JJ 3054 –O VOO PARA O INFERNO
JJ 3054 – O VOO PARA O INFERNO
Jorge Linhaça
17 de julho de 2007, dia do meu aniversário, um dia comum para a maioria das pessoas.
Mais um dia normal no aeroporto Salgado Filho, de Porto Alegre. Muita gente embarcando e desembarcando, indo e vindo de vários destinos. O voo JJ 3054 da TAM chamou para o embarque. Destino: Congonhas, São Paulo.
Algumas pessoas perderam o voo naquele dia, alguns por problemas pessoais, outros por overbook . Alguns se irritaram com a falta de sorte, como sempre acontece e tiveram de ser remanejados para outros voos em outros horários.
Embarcamos normalmente, procurando nossos assentos marcados, espremendo-nos pelos corredores, como de costume e acomodando-nos como possível no exíguo espaço entre as poltronas. Sorte de quem é baixinho e magrinho... No meu caso um martírio.
Casais, crianças, jovens, menos jovens, a composição dos passageiros era a mais diversa possível. Assim como os motivos da viagem eram vários, alguns indo, outros voltando.
Decolamos normalmente para o voo de cerca de duas horas até o destino em Congonhas.
Durante a viagem nada que nos preocupasse, além das preocupações pessoais de cada um, nada no voo parecia apontar para qualquer tipo de ocorrência inesperada.
Aproximamo-nos do destino e veio o aviso de “apertar os cintos” para o pouso.
O Air bus aproximou-se do aeroporto sob uma chuva leve, o pouso foi autorizado sem restrições. A ansiedade já tomava forma no rosto das pessoas, desejosas de desembarcar e seguir cada um o seu rumo.
O que nenhum de nós, meros passageiros, sabia era que a aeronave estava funcionando com um dos reversos isolados e que já havia tido problemas nos últimos dias durante o pouso em outro aeroporto.
Aproximamo-nos da cabeceira da pista, trens de pouso devidamente baixados, o avião tocou o solo como normalmente fazia mas alguma coisa não estava correta, ao invés de sentirmos a desaceleração comum ao pouso, esta foi substituída por uma brusca aceleração no meio do procedimento, lá fora a pista ia ficando para trás e os reflexos das luzes na água ia se tornando borrões um mau agouro tomou conta de todos nós enquanto o avião se portava de forma estranha e imprevista. Sentimos quando ele saiu da pista e passou pela exígua área de escape do aeroporto, da janela pude ver rapidamente quando passamos sobre os carros que transitavam na Washington Luís, alguns foram atingidos pela aeronave que logo depois chocou-se primeiro com a estrutura de um posto de gasolina antes de finalmente ser parada pelo prédio de cargas e encomendas da empresa.
O Avião também estava mais pesado que o normal, por algum motivo não havia dispensado o excesso de gasolina das asas antes da aproximação, talvez por economia da empresa, a verdade é que as asas estavam cheias. Para quem não sabe, o “tanque de combustível” das aeronaves é nas asas.
Ao nos chocarmos com o prédio, em meio aos gritos de pavor, o atrito causado cumpriu seu papel e incendiou o combustível, transformando, quase que instantaneamente, a cabine em uma bola de fogo que foi varrendo cada poltrona, cada canto.
Nossos gritos morreram nas gargantas cauterizadas pelos vapores quentes que nos atingiram antes das próprias chamas. Nenhum de nós sobreviveu ao desastre.
O que ninguém sabe é que a morte viajava conosco, que acompanhara a tripulação durante toda a viagem, empenhada em cumprir sua macabra tarefa. Foi ela quem causou a falha mecânica, travando os controles na posição “climb” na cabine de comando, forçando o software a interpretar confusamente as informações de pouso, ocasionando a aceleração ao invés da frenagem e travando os flaps de forma que não pudessem ajudar a parar o avião.
Pudemos ver sua face se aproximando de nós junto com o fogo que consumia nossos corpos fazendo-nos sentir o martírio de mil mortes, como se fossemos arremessados nas fornalhas do inferno mais conhecido em nossas lendas e crenças.
Assistimos, ainda em choque, sem saber se vivos ou mortos, o desespero do que passavam por ali, seu olhar consternado e suas faces lívidas pelo medo e pela emoção. Pudemos ver os bombeiros chegando numa tentativa inútil de encontrar sobreviventes. Nesse dia nenhum milagre esperava por eles nem pelas câmeras de TV. Apenas a morte, apenas o sombrio clima de consternação que se abateu por todos ao lares onde chegavam as notícias por meio das emissoras.
Ficamos presos nesse limbo, entre o mundo dos vivos e dos mortos, sofrendo a angústia da impotência, de tudo ver e nada poder fazer, nem mesmo quando nossos familiares começaram a chegar, não havia maior tortura do que esta, de não termos podido dizer adeus, de termos sido arrancados desta vida de maneira tão trágica, de termos tanto a falar e nada podermos dizer.
Cada um de nós reagia de uma maneira diferente, alguns com ira incontida, outros com alguma serenidade e outros ainda em um estado de tamanho choque que pareciam estátuas moventes, sem que suas faces demonstrassem qualquer tipo de emoção. Os olhares perdidos destes últimos eram como se que indicadores do esvaziamento de qualquer esperança e da absoluta falta de compreensão do ocorrido.
Hoje recordo a tragédia com a consciência de que minha hora havia chegado, assim como a dos demais. Alguns de nós ainda não se recobraram do terror daquele dia e ainda vagam pelo memorial erguido no local da tragédia, junto à amoreira que sobreviveu à tragédia e que ficou como um símbolo de que vida sempre encontra uma maneira de se perpetuar...