A Filha da Serpente DTRL15

- Parabéns, Marisa. - disse a enfermeira, colocando o recém-nascido nos braços da mãe. - É um lindo menino.

Marisa não disse nada, mal podendo disfarçar a frustração com o nascimento de seu terceiro filho homem. Seu sonho, mais que isso, sua obsessão era ter uma filha. Desde que se casara com Cláudio, doze anos antes, esse era o seu maior desejo, que crescia a cada tentativa fracassada.

Lucas, Tiago... e agora Mateus. Mas, ela não desistiria de trazer ao mundo a tão sonhada menina. Nunca, jurou a si mesma. Estava disposta a tudo para ter em seus braços uma garotinha, vesti-la como uma boneca, com lacinhos, rendas, sapatinhos de verniz...

Enquanto dava de mamar ao pequeno Mateus, Marisa repassava mentalmente todas as simpatias, promessas e novenas que fizera para engravidar de uma menina. Tudo em vão. O Céu parecia decidido a lhe negar algo tão simples, tão normal.

Seu marido já lhe propusera que adotassem uma menina, mas Marisa queria uma filha gerada de suas entranhas, de onde pareciam somente brotar frutos do sexo masculino.

- Se eu não tiver uma filha minha, nascida de mim, jamais serei completamente feliz. - respondera a Cláudio com um brilho de fanatismo nos olhos.

Ao deixar a maternidade, Marisa passou em frente da pequena capela, cuja porta estava entreaberta, Disse ao marido e à sua mãe, que carregava o bebê, que fossem na frente que ela iria entrar ali um instante.

Marisa entrou, mas ao contrário das outras vezes, não fez o Sinal da Cruz. A capela estava deserta e na penumbra, o silêncio ali dentro era total. Apenas uma vela ardia aos pés da imagem de Nossa Senhora das Graças, entronizada no altar entre dois vasos de flores. Marisa perdera a conta de quantas vezes suplicara a Nossa Senhora pela vinda de uma filha. Ela sempre respondia aos seus rogos com outro menino. Agora os olhos de Marisa não fitavam a mãe de Jesus, e sim a serpente peçonhenta que ela esmagava aos pés. Palavras ácidas, uma blasfêmia terrível brotou de seus lábios.

- Já que a senhora não quer me dar uma filha, quem sabe essa que está aí debaixo dos vossos pés não tenha mais poder de me ajudar... - disse Marisa, e saiu da capela, sem perceber que uma misteriosa corrente de ar gelado apagara a vela. E que uma lágrima rubra, de sangue, rolou dos olhos de Nossa Senhora...

Dois anos se passaram. Marisa , já beirando os 40 anos,engravidou novamente. A ultrassonografia confirmou a realização de seu maior desejo. Estava enfim grávida de uma menina, a tão esperada, tão desejada e sonhada, a sua idéia fixa de muitos anos. Dar uma idéia da felicidade de Marisa era impossível. Ela passou toda a gestação preparando o enxoval mais lindo desse mundo, todo cor de rosa, o enxoval de sua filhinha, a quem, deu o nome de Mel. Os três meninos, com a próxima chegada da irmã ficaram totalmente esquecidos. Todo o amor de Marisa pertencia a Mel.

Quando Mel nasceu, todos ficaram maravilhados com a beleza da bebê. Era a princesa do berçário. Marisa, extasiada, estava sempre com ela nos braços. Não queria que ninguém, nem os meninos, nem mesmo o pai a tocassem, como se Mel fosse feita de um raro e precioso cristal.

À medida que os meses passavam, Mel ia ficando cada vez mais bonita. Tinha a pele de porcelana, olhos cor de esmeralda e cabelos negros e cacheados. Parecia um anjo de tão linda. Também a obsessão de Marisa pela filha crescia a cada dia. Para ela todos os carinhos, todas as atenções, ninguém mais contava. Os meninos ficavam a maior parte do tempo na casa da avó, enquanto Marisa saía todas as tardes para exibir sua linda filhinha em seu carrinho de princesa.

Gastava o que tinha e o que não tinha nas boutiques infantis, para transformá-la numa verdadeira boneca. Seu casamento entrou em crise. Cláudio reclamava de seus gastos excessivos, que haviam estourado os limites do cartão de crédito, e de sua crescente frieza para com ele e os meninos. Mas de nada adiantou. Marisa, em sua idolatria, só tinha olhos para Mel e os outros não contavam para ela.

Aproximava-se o primeiro aniversário da menina. Marisa obrigou Cláudio a fazer um empréstimo no banco, pois queria dar uma grande festa no clube mais chique da cidade. Convidou todos os conhecidos e até mesmo as pessoas da alta sociedade. Seu sonho era que sua filhinha desde cedo brilhasse muito, muito... mas, na véspera da grande festa, uma tragédia frustrou seus planos. Cláudio, que como representante comercial que era viajava muito, morreu num acidente de carro. E assim, o primeiro aniversário de Mel teve como festa o enterro de seu pai.

Depois da morte do marido, Marisa sentiu-se mais livre para mimar e embonecar sua idolatrada filhinha. Até nem lamentava muito a perda de Cláudio, estava farta dele e de suas reclamações. O que a aborrecia de verdade era a linda festa não ter acontecido. Mas, não tinha problema, um ano passa depressa e no ano seguinte Mel teria a festa de aniversário que merecia.

Mel ia completar dois anos, já corria e brincava pela casa. Cada dia mais linda. Era impossível alguém não ficar impressionado com a beleza da menina. Marisa preparou outra grande festa. Na véspera o filho mais velho, Lucas, morreu atropelado por uma moto diante de casa.

E assim se repetiu nos próximos aniversários de Mel. No terceiro, Tiago morreu vitimado por uma bactéria desconhecida, no quarto ano, Mateus faleceu afogado na piscina, e no quinto aniversário de Mel, faleceu sua avó, a mãe de Marisa, de um infarto fulminante.

Assim, Marisa e Mel se tornaram as únicas sobreviventes de uma família a que os vizinhos e parentes já taxavam de amaldiçoada. Mas, desde que tivesse sua filha consigo, nada importava a Marisa, nem mesmo aquelas cinco mortes sucessivas. No fundo era até melhor, pensava ela em seu fanatismo, assim ninguém podia se intrometer entre ela e sua filha. Agora, com cinco anos de idade, Mel deixava entrever a belíssima mulher que viria a ser. Já estava na escola, era de uma inteligência acima da média. Marisa sonhava um futuro brilhante para ela, queria que fosse modelo, atriz, socialite...

Chegou o sexto aniversário da menina. Marisa ainda não desistira de dar uma grande e linda festa de aniversário a sua filha. Então, na véspera, teve um sonho, ou melhor, um pesadelo...

Sonhou que via uma serpente enorme, negra, deslizando no chão de seu quarto e subir para a cama, para baixo dos lençóis... Marisa, aterrorizada, queria gritar e não podia. A cobra se enrolava no seu corpo, apertando-lhe dolorosamente os ossos e músculos. Ela lembrou então das palavras que dissera há muito tempo, na capela do hospital... viu Mel parada na cabeceira de sua casa, de uma beleza fulgurante, um sorriso maligno nos lábios de rosa,,, então a serpente falou no seu ouvido com voz humana, a mesma voz doce que seduzira Eva no Paraíso.

- Você me pediu uma filha, Marisa, lembra? E eu lhe dei... mas tudo tem seu preço. Mel custou as almas de seus familiares. Já levei seu pai, seus irmãos, sua avó... agora é a sua vez!

E o bicho hediondo, enroscando-se no pescoço de Marisa, a sufocou até a morte...

Marisa acordou num lugar todo feito de fogo e desespero. Por entre as chamas, viu alguns vultos se aproximando. Reconheceu Cláudio e seus três filhos, deformados pelas sequelas de suas mortes, com instrumentos de tortura nas mãos. E eles diziam:

- Oi mamãe, vem brincar com a gente...

FIM

Maryrosetudor
Enviado por Maryrosetudor em 15/03/2014
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