SEM PÁTRIA
[Garoto Cubano Repatriado à força]
— Se eles quiserem Elián. terão de vir buscá-lo aqui, arranca-lo de minhas mãos!
A obstinação do senhor Lázaro Gonzalez não deixava margem de dúvidas. Dirigida contra as autoridades norte-americanas, não se tratava de bravata nem de palavras ao vento. Falava principalmente ao pai de Elián, que viera de Cuba para resgatar o filho.
Gonzalez segura pela mão o garoto, seu sobrinho. Atormentado pelas lembranças, Elián recorda com detalhes a aventura, o medo, o terror sentidos quando fugiram da Ilha, há mais de cinco meses.
— Vamos, filhinho, temos de embarcar logo, antes que o dia fique claro.
Estava escuro quando a mãe e o padrasto o carregaram pela praia, na direção de uma balsa, construção rústica, improvisada. Apenas pranchas e tábuas pregadas , um mastro de três metros no qual estava amarrada a lona suja, para servir de vela. Era de madrugada e fazia frio.
— Mamãe, porque não posso ficar com papai? Quero trabalhar com ele na oficina mecânica.
— Vamos, garoto, não podemos ficar discutindo aqui na praia. — O padrasto estava afobado para chegar até a pequena embarcação.
— Já conversamos sobre isto, lembra? Agora temos de ir, não tem jeito de voltar.
Subiram rapidamente no barco, jogando as trouxas de roupas que conseguiram ajuntar. Naquele momento, nada mais importava senão fugir.
Sair da Ilha era um sonho de muitos cubanos. Tinham notícias dos milhares de patrícios que viviam em Miami, a impressão era de que todos usufruíam uma vida de fartura e liberdade. Por isso a mãe e o padrasto venderam tudo o que tinham, apuraram dinheiro suficiente para comprar a frágil embarcação, e agora começava a grande aventura.
— Vamos! Temos de aproveitar a maré. —- Forte e decidido, o homem dá as primeiras remadas. Acerta a posição da lona no precário mastro.
A balsa se afasta da praia. São apenas 145 quilômetros a separar a Ilha do continente. Aproveitando a maré e a corrente favorável, dentro de poucas horas chegarão ao seu destino, ao Eldorado. O mar está calmo, a praia desaparece, agora está tudo escuro, como é que ele sabe a direção certa? Pensa o garoto.
O tempo passa, Elián está aconchegado à mãe, as ondas batem nas bordas da embarcação, chap-chap, o garoto adormece. Quanto tempo, não sabe. Acorda assustado, agora a balsa balança violentamente, o vento passa sibilando no mastro precário, a lona bate contra o mastro, plaft-plaft-plaft. Relâmpagos caem sobre o mar, não muito longe. A mãe agarra-se com uma das mãos ao mastro. Uma onda mais forte varre a jangada. O mastro quebra-se, a lona é atirada ao léu. As ondas avançam cada vez mais altas, passando por cima de Elián e sua mãe.
— Madrecita, tou com medo!
— Segura no meu pescoço, não solta. Agarra com força, não solta!
Elián não vê mais o padrasto. Só ele e a mãe, agarrando-se às tábuas. Acima do barulho das ondas e da tempestade, ouve o ranger de madeiras, a embarcação está se desconjuntando. O vento aumentando, as ondas cada vez mais fortes, começa a chover. O braço direito envolve o pescoço da mãe, a mão esquerda segura na madeira. Suas mãos sangram do esforço de agarrar as arestas vivas da madeira. A jangada é jogada para todos os lados. As ondas parecem estar com raiva, como é que vou fazer para me manter aqui? Pensa a mãe.
— Madrecita! ¿Dónde estas?
O garoto desprendeu-se da mãe, arrastada por forte onda para o outro lado. Aterrorizado, vê a mãe desaparecer, confundindo-se e mesclando-se com a escuridão. Agarra-se com mais vigor à beirada com ambas as mãos. Agacha-se firme, enquanto a água passa por cima das pranchas desconjuntadas.
O dia parece querer romper por sobre o temporal, uma claridade difusa revela que ele está sozinho no barco. Vomitou muito, está sem forças. As roupas estão encharcadas, a água salgada entra-lhe pela boca, ferindo os lábios, a língua e a garganta.
O menino perde os sentidos. Cessam as dores e o pavor. Mergulha nas bênçãos do nada.
— Capitão, vejo algo na praia da ilhota logo à frente. — Informa o sub-oficial, pesquisando atento, com possante binóculo, as margens das pequenas ilhas do Estreito.
— Dirija o barco para lá.
Elián jazia sobre a areia quente, ainda ensopado. Por alguns momentos abre os olhos, vê homens uniformizados se aproximando. Desmaia novamente enquanto os tripulantes do barco da Guarda Costeira da Flórida o transportam para bordo.
— Na certa é sobrevivente de mais um barco de fugitivos da Ilha. — Comenta o sub-oficial.
Dois dias após o salvamento, Elián foi visitado no Hospital da Guarda Costeira. Garoto esperto, mesmo combalido, soubera dizer seu próprio nome e o de parentes que viviam em Miami.
— Si, o garoto é meu sobrinho. — Lázaro González acolhe o sobrinho. Sabia que a irmã, mãe de Elián, e o companheiro estavam planejando a fuga há tempos. O tio cuidou de tudo, assinou os papéis responsabilizando-se pelo garoto.
— Venha, Elián, vamos para casa.
O garoto sabe que jamais verá sua mãe nem o padrasto, ambos desapareceram na tempestade. Lembra-se com muita tristeza do pai e da oficina de conserto de carros em Havana. Deseja voltar a morar com o pai, parece-lhe ser simples assim. Como voltar para casa, abraçar o pai, sentir o cheiro forte de graxa. Tem apenas seis anos e quer ser mecânico, como o pai.
— Sim, Elián, logo estarás com teu papai. — Promete-lhe o tio Lázaro. Os documentos que assinou dão-lhe a custódia provisória do menino. Nada é definitivo com relação aos refugiados e será melhor para o garoto que volte a viver com o pai. Em circunstâncias normais, Elián seria rapidamente recambiado para a Ilha e devolvido ao seu pai.
As coisas, porém, não são tão simples assim. Sobretudo quando há interesses políticos e de propaganda na vida de Elián. A comunidade de cubanos exilados em Miami fez do garoto um símbolo e motivo de uma batalha política contra o ditador da Ilha.
Apesar de cercado de mimos e atenções, o menino vive das recordações de sua vida feliz e despreocupada em Havana. Recorda-se do pai, Juan Miguel, quer ser como ele, trabalhar entre os velhos carros na oficina, consertar motores, pintar as latarias e polir os cromados.
Mesmo separados, os pais mantinham boas relações. Mercedes permitia que o filho passasse algumas tardes com o pai, era bom para o garoto essas horas de convivência. Até que Mercedes passou a viver com Hernando. As tardes na oficina foram proibidas. Hernando vivia falando em mudar-se, em ir para longe da Ilha, e trabalhava exclusivamente para a realização desse sonho. Não dizia claramente, que ninguém fala em deixar a Ilha – embora seja este o significado de “mudar-se”.
As notícias do salvamento do único sobrevivente da infeliz tentativa de fuga estourou como uma bomba na Ilha. Imediatamente as autoridades e o pai exigiram a volta do garoto. A permanência, em Miami, do menino de seis anos transformou-se num caso internacional , envolvendo autoridades de Washington, funcionários do Departamento de Justiça dos Estados Unidos e o ditador da Ilha.
— O garoto está sendo explorado pelos parentes, é vítima de abuso psicológico e não está freqüentando a escola. — Afirmou a doutora Greenlener Winner, pediatra e assistente social, reportando-se ao pedido de informações feito pela Secretária de Justiça dos Estados Unidos. Na Ilha, o próprio ditador se engajou na “luta” para o retorno do menino. Passeatas, comícios (nos quais o líder fala durante três, quatro horas) e cartazes reclamam a volta de Elián.
Juan Miguel obtém permissão e viaja para Washington, de onde acompanha de perto as medidas para recuperar o próprio filho. Lázaro muda de opinião, passa a não concordar em liberar o sobrinho, cuja guarda detém. Também radicalizou: mantém o garoto em casa, que, aliás, permanece cercada por uma barreira humana. É a resistência dos exilados cubanos contra o repatriamento do garoto.
Uma ordem judicial foi expedida pela mais alta corte norte-americana, a fim de entregar o garoto ao pai. Mas quem irá cumpri-la? A polícia da cidade é mobilizada, agentes federais circulam incógnitos pelo bairro conhecido como Pequena Havana. nas imediações da residência de Lázaro. Todos agem com cautela, principalmente as autoridades americanas. Uma semana inteira passa sem que as intransigências de ambas as partes se arrefeçam.
Tarde de sábado, dia 22 de abril, ano 2000. Há exatamente cinco meses Elián passara pela experiência mais cruel de sua vida. A fuga da Ilha, o desaparecimento da mãe e o naufrágio são imagens de terror indeléveis em sua cabeça. Elián brinca num dos quartos da casa do tio. Na casa estão apenas o garoto e a prima Maris. Está tudo muito quieto. Os cubanos que faziam a vigília em torno da casa, há alguns dias, desapareceram. Na rua há pouco movimento, a maioria aproveita a tarde para sair, fazer compras, ir até o mercado libre.
Repentinamente, Elián ouve barulho na porta de entrada. Assusta-se e corre para se esconder no armário. Inutilmente. É agarrado por forte mão.
— Me larga, me deixa! — Grita inutilmente com o soldado, que lhe aponta uma metralhadora. Outro homem armado o segura por trás, e o garoto é carregado para um veículo estacionado em frente á casa de tio Lázaro. Os soldados empurram Elián para dentro do caminhão todo fechado. As portas batem com violência e Elián se vê mergulhado na escuridão.
Elián e pai retornam à Ilha. O avião sobrevoa Havana. Juan Miguel está contente. Ao seu lado, o filhinho cochila. O garoto tem se comportado de maneira estranha, está apático, mas Juan espera que tudo volte ao normal quando chegarem à Ilha, e a vida do filho tomar um rumo certo.
Os últimos dois meses foram estressantes tanto para ele como para o garoto. Depois que o filho foi resgatado pelos agentes federais americanos e devolvido à sua guarda, tivera que enfrentar um processo cansativo, até que os malditos ianques considerassem que ele, o pai, é que tem o direito de criar o filho, e não aquela turma de revoltados de Miami.
Com Elián passou a habitar uma casa na periferia de Washington, alugada pelo governo americano. Pelo menos, é o que lhe tinha sido informado. Burocratas desgraçados. Foi necessário contratar um advogado e demandar nos tribunais a anulação do pedido de asilo político, feito pelo tio Lázaro. Dois meses de idas e vindas, de interrogatórios, intimações, entrevistas humilhantes. Seu sentimento de paternidade foi duramente posto a prova, contestado, vilipendiado. Mas venceu. Venceu os poderosos e arrogantes gringos.
No aeroporto, centenas de pessoas assistem à descida do avião. Estudantes agitam bandeirinhas de Cuba enquanto cantam o Hino Nacional.
— Papá, quero ir ver os carros na oficina. — Elián pede, logo que entram no carro.
— Sí, chiquito. — Concorda o pai, mesmo sabendo que tão cedo não voltará à sua oficina mecânica em Varadero. — Ouça, Elián, agora não vamos direto para nossa casa. O governo quer que a gente vá morar numa casa na praia. É só por alguns meses, até você se acostumar de novo com as coisas, aqui na Ilha.
— Papá... Onde vamos morar... Na praia da nossa casa... Lá tem McDonald´s ?
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ARGOS-ANTONIO ROQUE GOBBO – BELO HORIZONTE –27/julho/2000
Conto # 039 da Série Milistórias
Publicdo em “A Babel da Torre”, vol. 2 da Coleção Milistórias.,