Pés de galinha
O pé da galinha era seu prato preferido, com todos aqueles ossinhos para chupar, lamber, mordiscar. Cada pé era uma felicidade suculenta. Adorava-os. Comprava de muitos quilos, temperava com os mais diversos temperos, nacionais, internacionais. Os olhos brilhavam enquanto a panela de pressão chiava e exalava aquele vapor delicioso. A fome mordendo por dentro, o desejo era comer alguma coisa para aliviar, mas o medo de estragar o apetite fazia forte sua resolução.
Depois que comia, sentia remorso, ia no galinheiro alisar belemina, beladona, belazinha, florbela e mariabela. Todas galinhas caipiras de anos de convivência. Sentia um remorso profundo, chorava algumas lágrimas e prometia nunca mais comer pés, aquela era a última vez. As galinhas arrulhavam sob suas mãozinhas gordinhas, e punham seus ovos crendo nas promessas. Mas eis que os olhos falam mais profundo que tudo, alisava as penas brilhosas, e buscavam um vislumbre dos pés para saciar.
Quando, pela segunda vez no dia, fez suas rezas pedindo ao seu deus que a impedisse de comprar pés, saiu em direção ao açougue. Sim, nada de pés hoje, somente um quilo de carne moída, algum bacon, talvez salsinhas e um quilo de linguiça. Nada de galinhas, tenho que aprender a controlar meus impulsos. Mas ali estava, a tentação em forma de gente, o velho dono de açougue dizendo que tinha chegado pés recentemente. A boca salivou, a língua saiu procurando umedecer os lábios secos. Hoje não, só quero carne de boi, nada de frango. Que é isso? Os pés estão fresquinhos, com as unhas cortadas e tudo. Oh, Jesus, dai-me força. Meio quilo, não, um quilo, não, não, três quilos, espere, quanto chegou? Dez quilos, não, é muito, trouxe pouco dinheiro. Pode pagar depois?, ai não sei, sabe que não gosto de ficar devendo. Estava querendo comer linguiça também. Levo tudo. Boa tarde senhor, fique com deus. Eu também?, eu nada, ai que remorso, eu vou voltar para devolver...
Mas que nada, em pouco tempo estava em casa, cuidando amorosamente do tempero. Dez quilos, era muito pé. Quantos frangos, galinhas, galos mortos. O que diria suas galinhas se soubessem? Não contaria, silêncio mortal sobre o assunto. Silêncio mortal. Ai, mas elas dariam pelo cheiro. Foi no vizinho, no vizinho, vocês sabem que eu prometi, e promessa é dívida.
Mas o cheiro estava divino, o cheiro era o céu na terra, e certamente, se existia um céu para ela, ele era cheio de pés de galinhas. E quando ficou pronto? Faltou ter um ataque enquanto esperava todo vapor sair da panela. Tinha fome, gana, gula, desejo. O primeiro pé foi praticamente engolido inteiro, tinha certeza que os ossinhos menores foram tragados pela avidez, do décimo em diante foi mais cautelosa, mais refinada, chupando osso por osso, saboreando calmamente, como um bom chefe degustador. Abriu uma garrafa de vinho quando chegou no trigésimo pé. Sorveu com goles maduros, reprimidos. Quando parte da panela e do vinho tinham sido consumido, e estava saciada, parou e limpou a gordura dos dedos, da boca, do nariz e do peito. Começou a sentir arrependimento. Um tão profundo que em meios aos seus arrotos de satisfação, tinha um soluço de tristeza.
Lavou as mãos, escovou os dentes, passou perfume, e foi ao galinheiro. Tudo calmo. A primeira a atacar foi florbela, se jogou do galho mais alto direto na cabeça, o bico foi para os olhos, os pés para a boca, as unhas agarrando firme. Belamina foi a próxima, e uma a uma cobraram suas promessas do corpo gritante estendido no chão, logo sem olhos, com a pele cheia de galinha. E elas entoavam: Você prometeu, você prometeu, você prometeu...
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