O MANEQUIM DIABÓLICO


 
 
Não farás para ti imagens de escultura, nem figura alguma do que há em cima, o céu, e do há em baixo, na terra, nem do que há nas águas ..(Êxodo 20:3).
 

 
      Antes de ler esta história eis um conselho: tenha muito cuidado com o que você sonha, pois os seus sonhos poderão se tornar realidade, mesmo que você não acredite neles. Não se esqueça que o seu inconsciente é uma espécie de lâmpada que abriga um gênio dos mais poderosos. Só que ele é muito burrinho, pois não sabe distinguir o que é sonho e o que é realidade. Para o inconsciente, sonhos, quimeras, fantasias, fatos, raciocínios, tudo é a mesma coisa. Ele não sabe distinguir os processos pelos quais a mente processa uns e outros.
      E por que deveria? Afinal de contas, os sonhos, as quimeras as fantasias, as utopias, também são experiências internas.  Para pensar uma quimera, para montar uma fantasia em nossa mente, nós temos que imaginá-la da mesma forma que pensamos em um plano de trabalho, na planta de uma casa, um mapa de viagem, um raciocínio matemático ou uma proposição filosófica. Não há diferenças fundamentais no processamento dessas informações.  
 
 
Ela era linda. Longos cabelos de um castelo claro brilhante, um rosto delicado em formato de pera, um par de olhos bem cinzelados. Tinha lábios de curvas tão bem desenhadas,  que dir-se-ia, foram esculpidos por mão de artista muito competente.
O corpo era simplesmente escultural. Um pescoço longo encimava ombros de porte suave e curvas extremamente delicadas, que terminavam em braços divinamente esculpidos com extrema maestria. Um busto de finas compleições onde nada faltava em termos de anatomia. Nem magreza notável ou gordura sobressalente. Seios que alguém poderia comparar a dois pêssegos de bom tamanho e boa safra, pela beleza da cor e a firmeza da estrutura. E o mais belo naquele conjunto de paisagem morta e indiferente aos olhos que a fitavam, eram as pernas daquela moça. Decididamente sensacionais. Nem grossas nem finas, nem longas demais, ou curtas, completavam uma escultura sem mácula que começava numa cintura de medidas perfeitas e terminavam em dois pezinhos delicados e bem cuidados, de unhas pintadas com esmero e capricho.
Alguém poderia dizer que Vitrúvio, o arquiteto modelador do corpo perfeito, em quem Leonardo da Vinci se inspirou para desenhar o homem vitruviano e Michelangelo para esculpir o seu David, devia ser o autor daquele verdadeiro monumento ao corpo humano, que encantava aos olhos masculinos e causava inveja aos femininos.
Realmente, poucas vezes se vira um corpo de mulher tão bem feito. O único senão era que não se tratava de uma mulher de verdade. Era um manequim. Um manequim de loja, feito por um hábil modelador de gesso. Ele se esmerou tanto na sua técnica, que conseguiu superar a arte de Fídias, Praxíteles e Apolônio, modelando em gesso uma Vênus ainda mais perfeita do que a de Milo ou os bustos de Beldevere.
Não havia quem não admirasse a perfeição estética daquele manequim. Os homens o contemplavam com olhos sonhadores. Quantos não desejariam que suas amadas tivessem aquele corpo, aquele rosto, aqueles olhos, aqueles cabelos, aqueles lábios. As mulheres também paravam para admirá-la, com inveja. Com certeza gostariam de possuir todos aqueles atributos.
 
Mas ninguém era mais fissurado por aquele modelo do que o jovem Ezequiel, vendedor que trabalhava naquela loja, onde o manequim estava exposto. Por isso ele não podia evitar de vê-la todos os dias. Era algo que já se tornara ritualístico. Exatamente ás 9: 00 da manhã, lá estava ele arrumando a vitrine, admirando a sua Mabel, trocando as suas roupas, acariciando a sua pele de gesso, fria, mas que a ele parecia tão perfeita quanto a de uma mulher de verdade.
Sim. Esse era o nome que ele lhe dera. Mabel. Era o nome da loja onde ele trabalhava. Gostara do nome. Tinha um toque de romântico e sensual nesse nome, que ele não sabia exprimir.
─ Oi Mabel. Como você está hoje? Gostei dessa caxemira que você está usando. Essa gola alta realça bem o seu pescoço elegante ─ dizia ele, beijando o pescoço do manequim.
─ Bom dia Mabel. Lindas bermudas. Ficam bem em você. Aliás, com pernas tão bonitas como as suas, tudo lhe fica bem ─ dizia Ezequiel, passando as mãos nas pernas dela.
─ Ah! Mabel. Como gostaria que você fosse uma moça de verdade. Não há dúvida que eu me apaixonaria por você ─ dizia ele, suspirando, acariciando o queixo dela.
Claro que Ezequiel dizia essas coisas em pensamento. Ele não era louco. Tinha bastante consciência de que sua fissura por aquele manequim era inspirada apenas e tão somente pelo romantismo da sua alma sensível, que não resistia ao apelo do estético. Ele gostava de mulheres. Tinha até uma namorada, a Ester, uma bonita garota que frequentava a mesma igreja evangélica em que ele ia. Ele gostava dela. Iam se casar em breve. Não resistia, entretanto a fazer comparações estéticas entre a namorada de verdade, e a idealizada, ás vezes até colocando em pensamento, a figura de uma dentro da outra, como que vestindo o corpo de Ester com a figura da Mabel, cinzelando aqui e ali, como um escultor faz em sua oficina, para ajustar o molde á imagem que ele tem dentro da cabeça.
Ezequiel gostava de provocar em si mesmo essas alucinações. E Ester também gostava, pois era nesses momentos que ele parecia se tornar mais fogoso. No geral ele era frio, metódico, protocolar. Um verdadeiro evangélico ortodoxo, para quem os arroubos de sensualidade deviam ser controlados. Mas nesses momentos, Ezequiel parecia outro homem. Deixava-se arrebatar por frêmitos de sensualidade incontrolados, nos quais suas mãos visitavam todas as partes do seu corpo e seus lábios sugavam os dela com volúpia tal que ela nunca o julgara capaz. E nesses momentos era ela que tinha que manter o controle da situação, pois senão tudo aquilo que ele e ela julgavam acreditar seria desmentido por um instante de prazer que teria que ser expiado depois com muita culpa e penitências. Para a religão deles sexo antes do casamento era pecado dos mais graves. 
 
Aliás, culpa era coisa que não faltava na consciência de Ezequiel por causa daquela fissura com o manequim da loja em que trabalhava. Aquilo era uma verdadeira paranoia. Afigurava-se- lhe como um grande pecado, semelhante á idolatria. “Não farás para ti imagens de escultura, nem figura alguma do que há em cima, no céu, e do há em baixo, na terra, nem do que há nas águas do mar..” dizia o livro que ele lia todas as noites. E o que ele estava fazendo com aquela loucura que se apoderara dele? Onde estava a sua cabeça, que ficava prestando culto a uma figura de gesso, a ponto até de desejar que a sua própria namorada, a mulher de carne e osso com quem pretendia se casar, fosse incorporada por ela?  
Decididamente, aquilo parecia loucura, e Ezequiel não tinha mais dúvidas. Estava mesmo enlouquecendo, a ponto de sentir que Mabel, a manequim, começava a ouvir seus pensamentos e a responder á sua comunicação. Pois não percebera, nos lábios dela um estranho sorriso naquela noite, quando ele se preparava para fechar a loja?  Pois sim. Era verdade. Ele não estava sonhando nem delirando. Parecia ter ouvido um débil chamado vindo da vitrina onde Mabel, a manequim estava postada. Era o seu nome, pronunciado por uma voz feminina que parecia vir de longe, mas ainda assim, bem audível.
Continuou a ouvir aquele chamado nas noites seguintes. Parecia que ele vinha da manequim. E foi então que, ao olhar para ela notou um certo brilho nos seus olhos de gesso. Era estranho, mas parecia os olhos de uma criança recém nascida, que ainda não tem consciência do mundo para o qual acabou de acordar, mas ainda assim, são perscrutadores, incisivos, hipnóticos.
Ezequiel foi dormir naquela noite muito abalado. No dia seguinte, foi, como era de costume, olhar para a sua deusa. Ela estava ali, glacial como sempre, os olhos de gesso inexpressivos e sem qualquer sinal digno de nota. Foram meras alucinações, pensou Ezequiel. Visões causadas por aquele estranho culto que ele prestava áquele manequim. Precisava parar com isso. Mas naquela noite, na hora de fechar a loja, ouviu mais uma vez o seu nome sendo chamado. Ao olhar para o manequim, seu coração quase saiu pela boca. Ela estava sorrindo. Um sorriso lindo, de convite, de sedutora provocação. Ele se aproximou e passou, de leve, as mãos no rosto dela. Sentiu que havia ali o calor de uma pele de verdade. Pôs um espelho na frente do nariz do manequim e viu a pequena nuvem vaporosa que se formou na superfície do cristal. Viu os cílios piscaram. Os delicados dedos da pequena e bem formada mão se mexendo. Os braços dela se erguendo e enlaçando o seu pescoço. Sim. Não havia dúvidas, Mabel estava viva. Então ele se inclinou para os lábios dela e um beijo quente, molhado, voluptuoso, fez sua mente mergulhar num turbilhão alucinante de prazer jamais sentido antes.    
 
Aquela foi a melhor experiência de amor que Ezequiel teria em sua vida. Tudo que ele jamais teve coragem de sonhar, em termos de gozo e luxúria, aconteceu naquela noite. Mabel, a linda, a deslumbrante Mabel, era, além de tudo, a fêmea perfeita. Ela lhe deu um prazer inebriante, completo, total, que só mesmo o abandono total aos apelos dos sentidos pode proporcionar.
 
Até hoje ninguém sabe por que Ezequiel se matou. Ele era um bom rapaz, de hábitos moderados, trabalhador, correto, de cabeça no lugar. Frequentava regularmente a igreja evangélica do bairro, estava de casamento marcado com uma boa moça, tinha um bom emprego no magazine Mabel, de onde era gerente e ganhava um bom salário. Fora encontrado pela manhã, dentro da vitrina da loja, com os pulsos cortados. Matara-se com uma lâmina de barbear. Um caso comum de suicídio que provavelmente jamais alguém iria descobrir a razão. Um surto psicótico talvez. Todos nós estamos sujeitos a ter um.
Por Ezequiel ser evangélico, ninguém estranhou o fato de, ao lado do seu corpo ser encontrado uma Bíblia, aberta em Êxodo 20:3, com os versículos assinalados por um marcador de textos:” Não farás para ti imagens de escultura, nem figura alguma do que há em cima no céu, e do há em baixo, na terra, nem do que há nas águas debaixo da terra...”
Tudo foi esquecido logo. O dono da loja, entretanto, mandou retirar da vitrina aquele manequim sobre o qual Ezequiel certamente caíra após ter cortado os pulsos e fez questão de queimá-lo . Não sabia porquê, e ele nunca reparara nisso antes, mas aquela moça de gesso, que parecia ser tão bonita, agora lhe causava um inexprimível mal estar, toda vez que olhava para ela. Nunca notara que ela tinha um semblante tão sinistro e um ar de diabólica expressividade. E aquele sorriso, aquele sorriso, que fazia gelar as suas veias...