Doutor Excêntrico

A esposa de Rafael era insistente em sua preocupação, e novamente o aconselhava com seu tom mais convincente.

- Rafa, você tá meio pálido e desanimado ultimamente - Júlia acariciava os cabelos castanhos e longos do marido - Vá ao médico, por favor.

- Tá bom Jú, prometo que vou - Rafael estava cansado de tanta insistência.

Pegou o cartão do seu plano de saúde e acessou o site, marcando um exame no hospital da rede mais próximo de sua casa. Iria ser atendido pelo Dr. Ignácio Pereira, marcou a data e o horário do exame em um pedaço de papel: As 13:00 do dia 13/06, na sala 6 do sexto andar. Achou estranho a repetição daqueles números agourentos, Rafael era supersticioso, mas não conseguiu marcar outro horário ou médico. Pensou em desistir, porém não aguentava mais ouvir sua esposa pedir pra ele ir ao médico, então aceitou de má vontade o horário. Pegou o pedaço de papel e enfiou no bolso da jaqueta.

- Conseguiu marcar o exame? - Júlia perguntou.

- Consegui - Respondeu Rafael em um tom nada amistoso, ao que logo após foi dormir sem ao menos um boa noite.

Acordou mal humorado e indisposto sabendo do compromisso do dia: tinha total aversão a hospitais. Trabalhou até as onze na loja de computadores onde era balconista, e as treze em ponto estava de frente para a sala 6 do sexto andar. Vale dizer que aquele dia 13 era uma sexta-feira, e Rafael não estava nada contente de estar em um hospital. Quando aproximou sua mão da maçaneta da porta do consultório, essa se abriu antes que pudesse toca-la e um velho de óculos de lentes grossas e cabelo muito grisalho o recepcionou com um sorriso malicioso.

- Entre meu rapaz! - O médico era franzino e possuía uma barba longa e tão grisalha quanto seus cabelos. Porém possuía uma voz grave e penetrante, e após a breve recepção dirigiu-se a passos firmes para sua mesa.

Rafael sentiu-se estranho ao adentrar no estranho consultório. Havia uma grande estante na parede ao fundo, recheada com vidrarias contendo líquidos coloridos dos mais diferentes, porém sem rótulos. Na mesma estante, vários livros grossos e antigos também se amontoavam de forma desorganizada, evidenciando que eram constantemente usados.

- Em que posso ajudá-lo? - Disse Ignácio com seu tom firme.

- Então doutor, é que de uns tempos pra cá já não sinto disposição para fazer as coisas. Minha esposa diz que estou pálido, apesar de eu não notar isso, mas realmente me sinto cansado e desanimado - Rafael falava de forma vacilante.

- Hum, interessante. Levante-se por favor e fique de costas para mim. Tire sua camisa e coloque ali - Disse Ignácio apontando para a maca no canto da sala levantando de sua cadeira mais rápido do que seu franzino corpo aparentava poder.

Rafael obedeceu o pedido do médico, e esperava sentir o estetoscópio em sua costas, no entanto, Ignácio apoiou sua mão direita nas costas de Rafael. Ao sentir o toque daquela mão enrugada um arrepio percorreu a espinha de Rafael que tomou um susto ao ouvir a voz retumbante de Ignácio.

- Aconteceu algo digamos "diferente" com você nos últimos tempos? - Perguntou Ignácio sem tirar a mão das costas de Rafael.

- Bem, fui ao enterro do meu melhor amigo. Fiquei muito abalado, é claro, mas já superei isso. Não acho que tenha alguma relação com meu problema - Rafael sentia-se extremamente desconfortável e respondeu a pergunta mecanicamente.

- Entendo, então minha teoria está correta - disse Ignácio convicto, retirando a mão das costas de Rafael e pedindo que se vestisse e voltasse a se sentar - Pois bem, darei meu diagnóstico. Porém, muito provavelmente, você irá me achar um louco.

Rafael o olhava e pensava no que dizer, ainda meio abalado não sabia pelo que.

- Pois bem, correrei o risco: esse seu amigo e você possuíam uma amizade de longa data, não é? - Rafael afirmou desconfiadamente com um aceno de cabeça - Vocês fizeram alguma promessa que não conseguiram cumprir?

Rafael não via o sentido de uma pergunta daquelas. O que aquilo tinha a ver com seu problema, com que intuito um médico faria uma pergunta daquelas. Sim, havia feito um juramento e não conseguiu cumprir: prometeu proteger sempre seu amigo, mas falhou ao reagir naquele assalto e agora ele estava morto. Sua mente fervilhava de pensamentos quando decidiu que aquele médico realmente era louco. Preparava-se para se levantar e sair da sala quando tomou outro susto: não conseguia levantar da cadeira, parecia grudado e por mais que tentasse, nenhum músculo seu o obedecia. Assustado tentou mover os braços, que para seu terror também pareciam congelados. Numa fúria interna preparou um grito, mas assim como seus membros sua boca não obedecia. A única parte de seu corpo que parecia obedecê-lo eram seus olhos, que agora moviam-se cada qual de maneira diferente, como se estivessem desconectados, tentando colocar pra fora todo seu pânico.

- Pare! - Ordenou Ignácio com uma voz de trovão, e instantaneamente os olhos de Rafael deixaram seu movimento caótico e fixaram-se no olhar penetrante do médico - Sei que fez uma promessa para seu amigo, mais precisamente, uma promessa selada com o sangue de suas mãos. Para vocês era só uma brincadeira, mas esses rituais são poderosos - Ignácio olhava fixamente nos olhos paralisados de Rafael, tanto que ele sentia o médico dentro dos seus pensamentos. Sua mente estava na fronteira com a insanidade, estar preso dentro do próprio corpo e ainda com um intruso em sua mente estava levando Rafael ao seu limite.

- Quando seu amigo morreu - Continuou Ignácio sem desviar o olhar - Ele levou parte de sua alma com ele, e é essa a causa do seu mal estar. Mas aí vem a boa notícia - E deu um sorriso sagaz - Sem uma parte de sua alma você ficou vulnerável, e logo senti sua fraqueza daqui da minha humilde sala - Ao dizer isso, o médico abriu os braços e deu uma gargalhada desajeitada - E, como planejei, cá está você, com uma alma novinha para mim.

Rafael, que estaria chorando caso conseguisse, sentia sua cabeça latejar, seus membros formigarem e um vazio enorme formava em seu estômago.

- Bom, terminemos logo com isso - Dito isso, Ignácio sacou um bisturi com a mão direita e fez um movimento acendente com a esquerda. Ao fazer esse movimento, os dois braços de Rafael esticaram-se involuntariamente e o médico fez dois cortes profundos, um em cada braço. O sangue escorria farto e rapidamente Ignácio agarrou os braços de Rafael com as mãos nuas sobre suas feridas.

Logo que o médico o tocou, Rafael sentiu sua vitalidade sendo drenada, sentia-se cada vez mais vazio, ficava mais difícil pensar e sua visão ficava turva. Os olhos do médico estavam opacos e seu corpo todo tremia, como se estivesse sendo possuído. A face de Rafael murchava e sua pele era como um maracujá velho e desbotado. "Sabia que não foi boa ideia casar com aquela mulher" pensou pouco antes de a última gota de vitalidade abandonar seu corpo enrugado e anêmico.

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Uma enfermeira andava apressada pelo corredor do sexto andar quando deu de cara com um rapaz atraente de jaleco.

- Você é novo por aqui? - Perguntou com sua voz meiga.

- Sim, é meu primeiro dia - Respondeu o rapaz cordialmente.

- Só por curiosidade: você é filho do Dr. Ignácio? - Perguntou a moça ao observar mais de perto o rapaz.

- Sou sim, ele já está velho e já está na hora de alguém substituir ele não acha? - disse o rapaz dando um sorriso - Estou indo comer algo, me acompanha?

- Seria um prazer - Disse a moça animada - E dizem que sexta-feira treze é um dia de azar! - Os dois riram juntos, mas o rapaz riu alto, bem mais alto.

Gabriel Freitas
Enviado por Gabriel Freitas em 11/03/2014
Reeditado em 01/04/2014
Código do texto: T4724919
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