O TERROR VIAJA DE ÔNIBUS
— Menina, você leva jeito ! É uma artista de verdade ! — A diretora da Escola de arte da favela da Rocinha incentiva Marisa. — Você tem futuro, não demora muito a gente fica sem você na nossa escolinha.
Ela trabalha com amor e dedicação, ensinando artesanato aos garotos da favela. Não tem hora nem dia, é dedicação integral. Não se importa com passeios nem festas. É recolhida no seu mundo de fantasia e imaginação. Sempre foi assim, desde sua infância em Iguatu, lugarejo esquecido de Deus no interior do Ceará.
Marisa sorri ao ouvir os elogios da diretora.
— Amanhã vou levar os garotos ao Corcovado. Já prometi, eles estão ansiosos. — Lembra-se do compromisso com os meninos da sua classe para o dia seguinte. Aqueles garotinhos são a extensão de sua família.
— Ei, Tia Marisa ! Veja o desenho que fiz. — Gílson, um de seus alunos, mostra-lhe a página colorida. — É um retrato do Cristo do Corcovado.
— Ele tá sorrindo, num tá bacana? — Marisa olha para Gílson, para o desenho. Um sorriso melancólico passa-lhe pelos lábios.
Marisa sente saudades de sua vida em Fortaleza. Até um ano atrás brincava com seus irmãos e primos pelas vielas do bairro humilde, um verdadeiro bando de moleques alegres e folgados.
A morte de sua mãe deixou-a livre para a grande mudança em sua vida. Com seu namorado Marcos decidiu tentar a sorte numa cidade maior. Não demoraram muito na escolha. O Rio foi a eleita para a grande aventura de Marisa. De bem com a vida, queria trabalhar, vencer na vida, ter uma família. Foram morar na favela da Rocinha, onde aprendeu a fazer objetos, embalagens e bijuterias com papel e plástico reciclados. Destacou-se pela originalidade de seus trabalhos. As peças que produzia eram vendidas em lojas de luxuosos shopping centers de Copacabana. Em poucos meses passou de aluna a professora na mesma escola do Curumim.
O que ganhava na escola era pouco, nem um salário mínimo, mas ajudava na despesa do barraco, dividida com Marcos, empregado no Jockey Clube.
Marcos, seu grande amor! Agora, sentada no ônibus superlotado, está próxima do seu ponto de descida, vai encontrar-se com ele para passarem a tarde juntos. Vai descer no ponto defronte ao Jardim Botânico, onde o namorado deve estar esperando.
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— Corre, Mancha, corre ! — O aviso veio de repente de seu pequeno companheiro, ao lado do qual tentava dormir ao relento, perto da Praça da Igreja da Candelária. - Vamos fugir daqui !
Sem esperar mais nada, Mancha dispara rumo a um beco. Ouve o metralhar de muitas armas na área onde ele pernoitava com um grupo de garotos de rua. Era um comando da polícia militar que atirava para matar e assassinou (mais tarde Mancha viria saber) oito meninos.
A tragédia, que lhe marcou definitivamente a mente e o coração, ocorrera há sete anos atrás, em julho de '93. Agora, Mancha, ou melhor, Sandro, estava partindo para uma vingança sua, particular. Contra quem? Não sabia, só queria vingar.
— Onde cê pensa que vai, cara? — Pergunta-lhe Ruivo, companheiro de rua, estranhando suas maneiras naquela manhã — Toma cuidado, esconde bem esse 38 aí, cara, a polícia num tá dando moleza, não.
— Sei lá, tou com o bicho no corpo. Hoje apronto qualquer coisa. — A voz pastosa e lerda de Mancha denuncia a ressaca de crack que ele queimou durante a madrugada. — É hoje! — Diz e se põe a caminho, dirigindo-se para a avenida.
Mancha tem esse apelido devido a uma marca que clareia o lado esquerdo de seu rosto negro. Agora está com 21 anos. Nasceu na favela Nova Holanda, lugar de miséria e intenso tráfico de drogas. Aos três anos foi entregue aos cuidados de outra família.
— Não tenho condições de criar o Alex — explicou sua mãe Elza quando deu seu filho para a amiga Marilena . Faxineira, mal ganhava para o sustento dela e do filho e não tinha com quem deixar a criança quando ia trabalhar.
Marilena achou melhor chamá-lo de Sandro e cuidou dele até os sete anos. Após o assassinato de Marilena, a mãe adotiva, Sandro foi morar nas ruas. Vivia de esmolas, pequenos furtos. Por diversas vezes, entregou drogas, foi "aviãozinho". Experimentou a maconha logo aos doze anos. Aos quinze estava viciado no crack.
Mancha, aliás Sandro, aliás Alexandre, tinha uma namorada, dois anos mais velha do que ele. Era a única pessoa em quem confiava.
— Sandro, querido, deixa dessa maconha. Isto ainda vai te matar. — Tentava tirar o namorado daquela degradação humana.
— Ara, Alicinha, cê num viu nada! Olha o que eu trouxe pra você — rindo seu sorriso largo (e que revelava um dente quebrado bem na frente da arcada superior) entregava para a namorada um anel dourado com duas pedrinhas brilhantes.
Mancha aprendeu capoeira para garantir sua própria sobrevivência entre os marginais da rua. Continuou cometendo pequenos delitos, logo passou para assaltos à mão armada. Preso, conseguira evadir-se da delegacia onde fora recolhido. Agora não parava em lugar nenhum. Fazia uma semana dormia sob o viaduto do Catumbi.
Jamais desapareceu o medo que passara na terrível noite em que quase morrera, na Candelária. Ao longo dos anos foi tomando consciência do significado daquele crime pavoroso, conhecido como a "Chacina da Candelária". Seu medo foi se transformando lentamente em ódio e do ódio nasceu o seu desejo de vingança.
O dia era hoje, o local podia ser qualquer um. Qualquer ponto da grande cidade maravilhosa servia para realizar sua vingança. Fazia três dias que conseguira o revólver, obtido a troco de um trabalho arriscadíssimo para o traficante Neguinho no Morro de Santa Marta. Com a arma escondida sob a camisa, enfiada no cós da calça, desceu pela avenida, até o ponto de ônibus mais próximo. Tomaria o primeiro que passasse, não importa qual.
Parou um vermelho, da linha 147, que vinha da estação da Central do Brasil rumo ao Jardim Botânico, na Zona Sul do Rio. .
— Esse serve. — Murmurou entre os dentes, embarcando no meio dos passageiros que também tomaram o veículo.
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Já chega cansado na sede do Batalhão de Operações Especiais, após viajar duas horas de sua casa para o local de trabalho. Nem por isso desdenha o serviço: mostra-se esforçado, sempre que pode está treinando e estudando.
Para o soldado Marcelo Oliveira a carreira de policial não é definitiva. Estuda nas horas de folga para prestar concursos públicos. É admirado pelos colegas da unidade por seu esforço. Antes de ser policial exemplar é um filho carinhoso com seus pais, com os quais mora num bairro humilde de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
Marcelo está na Polícia Militar desde '66, mas somente há dois anos entrou para o Batalhão de Operações Especiais. Seu ingresso se deu após prestar concurso interno no qual tirou um honroso segundo lugar. A dedicação de Marcelo à sua unidade de operações especiais é ainda mais admirável ao saber-se que ganha pouco mais de R$ 500,oo por mês. Modesto, não faz alarde nem mesmo de suas habilitações. Como atirador de elite de sua unidade, está constantemente em ação, principalmente nestes últimos anos, com o aumento de seqüestros, assaltos e toda a sorte de violência urbana atingindo índices jamais vistos.
Naquela manhã, Marcelo conseguira uma licença de algumas horas para tratar de assuntos particulares no centro da cidade. Atravessava o Largo da Carioca por volta das duas horas da tarde quando seu telefone celular tocou.
— Marcelo, fala o Sargento Gomes. Estamos convocando todos os efetivos para uma operação de resgate no Jardim Botânico. Venha imediatamente para a unidade. Sairemos dentro de poucos minutos.
Volta direto para o BOPE. Seus colegas já estão à espera. Troca de roupa em minutos, coloca cinto com cartuchos extras, ajusta o capacete, prendendo-o com tiras ao queixo, pega sua arma.
São quinze horas quando chegam à avenida onde uma multidão cerca o ônibus vermelho da linha 147 , no bairro do Jardim Botânico.
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Quando o ônibus entrou na avenida do Jardim Botânico Sandro , que estava em pé ao lado do motorista, saca da sua arma e grita:
-- Quieto todo mundo! Motorista, encosta o ônibus! Vão me passando o dinheiro, todo mundo.
Os passageiros, assustados, começam a gritar.
— Calados! Se ficarem quietos, ninguém se machuca. — Falando alto, aponta o revólver em diversas direções, ao mesmo tempo em que agarra uma senhora pelo braço, colocando-a como um escudo, na sua frente e passando a apontar a arma para a testa da pobre mulher.
— Se tentarem qualquer brincadeira, mato essa aqui! — Joguem o dinheiro no corredor.
A mulher-escudo começa a tremer e desmaia. Sandro larga seu braço, deixa-a escorregar para o chão. Passando agilmente sobre seu corpo, agarra pelos cabelos uma jovem morena, que passa a ser sua nova refém.
— Você aí! — Dirige-se a um rapaz magro. — Ajunta aí o dinheiro, me entrega aqui.
Situado numa posição estratégica, perto do motorista, mantém todos os passageiros sob seu controle.
— Por favor, sofro do coração — balbucia o motorista.
— Quieto, cara. Não me contrarie!
O rapaz encarregado de ajuntar o dinheiro, ágil, entrega ao seqüestrador um bolo de notas, tudo o que conseguiu apanhar no chão do ônibus.
Fora do ônibus, populares já começam a se ajuntar ao lado do veículo, estacionado à beira da calçada. Observam o movimento dentro do ônibus. Alguns já entenderam o que está acontecendo: a polícia já foi chamada.
Os passageiros começam a se manifestar. Gritam com as pessoas lá fora:
— É um seqüestro ! Chamem a polícia!.
Com uma coronhada na cabeça do rapaz que ajuntara o dinheiro, o bandido agradece o serviço prestado. A polícia chega com estardalhaço, três carros com as sirenas ligadas, pelas portas abertas derramam-se os policiais, dirigindo-se para o ônibus, empurrando os curiosos que teimam em ficar ao redor do veículo seqüestrado.
O bandido fica nervoso. Anda no centro do veículo, sempre com o cano da arma encostado na cabeça da refém. À sua passagem os passageiros abaixam-se, temerosos de um disparo. Depois que pega o dinheiro, parece não saber mais o que fazer. As portas estão fechadas, mas através das janelas ouve-se o vozerio do povo, vozes de comando dos soldados tomando suas posições.
Chega outro veículo policial, um carro diferente, fechado. Traz uma unidade especial para este tipo de operação: nas laterais do veículo está a sigla BOPE. Isto significa que a operação de resgate do veículo já foi iniciada por uma equipe de soldados de elite.
Os policiais que já estão no local há mais de uma hora não tomaram nenhuma providência para isolar o ônibus. Um homem tenta desesperadamente aproximar-se.
— É minha filha, minha Regininha que está aí dentro. — Grita: Regina! Regina, minha filha!
Uma jovem chega perto da janela semi-aberta
— Papai, não chega perto. Ele tá armado, vai matar todo mundo !— O desespero marca todas as palavras da moça.
— Você aí, motorista! Vou liberar os homens, só ficam as mulheres aqui dentro. Fala pros meganhas que quero ... que quero... uma granada... uma metralhadora... e um carro pra fugir. — Titubeia , parece não estar certo de suas exigências. Mas, em seguida, decidido, confirma:
— É isso aí! Uma granada, uma metralhadora, um carro. Sem perseguição quando eu sair daqui. Abra a porta e saiam correndo, todos os homens.
Mais do que depressa o motorista Carlos Alberto Santos abre a porta da frente do ônibus, e todos os homens saem rapidamente. Os policiais são tomados de surpresa, não têm tempo de iniciar nenhum movimento no sentido de entrar no ônibus pela porta, fechada imediatamente por Sandro assim que sai o último homem.
— Assim, sim! Todas as meninas ficam boazinhas, não quero machucar ninguém.
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Já se passaram quase duas horas de terror e pânico. O bandido continua andando dentro do ônibus, não pára um minuto. Sabe que a imobilidade faz dele um alvo fixo para a mira dos atiradores, que devem estar pelas redondezas.
Os soldados do BOPE descem rapidamente de seu furgão especial e tomam posições nas proximidades do ônibus. Agacham-se e esperam uma oportunidade de pegar o bandido.
Marcelo está bem perto da porta da frente, que continua fechada. Por ali poderá sair o bandido. Segura firme a metralhadora leve (puxa, que arma mais imprópria para esta ocasião). Queria ter um revolver bem calibrado, serviria muito mais para um tiro à queima-roupa.
O comandante do Bope tenta negociar com Sandro.
— Cara, pode sair, já providenciamos o carro pra você.! — grita na direção de uma janela entreaberta. O bandido coloca meia cabeça para fora da janela. Marcelo mira sua arma, mas o bandido tira rápido o rosto da janela.
— Quero saber da granada e da metralhadora. — Grita de volta para o comandante.
Mais espera, mais desespero. O terror aumenta a cada instante, dentro e fora do ônibus.
— Já estou ficando nervoso. — grita com as passageiras. São agora onze mulheres, cada qual mais apavorada. Sandro larga a morena, dirige-se para uma senhora no fundo do ônibus, tenta arrancá-la do banco. Marisa intervém:
— Por favor, moço, deixa minha mãe em paz! — Mente para o bandido, tentando de qualquer forma desviar sua atenção da desesperada velhinha ao seu lado.
— Sua mãe, né, belezoca ? Vou deixar em paz, sim. — Dispara a arma na direção da mulher, mas o tiro passa longe. — Então vem cá você, sua vagabunda. — Com um safanão, toma Marisa para si.
— Moço, deixa a gente sair, a polícia não vai lhe fazer mal. Pelo amor de Deus!
— Cala a boca! — Enfia o cano do revólver na boca da moça. — Tá querendo morrer, tá?
Novas conversações, um vai-e-vem entre os policiais, decisões, indecisões. O comandante grita para o bandido:
— Tá bem, já providenciamos tudo o que você quer. Pode descer do ônibus, prometo que nada vai te acontecer.
Sandro acredita no que ouve. Apesar de já terem se passado quatro horas, o bandido continua esperto, muito atento para tudo o que ocorre dentro e nas imediações do ônibus. Abre lentamente a porta do veículo usando a mesma mão que empunha o revólver, segurando Marisa pelo braço. Marcelo e os outros companheiros se retesam, já faz duas horas que estão ali, naquela tensão insuportável, agachados. A escuridão da noite ajuda no esconderijo. A qualquer momento vai surgir a oportunidade de ação, pensa Marcelo.
Vagarosamente Sandro desce, Marisa sempre à sua frente, o cano do revólver apontado diretamente para a cabeça da moça. Quando acaba de descer os degraus do ônibus, Marcelo salta como um tigre sobre a presa, um bote inesperado e ágil, ao mesmo tempo em que aciona sua metralhadora na direção do seqüestrador. Sua arma está a menos de dois metros do bandido mas Marcelo erra os tiros. Sandro é empurrado pelo impacto do corpo de Marcelo, perde o equilíbrio e vai caindo. Marisa, presa firmemente pelo braço, acompanha Sandro na queda, Marcelo também caindo sobre os dois. Antes de chegar ao chão Sandro dispara sua arma três vezes na cabeça de Marisa.
O caos se instala ao lado do ônibus. Mais policiais ajuntam-se sobre o bandido no intuito de desarmá-lo. Um dos policiais arranca Marisa daquela confusão, leva o corpo inerte para uma ambulância. Sandro é dominado violentamente por quatro soldados, que o manietam e o levam para o camburão, estacionado ali perto.
Mas a tensão não acaba nunca, o terror é infindo. Os soldados estão agitadíssimos. Marcelo entra em pânico, jamais lhe acontecera tamanho fiasco. É um dos melhores, senão o melhor atirador do BOPE, como é que foi errar de tão perto! (E nem pude evitar que a moça fosse eliminada! Estou liquidado, não valho mais nada dentro do batalhão).
Os quatro soldados que meteram Sandro no Camburão vão com ele no veículo, rumo à delegacia de polícia. Estão agitados, irados contra o marginal que era causa de tanto alvoroço e confusão. Não chegam nem a algemar o seqüestrador. Com suas mãos suadas, seus corpos pesados, sufocam o bandido, asfixiando-o .
Ao chegarem na delegacia, o prisioneiro está morto.
Antonio Roque Gobbo = Belo Horizonte, 21 de junho de 2000
Conto # 31 da Série Milistórias –
Publicado em “A Babel da Torre’, vol. 2 da Coleção Milistórias