Os Fantasmas

Era uma noite quente, sufocante. Ele estava praticamente deitado na poltrona. Suas costas se apoiavam no acento, as pernas abertas e os braços como de um crucificado. Na mão direita uma garrafa com o último gole de cerveja. Ergueu a garrafa e despejou o seu conteúdo no rosto, molhando ainda mais a camisa suada.

Levantou com dificuldade e caminhou pela sala com cuidado. Não que tivesse medo de tropeçar no lixo que se espalhava pelo apartamento, mas, porque não lembrava para que lado ficava o banheiro.

Chegou à cozinha. O fogão, a pia e a mesa estavam cobertos de embalagens de tele entregas com restos que há meses serviam de banquete às baratas e pouso para as moscas.

Apoiando-se com uma das mãos na parede foi cambaleando pelo corredor repleto de jornais antigos, revistas rasgadas, cd’s com seus estojos quebrados, livros danificados, tocos de cigarro, garrafas de uísque e cerveja vazias, seringas usadas, correspondências não abertas, baratas vivas e mortas que se espalhavam por todo o chão do imóvel.

No banheiro, afrouxou o cinto e fez menção de sentar no vaso. Só aí notou que havia fezes em suas cuecas. Acomodou-se na privada e uma diarreia abundante ameaçou encher o vaso entupido.

Logo depois, tirou as calças e as cuecas e as jogou num cesto repleto de calças, cuecas e camisetas sujas de fezes e molhadas de urina e bebida.

No chão havia poças de mijo e crostas de merda. Tomou um banho. Secou-se numa toalha suja que estava pendurada. Passou os dedos como se fossem os dentes de um pente pela cabeleira morena que tinha parte dominada pelos fios brancos. Mirou a barba embranquecida. Parecia mais velho do que os seus cinquenta anos comprovados na carteira. Os olhos vermelhos de quem leva uma porrada por minuto da vida.

Retornou à sala e telefonou para o mercado no térreo do edifício. Pediu seis garrafas de cerveja, duas empadas e um uísque.

Ligou a TV para assistir ao noticiário. Sentou-se na poltrona, mas, por instantes a cabeça insistiu em girar e ele permaneceu de olhos fechados tentando se livrar da incômoda sensação. Seu corpo tremia.

As paredes ganhavam rapidamente um tom cinza e logo a seguir preto que brotava nos cantos do teto e se juntava às manchas de mofo e sujeira. Teias de aranha cresciam em poucos segundos. Seres cadavéricos com suas peles e carnes dependuradas passeavam pela casa e faziam do arrastar dos vasilhames e dos jornais o arrastar de suas correntes.

Enormes sombras negras planavam pela moradia enquanto que o mofo da morte tomava conta de todas as paredes, como uma inundação.

Não prestava atenção às notícias. Olhou pela enorme janela da sala e viu a cidade com suas luzes. Ao fundo os relâmpagos tinham mais força que a parca iluminação das casas. Alguns prédios mais altos possuíam pontos que piscavam desviando sua atenção por segundos.

Olhou para o chão ao lado da poltrona na esperança de encontrar alguma garrafa que ainda conservasse um pouco de cerveja, mesmo que fosse, quente.

Os zumbis continuavam a peregrinar pelo apartamento. Suas peles transformadas em cascas caiam pelo imóvel e se juntavam aos restos de cigarro, pingos de bebida e comida e eram levadas pelas baratas. Seus órgãos se derretiam por entre os ossos que estavam à vista.

Aqueles seres já não o assustavam mais. Não tinham a menor importância. Nem o fato de há anos não vir ninguém visita-lo. Não se lembrava quando havia feito sexo ou se masturbado pela última vez. Não tinha vontade. Também não queria conversar com ninguém, por isso, não sabia o que era a solidão.

Ouviu a campainha e com muito esforço se levantou. Abriu a porta e se apressou em dar o dinheiro ao entregador e pegar a encomenda. O jovem fez uma careta devido ao fedor que o morador e o apartamento exalavam.

Tornou a sentar no sofá e colocou a embalagem com as empadas no colo. Abriu uma cerveja e bebeu da garrafa, sem se preocupar com um copo. Depois, mordeu o alimento. Seu peito se encheu de migalhas.

Após a refeição, permaneceu acomodado na poltrona bebendo. Olhava satisfeito para o canto da sala onde um poste era o escorregador de crianças que desciam do teto. Não se lembrava de ter colocado aquele poste ali. Os mortos haviam dado lugar a crianças loiras, morenas, negras, ruivas, pardas, amarelas que corriam felizes pelo apartamento sem importuná-lo e ele sem incomoda-las. Vestiam branco e apesar das intensas brincadeiras conservavam suas vestimentas completamente limpas.

Sua única preocupação era beber e se drogar. Não tinha mais lembranças. Não recordava do rosto do pai, da mãe ou dos irmãos.

Abriu uma garrafa e despejou a cerveja na cabeça. Sentiu prazer quando a bebida escorreu por seu rosto e afastou o calor. Tomou o resto que havia no vasilhame e o fez rodar pelo piso indo se juntar a outros que havia num canto como se fossem um jogo de boliche.

Quando terminou de beber as cervejas e se saciava com o uísque notou que o poste e as crianças havia desaparecido. Agora, enormes pássaros brancos voavam pela sala e ele foi até a janela e observou um queda d’água que despencava do seu apartamento no décimo andar até a rua.

Subiu no parapeito, teve dificuldade de se equilibrar, apoiando cada uma das mãos nas guarnições da janela. Ficou de braços abertos e ameaçava se jogar na lagoa de água límpida que ele via na calçada. Começou a gritar para uma mulher que passava para que olhasse a cascata. Ria e bebia. A desconhecida acelerou o passo com medo.

Seu corpo gingava para dentro e para fora do apartamento até que se desequilibrou e tombou com violência sobre o sofá e a seguir se estatelou no chão. Ele permaneceu ali por um longo tempo admirando as figuras fantasmagóricas que retornavam ao teto da sala.

Conseguiu se erguer, apoiando-se na poltrona e caminhou até o banheiro. Vomitou na privada e no chão. Depois foi ao quarto

Caiu de bruços na cama ainda segurando a garrafa de uísque. Bebeu um gole e dormiu.

No dia seguinte levantou. Tudo girava. Um gosto podre na boca. Vomitou no chão do quarto, no corredor e no vaso sanitário.

Passou a mão pelos cabelos, água pelo rosto e caminhou pelo corredor repleto de garrafas vazias na esperança de encontrar algo para beber ou resto de droga numa seringa.

Decidiu ir até o mercado no térreo. No corredor do edifício o negro e o mofo da morte eram seus batedores anunciando sua agonia, tornando as paredes podres e descascadas. Encontrou os seres decrépitos que circulavam por seu apartamento. Os mortos vivos e ele se cruzavam no corredor e no elevador como se não existissem.

A rua em preto e branco revelava a mesma tristeza e degradação do interior do prédio. Enormes teias de aranha cobriam os edifícios e as casas de paredes em decomposição.

Comprou seis cervejas e um uísque. Abriu uma cerveja e caminhou até a rua. Olhou com estranheza para a quadra seguinte da movimentada via. Há anos que não caminhava até lá, indo apenas do seu apartamento para o mercado e logo a seguir retornando para casa.

Os primeiros goles fizeram retornar as cores da realidade. Bebia parado em frente ao mercado sem prestar atenção em nada. Não notava as mulheres bonitas que passavam. Os carros, os ônibus e a multidão não lhe incomodam porque para ele não existiam. Era como se tudo estivesse dentro de um grande aparelho de televisão e não lhe chamasse a atenção. Tornou a subir ao apartamento e a viver com seus fantasmas.

Paulo Antonio Branco
Enviado por Paulo Antonio Branco em 07/03/2014
Reeditado em 07/03/2014
Código do texto: T4718725
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