Evocação do Diabo

O CARRO CAÍDO

O CARRO CAÍDO

Jorge Linhaça

O negro vinha da Aldeia Velha

Velho carreiro cortando o estradão

Nas rodas muito sebo e carvão

A chiadeira cortava o sertão

Puxavam o carro duas parelhas

O João levava no carro um sino

Pra na Capela de Estremoz tocar

O povo aguardava o sino chegar

Já fervilhava de gente o lugar

Doido para ouvir o som do bronzino

Era o carreiro de nome João

Negro vivido na lida indolente

Guiava o carro meio dormente

Lá despertava assim num repente

Pra nas parelhas tocar o ferrão

Ia cantando uma negra toada

Dessas que cortam o peito por dentro

O bois marchavam pela noite adentro

Como que a entender do negro o lamento

Firmaram o passo ao longo da estrada

Era lua cheia no céu pendurada

João dormitava olhando pra ela

Aí começou a sua mazela

Os bois pararam na estrada velha

Nem adiantou dar-lhes mais ferroadas

Diabo! Gritou bem alto o carreiro

Foi quando a coruja mortalha rasgou

E o seu piar no céu ecoou

E como que a voz de Deus o avisou

Pra não evocar o demo matreiro

Mas o João, se ouviu nem ligou,

Nem se lembrava do sino sagrado

Lá na capela a ser esperado

Queria é dar conta do recado

E o maldito outra vez evocou

O demo gritou lá das profundezas

Quem me evoca?- Gelou-se o João!

Numa voz de cortar o coração

Como a despedir-se do seu sertão

Pôs-se a cantar com imensa tristeza.

Mais uma vez caiu na soneira

Quando acordou no que viu não deu fé

Estava a boiada ereta em dois pés

Como se fossem um homem qualquer

Pronunciou pela vez derradeira:

Diabo! -Cá estou!-disse o tinhoso

E o carro pra lagoa arrastou

O negro, os bois e o sino levou

Só mesmo a lenda do carro ficou

E de ouvir-se seu canto choroso

Dizem que o negro ainda carreia

No fundo do lago cantando a toada

Toca o sino; do carro a chiada;

Ouve-se o gemer de sua boiada

Quando na quaresma o dia clareia.

Arandu, 7 de setembro de 2009