou gritar, mas apenas sangue saiu de sua boca.

XVI – Giovani

Chegando na quadra da escola, ele rapidamente encontrou um alçapão. Usando um cabo de ferro que por vezes os alunos faziam de trave para futebol de areia como alavanca ele conseguiu – com mais facilidade do que esperava – abri-lo. Viu uma escada de ferro, maltratada pelo tempo – jurou que se se cortasse naquela escada, correria para o hospital mais próximo para tomar soro antitetânico. -, e então a desceu. Estava escuro, e algumas teias de aranha cobriam o caminho, mas para isso ele estava preparado; trouxe consigo uma das lanternas da sala dos professores, para quedas de energia durante o período noturno. Desceu a escada e viu os túneis.

Foi andando pelo único caminho que havia, pelo que ele calculou ser aproximadamente cinquenta metros, e então viu-se na opção de dobrar à esquerda ou à direita. Escolheu a esquerda, e andou por um bom tempo. Iluminava os túneis a cada passo, atento a seus detalhes, e pôde notar que não era usados havia muito tempo. Mas então a figura começou a mudar; após um tempo ali embaixo (já sentia o ar rarefeito) alguns resquícios de tecnologia começaram a surgir. E chegou a uma segunda conclusão: se as (adoráveis) crianças e adolescentes da escola tivessem que usar aquele túnel como rota de fuga, aí sim estaria todos condenados. Riu sozinho com isso, e ouviu seu riso ecoar e então novamente.

Alguns cabos transmissores de eletricidade começavam a aparecer por ali, e alguns vagonetes e ferramentas também, mas era notável que ninguém habitava ali por um longo tempo, e algo começava a lhe dizer para voltar à escola, mas então pensou: ‘porque tenho que voltar para aquele inferno?’.

Viu uma escada que levava para cima. Tentou resistir ao ímpeto de subir e ver para onde ela dava, mas não conseguiu, é claro, ele era curioso. Ao subir, notou que o alçapão não estava trancado, estava aberto. Ora! Hoje deve ser meu dia de sorte, pensou ele feliz, o coração batendo forte, mal contendo a injeção de adrenalina que acabara de receber. Subiu.

Era um banheiro velho, havia sangue no chão. Assim como os túneis (onde estou agora?), aquele banheiro não era usado há anos. Viu algumas janelas e duas portas, olhou por uma das janelas e riu ironicamente.

Bem, acho que isso é a prova de que milagres existem! Eu nunca achei que colocaria meus pés dentro desta maldita Ordem!, pensou o professor. Na sua frente, estava a lateral da Catedral.

XVII – Giovani

Não voltou para o túnel, porque a maldita bateria da lanterna acabou. Pensou que estava perdido, preso, mas se já estava ali dentro, porque então não sair pelo portão? É claro que se algum de seus colegas o visse ali, já imaginava os comentários. ‘Desde quando fez votos de castidade?!’; ‘Mas olha, é um santo!’. Abriu uma das janelas o máximo que pode, com cuidado para que ninguém o visse ali, e saiu do banheiro. Chovia, e alguns clarões enfeitavam o céu periodicamente, enquanto alguns trovões estalavam, fortes e imponentes.

A chuva estava fria, e caia densa e grossa. Ele correu em direção à Catedral, onde, sabia ele, estava sua saída dali. Na maior parte do caminho, pisou na grama encharcada, mas após alguns passos, chegou ao piso escuro da frente da catedral. O piso era mais liso do que ele pensava, e como consequência disso, escorregou e bateu com as costas e o quadril no chão. Gritou de dor instantaneamente, e ficou deitado naquele piso frio, sob a chuva que caia. Gritou por socorro, engolindo todo o orgulho que trazia consigo, e pela primeira vez em anos rezou (ou, ao menos, implorou) por algo. Um monge finalmente chegou, depois do que pareceu ser eternamente. Seu rosto estava estranho, e ele fedia.

- Quem é você? – perguntou. Giovani teve vontade de responder: “Porra, não vê que estou caído e com dor? Devo ter quebrado algo!”. – O que quer aqui?

- Socorro... por favor... sou professor, cheguei aqui por um túnel... socorro! – Alguns picos de dor tomavam conta dele, potencializados pelo frio.

O monge o olhou, como quem não se importa. Talvez este seja retardado, pensou Giovani, mas não chegou a dizer. O monge sacou uma adaga – e nisso o professor pôde reparar nos cortes, cortes fundos, que haviam na do monge – e disse algo totalmente desconexo:

- Sim, senhor. Eu o Farei.

A adaga veio abaixo, na altura do rosto de Giovani. Ele não conseguiu se mexer, a lesão proveniente do tombo não deixou. Tudo o que ele fez foi gritar, mas um trovão oprimiu seu grito. Pode-se dizer que ele morreu em silêncio, mas não em paz. Quando Juliano soltou parou os golpes, o rosto do homem caído no chão já estava indetectável.

XVIII – O bêbado

Jonas entornava sua quinta dose quando foi expulso do bar. Desde o acidente de carro, tentou levar sua vida o melhor possível, mas a grande bomba lhe veio algumas semanas atrás, em forma de uma tomografia, encaminhada do mesmo hospital onde ficou internado depois daquele acidente. Chovia naquele dia. De tempos para cá, sua barriga cresceu e seu cabelo caiu, as finanças de sua loja iam de mal a pior, e o tumor em seu cérebro crescia. Se tivesse mais dois anos de vida, seria muito, e ele não permitiria que chegasse a isso. Não sofreria por mais dois anos, e ainda mais, com a dor que o câncer lhe causaria.

Foi caminhando em direção a qualquer lugar, quando chegou na Ordem. Ele já não acreditava mais em Deus, ou milagres, ou qualquer coisa deste tipo; mas, mesmo assim, entrou na catedral. Viu um homem carregando um outro, levando-o para uma espécie de construção abandonada. Não deu bola para isso, afinal, se focasse em algo que não fosse se manter em pé, cairia, de tão bêbado. Olhou para a catedral, para sua grandeza vazia, para suas pedras que se colocava sobre outras pedras e formavam aquela Ordem. A Sagrada Ordem dos Peregrinos, onde ele e sua esposa assistiam as missas... qual era mesmo o nome dela? Soraia? Simone..? Talvez fosse Sofia. Começava com s, disso ele sabia. Não conseguia lembrar o nome da mulher que viveu a maior parte da vida ao lado dele, mas este pensamento não o incomodava mais. Logo eu vou morrer, pensava. De qualquer jeito, este tumor me levaria logo. Uma coisa que ele se lembrava bem era de quando deixou de acreditar em Deus. Ele frequentava um grupo de ajuda, ministrado pelo monge Juliano... era um sujeito estranho, mas algo sobre ele era certo, tinha sua fé concreta. Jonas pouco de importava para isso.

Deixou o grupo e perdeu a conta de quantos cortes fez em seus pulsos, ou de quantas vezes quase se afogou em álcool. Saiu pelo mesmo portão pelo qual entrou, tentando se lembrar do que o monge uma vez lhe disse...

Seria para sempre esperar pelo pior, e rezar pelo melhor? Alguma coisa deste tipo. Ele saiu dali e continuou a andar, perdeu conta dos passos que deu, mesmo naquele estado, conseguia (não conseguiu explicar como quando ficou são) andar.

Jonas atravessou uma rua, passou debaixo de um viaduto, dormiu acima de um banco. Não voltou para casa, e isto é quase tudo o que se pode dizer sobre o andarilho. O que mais pode se dizer sobre ele? Que morreu; afinal, todos morrem. E a grande diferença neste caso, e em outros casos, é que a morte não lhe foi má; ao contrário, foi gentil, como uma mãe.

Que cobre o filho com uma manta quando chega em casa novamente, e o beija a testa, confortando-o.

XIX – Padre

O Padre chegou de sua reunião com seu superior, onde estava fazendo os preparativos para a Pascoa. Chegou cansado, com frio, e molhado. A chuva não dava trégua alguma, nenhuma. Passou pelo portão quando viu um bêbado sair dali e atravessar a rua.

Que Deus o abençoe, pensou.

Foi rapidamente para a casa grande, onde pretendia descansar antes da missa. Passou pelo caminho de pedra branca, e finalmente chegou, e atravessou a porta. Não olhou para nada, apenas foi para seu quarto, tirou a batina e colocou um pijama, e deitou-se em sua cama. Ainda faltavam algumas horas para a missa, e com isso ele poderia descansar. Ele dormiu repentinamente, profundamente. Quando acordou, a chuva havia parado. Ele tomou banho em seu banheiro particular e vestiu-se com uma batina limpa, saiu do quarto e entrou no corredor que o levava para seu escritório, e então parou. Havia sangue no chão e pedaços de seu vaso no chão da sala de espera, e ao olhar no escritório descobriu tudo revirado, bagunçado, e sujo de sangue. Não demorou muito para que olhasse em sua mesa, e que o medo e a culpa tomassem conta de si.

Um jornal amassado, sujo de sangue e molhado estava ali, e a notícia escrita nele.

“Carro perde controle e atropela Bruno Farias de Melo, 41, e o mata. No carro, estavam duas pessoas, Jonas de Belas Gomes e Sofia Camila Gomes. O homem (marido) está na UTI do hospital municipal, e sua esposa morreu no acidente.”

“Leia mais pag. 4”

Sem saber o que fazer, ele correu para a catedral.

XX – Juliano.

O mundo precisa de um redentor. Os pecados são cada vez piores e maiores, e mais constantes. Deus havia falado consigo, o estava guiando. O homem que ele viu no espelho, encapuzado e sorrindo não era mal, pelo contrário, era benevolente; era Deus. Desde o assassinato do camareiro, o homem estava o acompanhando. Retirou a adaga do diafragma do menino, e o viu vomitar sangue, sem ressentimento algum. Ele merecia, era pecador, era frágil. Mas Juliano foi seu redentor; pela lâmina, o havia libertado de tudo. Limpou a adaga e a guardou no hábito, e voltou ao escritório. Ele já havia encontrado os papéis sobre o tráfico de metanfetamina, assinados pelo Padre Fernando. Mas a Ordem nunca teve um Padre Fernando, e então a voz o disse que o nome era apenas uma máscara, e procurou mais documentos datados daquele ano. Benedito. Benedito era o nome do Padre, o Padre que fez seu pacto com o satanás, e permitiu que a Santa Ordem fosse usada como um caixa 2, como um ponto de tráfico; quem desconfiaria de uma Ordem religiosa?

O que ele sentia era vergonha. Vergonha de si mesmo, vergonha de seu hábito, vergonha de sua vida; de uma hora pra outra, tudo parecia uma mentira, uma mentira que o torturava. Mas logo ele iria redimir os pecados de sua Ordem. Logo, ele seria o próximo Redentor.

Quando voltou a revirar os papéis, encontrou um jornal escondido no meio de um livro qualquer de capa muito velha na estante. O leu, e então o atirou sobre a mesa, furiosamente.

XIX – Padre

O Padre chegou de sua reunião com seu superior, onde estava fazendo os preparativos para a Pascoa. Chegou cansado, com frio, e molhado. A chuva não dava trégua alguma, nenhuma. Passou pelo portão quando viu um bêbado sair dali e atravessar a rua.

Carro perde controle e atropela Bruno Farias de Melo, 41, e o mata. No carro, estavam duas pessoas, Jonas de Belas Gomes e Sofia Camila Gomes. O homem (marido) está na UTI do hospital municipal, e sua esposa morreu no acidente.”

“Leia mais pag. 4”

Abriu na página 4 e viu a foto de Bruno, seu antigo catequista, morto no asfalto. Lágrimas escorreram de seus olhos, incessáveis, num fluxo intenso. Aparentemente, até o Padre mente, pensou ele. Lourenço me disse que Bruno foi embora, mas na verdade me omitiu isso o tempo todo. Viu no canto inferior da página um clips, e virou a página. Anexado ao jornal estava um boletim de ocorrência, datado de dois dias após a publicação do jornal. Estava assinado pelo Padre Lourenço.

“Bruno fugiu da ordem e é acusado, com provas concretas, de abuso sexual de incapaz. O menino Juliano, irmão da Ordem, sofreu abuso da parte de Bruno. Neste dia, ele fugiu. O garoto ainda dorme, e aparentemente não se lembra de nada. Agradeço a Deus pelos pequenos milagres...”

De repente, tudo lhe voltou a memória. Lembrou do dia em que acordou para ir para a catequese, se lembrou de que bruno o levou para a nave direita, e então entrou com ele dentro de um túnel – ele levava consigo uma lampião para iluminar o caminho, e dizia a seu catequisando para que não tivesse medo. -, e então saiu no banheiro. Se lembrou de Bruno colocando o lampião no chão, e então o agarrando, e o jogando no chão, de costas...

Juliano atirou o jornal na mesa, fechado, e correu dali. Iria para o Altar, rezar. Ele havia pecado! Havia despertado o pecado! O pecado original! E ainda, com alguém do mesmo sexo! Ele chorava, e corria, ofegante, como se isso tornasse a culpa menor e mais leve. Talvez isso o fizesse.

Passando perto da Catedral, ouviu um grito, e então vários outros. Viu um homem deitado ao chão, um herege. O homem, ou Deus, havia dito para Juliano mata-lo, e assim ele o fez. Escondeu o corpo dele no banheiro onde o pecado havia ocorrido. A voz o pedia para matar, e ele matava; sabia que matar era pecado, mas era necessário: ele seria o Redentor, que traria pureza novamente. Jogou o corpo do professor (não conseguia mais dizer que seu rosto era um rosto) no chão e foi buscar o corpo do camareiro do padre, e o escondeu ali, junto do outro.

Foi para seu quarto, e encontrou seu chicote... e então foi para a capela, ali, onde ele sabia que tudo aconteceria. No altar, como símbolo, como exemplo. Ele retirou seu hábito e se sentiu mais livre, e se flagelou. A cada chicotada, o homem-Deus lhe dizia para que o fizesse novamente; e a cada golpe, ele sentia-se mais perto da redenção. A voz então o disse para parar, e assim ele o fez... não sentia a dor, nem o frio. A adrenalina de ter Deus ao lado, falando consigo, era maior que tudo. E então, ele se lembrou de Jesus: ele carregou a cruz por três dias, mas tinha deus consigo. Ele sangrou, mas tinha deus consigo, sempre ao seu lado. E toda minha dor comparada a dele não é nada. Ele abraçou a morte, e alcançou a vida eterna. Lembrou-se da metanfetamina, lembrou-se do dinheiro lavado pela Ordem, e das consequências disso...

(Ele se levantou)

Lembrou-se de Bruno, e do pecado que cometeram. Lembrou-se da última vez que havia se flagelado, lembrou-se de seu sonho – aquele terrível sonho – enquanto dormiu por quatro dias. Quatro. Quatro cavaleiros do apocalipse, pensou ele. Para mim, é o fim.

Revirou seu hábito e tirou de lá sua adaga.

(A voz disse que sim, o incentivou)

Ele deveria tirar o pecado, e tira-lo pela raiz. Estava nu. Mirou a adaga ao pênis e passou-a, num corte liso; sabia que se demorasse, seria pior. Não sentiu dor; sentia a adrenalina era, que maior que a dor, era maior que qualquer coisa. Tinha deus consigo.

O órgão caiu no chão do altar, e o fluxo da sangue jorrou dali, mas então parou. Ele teve que pressionar como uma das mãos para parar. Juliano sentia-se bem, sentia-se quase livre. Faltava pouco agora. Pegou querosene dos lampiões, e passou em seu corpo, exceto nos braços. Deitou no altar e rezou, louvando em alto e bom som, aos gritos e berros. Ali, ele esperou, e então ouviu.

Beng. Beng. Beng. Beng. Beng. Beng. Beng.

Sete badaladas, sete horas da noite do domingo. Logo, o povo chegaria para a missa, tal como o Padre; as portas da Catedral estava todas bloqueadas ou trancadas, ele havia providenciado isso, então teria tempo para se preparar para a Redenção. Os cortes nas costas jorravam sangue quente, que se misturava com o frio do altar. O frio da pedra. Ouviu batidas na porta principal, bem a tempo. Se levantou, foi até a grande cruz, e a molhou com o mesmo querosene que havia em seu corpo, e se abaixou (sentiu uma pequena dor na virilha, mas nada demais, pensou). Pegou um lampião acesso e ateou fogo a cruz. Sorriu: estava libertando a Ordem de todos os seus pecados, estava se redimindo perante a Deus. O homem encapuzado assentiu com a cabeça, em aprovação. E então deitou-se novamente no altar, de costas para baixo. A fumaça da cruz que pegava fogo começou a fluir, e o calor fez com que Juliano se sentisse ainda melhor.

Estou perto de Deus agora, pensou.

Quando a porta cedeu, viu o Padre Lourenço e vários outros irmãos entrando, e correndo em sua direção. Juliano falou, em voz alta, mas falha:

- De hoje em diante, eu os liberto de seus pecados, irmãos. – pegou o lampião acesso e o encostou em seu peito.

Sentiu o calor de Deus tomar conta de si, mas durou pouco. Nos segundos de vida que lhe sobravam, olhou para o homem-Deus, e este ria. O capuz desceu, revelando mais que o sorriso. A imagem de Bruno estava ali, e vinha em direção a ele.

- Não... – essa foi a última palavra do monge, do órfão que havia chegado ali ainda criança. Padre Lourenço o olhou, horrorizado, sem reação: Juliano estava além de qualquer ajuda.

Ele morreu deitado, não no altar, mas no chão, e levou seu delírio junto de si. A cruz terminou de pegar fogo. O vida do homem deitado ao chão, nu, e sem sexo havia chegado ao fim. Alguns fiéis começavam a chegar, e olhavam para a cena que ocorria...

A chuva voltou, mais forte, mais violenta, impiedosa.

Os corpos dos irmãos eram sempre enterrados na Ordem, mas o corpo de Juliano foi incinerado, e as cinzas foram jogadas junto das cinzas da cruz. Elas serviram somente para alimentar o fogo.

Juliano chegou ao mundo como um universo de possibilidades, que aos poucos foi sendo abandonado e cortado, privado de algumas coisas e encaminhado à algumas. O nome da família não lhe foi herdado, e um único pensamento me conforta.

Seu legado queimou junto de si.

Olá novamente, Querido Leitor. Se você se aventurou em minha história, sou grato. Espero ter conseguido prende-lo e ter feito com que tenha se divertido durante a leitura. Se consegui isso, então, tive sucesso em minha investida. Eu me diverti ao escrever, então se fui bem sucedido, ambos ganhamos.

Miguel Bernardi
Enviado por Miguel Bernardi em 24/03/2014
Reeditado em 22/04/2014
Código do texto: T4742580
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