Escolha Errada DTRL15

Sou um reclamão por excelência, disso tenho total consciência. Mesmo se eu fosse extremamente ignorante, de tanto me dizerem coisas do tipo "Nossa cara, você reclama muito!" em algum momento teria de concordar com eles. Já tentei mudar muitas vezes, mas essa peculiaridade está fortemente arraigada ao meu ser, e por longo tempo continuei soltando pragas a todo momento.

Seguia minha medíocre e birrenta vida quando algo extraordinário aconteceu. Andava na calçada de cabeça baixa, pensando em tudo que me desapontava na minha ordinária existência quando tropecei em um desnível no chão.

- Puta que pariu! Até as calçadas dessa cidade tão uma bosta! - Estava de sapato mas mesmo assim a pancada foi dolorosa.

Continuava gritando pragas quando dei de cara com alguém. Me preparava para xinga-lo quando estaquei ao olhar para a fantástica figura: trajava vestes brancas, tinha minha altura, pele alva como se estivesse com o mais alto grau de anemia. Sua aparência era, por assim dizer, "gasosa" pois ao fixar os olhos no seu corpo ele parecia imaterial, como se fosse uma alma penada. A luz do sol o trespassava dando um brilho intenso a todo aquele branco, e com um olhar firme ele dirigiu a palavra a mim.

- Jonas, sou um enviado de Shaed, o grande senhor, e vim para acabar com suas tão numerosas reclamações - Sua voz era vibrante.

- O quê?! Só me faltava essa, além de viver uma vida miserável, vou ter minha alma levada por um homem que usa vestido branco! - Minha insolência não teve efeito na figura.

- Acalme-se, não vim para levar sua alma. Vim para oferecer uma escolha - Seus olhos negros estavam fixos nos meus e percebi que seus lábios quase não se moviam quando ele falava.

- Tá certo, fale logo dessa escolha que tenho mais o que fazer - Mantinha o tom despreocupado e insolente, esperando que não percebesse o quanto estava amedrontado.

- Pois bem. Sei que por qualquer sofrimento suas reclamações são fartas. Para acabar com isso, façamos o seguinte: você deverá sentir o equivalente a todas as dores e sofrimentos que sentirá na vida. Terminada a sua prova, poderá viver o resto de sua existência em completa paz. Tem a palavra do grande senhor Shaed, que todos o glorifiquem!

Pesei bem as palavras do enviado de Shaed, o deus pagão que nunca respeitei e que tomei conhecimento por alguns familiares meus adeptos do Shaedismo. Não aguentava mais a tribulação constante da existência humana e tomei a pior decisão da minha vida.

- Aceito sim nobre fantasma! Quando começo? - Logo que terminei de falar apareci em uma sala grande sem portas ou janelas, completamente iluminada por uma luz branca ofuscante que parecia irradiar de todos os cantos.

Meus olhos ardiam e sentia uma dor aguda na nuca, como se minha cabeça estivesse prestes a explodir, era como a pior ressaca que havia sentido multiplicada por mil. Andei em volta do meu cubículo tateando as paredes, porém, a cada passo sentia pregos entrando em meus pés e logo desisti de caminhar. Me arrastei para o meio do cubo onde fiquei em posição fetal. Minhas articulações pareciam estar totalmente gastas, e qualquer pequeno movimento fazia choques violentos percorrerem meu corpo. Tentava fixar meus pensamentos em coisas boas, como que para esquecer de tudo aquilo, mas, ao tentar lembrar de algo bom, imagens demoníacas invadiam minha mente e pude notar uma figura sombria, vestida com uma túnica preta no meio de tudo aquilo. "Shaed, o que você fez comigo seu...?". Então, uma coceira alucinante começou no meu braço esquerdo me tirando dos meus loucos devaneios; usei toda minha força do outro braço numa tentativa desesperada de amenizar aquele incomodo infinito que só as coceiras conseguem gerar, tanto que minha pele cedia aos fortes golpes de unhas e meu braço já estava em carne viva.

Continuava minha luta violenta dilacerando minha própria carne quando, devido a força com que arranhava, meu antebraço direito não suportou meu furor e quebrou expondo o osso e me fazendo gritar mais alto do que nunca. Minha ferida ardia e lágrimas escorriam por minha face deixando trilhas de carne queimada: eu chorava ácido!

Câimbras atacavam furiosamente cada membro meu e toda vez que fechava meus olhos, imagens horripilantes de meus familiares sofrendo apareciam como flashes. Tentava raciocinar alguma maneira de melhorar minha situação, mas pensar estava fora de cogitação pois a dor de cabeça do inicio estava aumentado e qualquer uso da razão agravava esse fato. Agia instintivamente, tentando me proteger da melhor maneira possível, e a cada novo reflexo contra as mutilações, novos infortúnios me atingiam. Passei um bom tempo agonizando com sensações e pensamentos infernais quando, de repente, a sala pegou fogo. Levantei-me num pulo e comecei a correr desesperadamente batendo nas paredes com força, a cada pancada trincando algum osso. As chamas laranjas dançavam pela sala lançando um forte cheiro de carne queimada, a minha carne! Aquilo foi o mais perto do inferno que cheguei. Podia ouvir os estalos da minha pele rachando e se desprendendo do meu corpo, cobri os olhos que pareciam ser os mais afetados pelo extremo calor, e andava desvairadamente pelo cubículo. As chamas cessaram e cai inerte no chão, deslocando meu joelho na queda. Respirava pesadamente, com os pulmões ainda queimando devido ao ar quente, quando uma fome extremamente forte começava a contorcer minhas entranhas. Era como se eu nunca tivesse comido na vida e ao olhar para minha ferida aberta e tostada pelo fogo ela me pareceu a melhor das iguarias. Sem pensar duas vezes, ataquei selvagemente a ferida exposta, arrancando nacos de carne com violência, tamanha que cheguei a quebrar dois dentes ao acertar uma forte mordida no osso do meu antebraço. Aquele duplamente canibalismo insano me levou ao limiar da loucura e soltava gritos de fúria enquanto mastigava minha própria carne.

Foi quando a dor me venceu e perdi a consciência. Quando reabri os olhos estava na calçada, só que ela estava perfeitamente nivelada. Vocês devem pensar que tive uma vida maravilhosa depois daquilo, não? Estão errados! Sim, a promessa foi cumprida e nunca mais senti outra dor ou sofrimento. E esse é meu problema, sem dores e sofrimento não há prazeres ou alegrias, como você pode sentir o grande alívio de tirar uma bota apertada se você não sentiu o desconforto que ela traz? Quando penso no que aconteceu naquele cubículo, somente sei descrever as sensações, mas elas não tem significado para mim e justamente por isso não há sentido em ter passado por aquilo e sobreviver. Minha vida tornou-se um vazio, sou um fantasma em meio as outras pessoas. E o pior, não consigo nem reclamar de tudo isso!

Gabriel Freitas
Enviado por Gabriel Freitas em 22/03/2014
Reeditado em 12/04/2014
Código do texto: T4739927
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