O BEIJO DO VENTO



Elvira, a viúva do Dr. Walter, médico neurologista muito conhecido na cidade, costumava acordar por volta das onze horas da manhã e a primeira coisa que fazia era abrir todas as janelas da casa para o sol entrar. Ela era uma criatura de hábitos arraigados. Todo dia fazia exatamente as mesmas coisas, na mesma sequência e com pontualíssima regularidade. Dr. Walter dizia que fora nela que Chico Buarque se inspirara para fazer a canção “Cotidiano”, na qual ele descreve uma mulher que “todo dia ela faz tudo sempre igual”.
Elvira não gostava da comparação, até porque, dizia ela, nunca “acordaria ás seis horas da manhã”. E qualquer pessoa que tentasse sujeitá-la a isso e outras coisas que a mulher da canção fazia, iria ganhar um inimigo para o resto da vida. Pois para começar ela não dava “sorrisos pontuais”, não usava pasta de dente com gosto de hortelã, odiava feijão e pior ainda, não dormia na mesma cama com o marido há mais de vinte anos. Assim, jamais lhe daria mordidas de pavor e juraria eterno amor á meia-noite, como a idiota da canção.
Dr. Walter, seu marido médico, não ligava para essas esquisitices de Elvira. Afinal, eram mais de quarenta anos com ela, dois filhos e uma vida de cumplicidades, separações, reconciliações, e sobretudo, muita rotina. Depois de um tempo tudo isso resultou numa separação de corpos, mas também uniu os dois numa amizade tolerante e necessária que era mais forte que o amor. Tanto que, toda vez  que o Dr. Walter, ou a própria Elvira, apareciam sozinhos em um evento, a impressão de quem os conhecia era a de que estava faltando alguma coisa em um deles.
Pessoalmente, nenhum dos dois era pessoa de convívio fácil. O Dr. Walter já estava com mais de oitenta anos. Havia se tornado um sujeito ranzinza, crítico e intolerante, como sói acontecer a um cidadão que chega a essa idade sem conseguir acreditar muito no lado espiritual da vida, só conseguindo vê-la pelo lado científico.
Ele era assim. Um cético completo, que quando se falava em religião, o máximo que conseguia admitir era um panteísmo filosófico que creditava á leis exclusivamente naturais todos os fenômenos universais.
Para ele, Deus era uma idéia desenvolvida por pessoas ignorantes que precisavam de alguma coisa superior para justificar aquilo que suas mentes não conseguiam explicar. Isso queria dizer que Deus não existia como entidade, como sustentam as religiões reveladas, nem como princípio elementar, com querem as religiões metafísicas. Ele era um arquétipo mental que as pessoas desenvolveram pela necessidade de situar um princípio natural das coisas. Pois, segundo ele, que era médico neurologista, e durante algum tempo praticara a clínica psiquiátrica, a mente humana precisa de um princípio, um meio e um fim para poder identificar a própria existência e dar um sentido a ela dentro de um mundo que não tem sentido nem finalidade.
Não obstante, o Dr. Walter era um bom filósofo e chegara até a arriscar algumas incursões poéticas, ora de conteúdo metafísico, ora de contornos românticos e até sensuais. O metafísico era fundamentado em suas próprias crenças panteístas, conforme ele as definia, e o romantismo sensual foi todo inspirado em sua paixão de adolescente por Elvira, paixão essa que com o correr do tempo e o peso da rotina, tinha se desvanecido, mas nunca enterrado, como ele costumava dizer, depois da terceira dose de uísque.
 
A filosofia e a poesia, no entanto, ele as cultivou até o fim da vida. E uma dos seus últimos e grandes prazeres era dividir uma garrafa de uísque com qualquer conhecido que também gostasse de especulações filosóficas, recitais e um bom destilado. 
Dr. Walter era fã incondicional do poeta Augusto dos Anjos, também médico e visceralmente cético como ele. Depois do segundo uísque sempre recitava inteirinho “O Monólogo de uma Sombra”, uma melancólica balada metafísica desse famoso poeta que acreditava que toda a existência humana era um mero processo mecânico e químico que se esgotava no breve e penoso espaço que nos era dado para viver. Reproduzo um excerto dessa balada só dar uma idéia do quanto era pessimista e lúgubre o pensamento do poeta e por tabela, do seu fã número um, o meu amigo Dr. Walter:

“Sou uma Sombra! Venho de outras eras,
Do cosmopolitismo das moneras...
Pólipo de recônditas reentrâncias,
Larva de caos telúrico, procedo
Da escuridão do cósmico segredo,
Da substância de todas as substâncias!
(...)
Com um pouco de saliva quotidiana
Mostro meu nojo á Natureza Humana.
A podridão me serve de Evangelho...
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques
E o animal inferior que urra nos bosques
E com certeza meu irmão mais velho!
(...)
Quis compreender, quebrando estéreis normas,
A vida fenomênica das Formas,
Que, iguais a fogos passageiros, luzem...
E apenas encontrou na idéia gasta,
O horror dessa mecânica nefasta,
A que todas as coisas se reduzem!
(...)
E o que ele foi: clavículas, abdômen,
O coração, a boca, em síntese, o Homem,
- Engrenagem de vísceras vulgares -
Os dedos carregados de peçonha,
Tudo coube na lógica medonha
Dos apodrecimentos musculares!
(...)
Provo desta maneira ao mundo odiento
Pelas grandes razões do sentimento,
Sem os métodos da abstrusa ciência fria
E os trovões gritadores da dialética,
Que a mais alta expressão da dor estética
Consiste essencialmente na alegria.
(...)
E o turbilhão de tais fonemas acres
Trovejando grandíloquos massacres,
Há de ferir-me as auditivas portas,
Até que minha efêmera cabeça
Reverta á quietação da treva espessa
E à palidez das fotosferas mortas.”



A poesia de Augusto dos Campos não é fácil de entender nem de decorar por causa das palavras rebuscadas que ele usa, que se referem a termos científicos e filosóficos que a maioria das pessoas não conhece. Mas o Dr. Walter conhecia todos e sabia de cor esse mefistólico monólogo que fala da miséria da condição humana e da sua ânsia em criar um mundo de realidades superiores onde ele possa encontrar uma superação para essa triste condição.
Assim era o Dr. Walter: um cético por profissão, um filósofo por lazer e um cínico por livre escolha. No entanto, levava a sério as imagens do poema e gostava de provocar arrepios e esgares de nojo nas pessoas, descrevendo a decomposição dos cadáveres em suas covas e o lento e asqueroso processo tanatológico que se inicia a partir do último sopro de vida.
Por isso, dizia sempre que não queria se submeter a ele. Preferia ser cremado imediatamente e ter suas cinzas espalhadas ao vento, ou no mar. Divertia-se descrevendo como os vermes atuam na decomposição do cadáver, como os ácidos graxos do corpo se decompõem, virando uma escura e nauseabunda pasta escura; como a pele do cadáver ia ficando azulada por conta do estancamento do fluxo sanguíneo.
Ele odiava pensar em seu cadáver se decompondo em baixo da terra. Já as cinzas atiradas ao vento, dizia ele, podiam ser atraídas pelo influxo do pensamento das pessoas amadas, pois a atividade cerebral tinha qualidades magnéticas. Num sujeito tão cético como ele esse era um pensamento deveras paradoxal. Mas ele o justificava pelo seu lado poético. Podia não ser científico esse pressuposto, mas que era poético, isso era, dizia ele, com seu humor mórbido e etílico.
 
A Elvira odiava essas conversas. “Já está bêbado de novo”, dizia ela, quando ele começava a recitar o Monólogo da Sombra. Sabia que logo depois disso viria a aula de tanatologia.
Elvira era espírita. Ela acreditava na vida após a morte. Acreditava também em reencarnação. Passara a cultivar essas crenças após a morte de um dos seus filhos, um rapaz de dezenove anos, que morrera em um acidente de automóvel. Nunca se recuperara desse drama. Agia como se o garoto tivesse viajado para outro país e um dia ela iria vê-lo de novo. Por conta disso passara a frequentar centros espíritas na esperança de fazer comunicação com ele. Conservava seu quarto intacto como ele o deixara. Recusava-se peremptoriamente se livrar dos pertences dele, como se um dia o rapaz fosse, realmente, voltar para casa.

O Dr. Walter morreu como queria morrer. Tinha oitenta e dois anos e ainda cumpria uma rotina de trabalho bastante ativa. Levantava-se regularmente as seis, ia para o seu plantão no hospital, onde atendia clínica geral, depois trabalhava no seu consultório até por volta das seis da tarde, atendendo seus pacientes de neurologia. Ás quartas e sextas, ainda dava umas aulas na universidade. Nos dias em que não dava aulas costumava passar umas duas ou três horas num bar, onde encontrava os amigos de filosofia e versos.
Versejava e filosofava. Era a sua hora de lazer. Depois ia para casa, tomava mais uma ou duas doses de uísque e dormia.
Foi dormindo que ele morreu. Deitou-se, naquele estado etílico que era seu costume, adormeceu, roncou um pouco, como sempre fazia, e depois silenciou. Para sempre. Quando Elvira acordou, normalmente ás onze, como fazia todos os dias, ela viu que a mesa da cozinha estava limpa. Não havia sinais de que o Dr. Walter tomara o café matinal. Ele sempre o preparava e deixava o bule, a manteiga e as torradas em cima da mesa, para ela guardar.  
Foi ao banheiro e não viu, também, a toalha molhada que ele costumava estender para secar em cima do vidro do box. Ela estranhou. Rotina é rotina e quando ela é quebrada, a gente logo nota. Então ela foi ao quarto dele e viu que ele não havia se levantado. Nem precisou tocar nele. De pronto ela soube que ele estava morto.
 
O Dr. Walter sempre manifestara o desejo de ser cremado e ter suas cinzas espalhadas ao vento ou jogadas ao mar. Não só era profilático isso. Era também poético, dizia ele. Não queria túmulos nem placas, nem nada que o lembrasse.
Mas Elvira não concordava com isso. Ela dizia que uma pessoa sem túmulo era como se nunca tivesse existido. Ela precisava de uma túmba e de uma placa de reconhecimento para saber onde estavam seus seres queridos. Estimava poder visitá-los nas ocasiões protocolares, levar as flores de costume, realizar as missas rituais. Se não fizesse isso se sentiria culpada, como se fosse uma criatura sem sentimentos. Ademais, como era espírita, ela tinha medo de que o espírito do marido pudesse ser prejudicado se o seu corpo fosse cremado. Tinha lido algures que os padres da Inquisição mandavam queimar as bruxas e os feiticeiros para que assim os seus espíritos não pudessem permanecer no mundo, pois era crença comum que os espíritos não sobem para as esferas astrais enquanto os seus invólucros carnais não desaparecem. Eles ficam guardando seus restos mortais e ás vezes, até mexem com os vivos. Principalmente os que foram malvados em vida, pois na morte suas consciências não mudam. 
Assim, Elvira não quis cumprir as recomendações do marido e mandou enterrá-lo no túmulo que havia comprado por ocasião da morte do filho, túmulo que ela transformara num belo mausoléu.
Algumas semanas depois do enterro dele ela entrou na sala ao cair da tarde e sentiu cheiro de uísque. Era estranho. Ela não bebia uísque. O Dr. Walter gostava, mas depois da morte dele nunca mais alguém abrira uma garrafa daquela bebida naquela casa. Estranhou ainda mais ao encontrar a garrafa aberta, em cima do balcão do barzinho, justamente como ele fazia quando estava vivo.
Esse era um costume dele. Todo dia ele chegava em casa e antes de ir para o banho tomava suas doses de uísque, deixando a garrafa aberta. E era ela que sempre fechava e guardava a garrafa.
Em princípio ela achou que podia ter sido o Waltinho, seu filho caçula. Mas ele não bebia. Aliás, vivia recriminando o pai por beber aquilo. E quando o interpelou, o rapaz foi taxativo: ele não tocara naquela garrafa.
Outros sinais, como encontrar toalhas molhadas no banheiro justamente nas horas em que ele tomava banho, a mesa posta para o café da manhã, justamente como ele costumava fazer, a cama desfeita pela manhã, a convenceram de que o espírito do marido ainda estava na casa.
Porém, foram os restos de um estranho pó que ela encontrou em três ou quatro oportunidades na cama dele que a convenceu de que tinha sido o desrespeito á vontade dele que andava provocando aqueles fenômenos paranormais. Foi por isso que ela mandou exumar o corpo, cremá-lo e espalhar as cinzas ao vento, como ele havia solicitado.
 
Depois que ela fez isso tudo voltou ao normal e nenhuma coisa estranha aconteceu mais naquela casa. Passados vários meses, Elvira já havia se convencido de que tudo tinha sido fruto de alucinações causadas pelo seu estado psíquico extremamente debilitado. Até que um dia, ao visitar o centro espírita ao qual não ia há mais de um ano, um dos médiuns lhe entregou um poema, que segundo ele, havia sido psicografado na noite anterior. O poema, escrito numa letra miúda e quase gótica,dizia o seguinte: 


Minha carne se dissolveu no espaço
Nas cinzas do meu corpo extinto.
Agora estou em simbiose com o mundo.
Faço parte dos seus ossos, sangue e saliva,
Como se fôssemos um organismo único.

Que não se ouça choro de viúva ou órfão
Nem missa no dia sétimo,
Nem um ano depois, nem sete
Se fale da mão que pousou a pena,
Da cabeça que pendeu,
Do coração que descansou,
Desta voz que se calou.

Minha alma se integrará ao vento.
Ele será a minha voz no mundo.
Se quiseres a ouvirás à noite
Nas canções da chuva,
Nos assobios das árvores,
No silêncio das ruas encantadas
Onde eu passei sem deixar recado.
Se te esforçares poderás ver-me
Quando a noite for caindo
E a tua guarda se abaixar.

Mas será só por um instante.
Existem leis nessas fronteiras
Onde os nossos sopros se separam
E só permitem o tênue encontro
Das lembranças que restaram
Nos corações que se ofereceram
Em holocausto ao Verdadeiro Amor.

Mas se quiseres ainda um carinho
Deixa o vento roçar teu rosto.
É um beijo que eu te mando
Pelos lábios da Eternidade.


     Segundo o médium que o psicografou, esse poema tinha sido ditado pelo espírito de um tal Walter Lacerda de Castro, que em vida tinha sido médico e gostava de fazer poesia. Elvira nem pestanejou. Ele tinha certeza.
Naquela noite, Elvira não chorou, como era seu costume, desde que Walter morrera. Nem se sentiu mais tão sozinha. Ao contrário sentou-se no quintal e ficou esperando o vento vir beijar seu rosto. Sentiu dois beijos, um em cada face. Nunca mais voltou ao cemitério nem falou mais do filho morto nem se lamentou pela sua perda. E mudou completamente de hábitos. Tornou-se uma das mais ativas voluntárias das obras de caridade do Centro Espírita, que voltou a frequentar regularmente. O único hábito arraigado que fez questão de conservar foi a mania de sentar-se á tarde, numa cadeira no quintal, e deixar o vento beijar o seu rosto.
 
Elvira morreu há alguns dias atrás. Quando levantaram seu caixão para colocar no rabecão todo mundo sentiu uma gostosa lufada de vento inundar o ambiente. Além do beijo no rosto, que eu também senti de verdade, tenho certeza que alguém murmurou nos meus ouvidos aquele verso do Augusto dos Anjos: “Até que minha efêmera cabeça reverta á quietação da treva espessa, e à palidez das fotosferas mortas.”