A MALDIÇÃO

A Fazenda Paraíso

Era o patriarca. Dentro dos limites de sua vasta fazenda , Adamastor reinava impávido e administrava com mão de ferro. Sendo a autoridade absoluta, nenhum membro de sua família ousava levantar a voz: Evangelina, a mulher, Caimam e Abelardo, seus filhos, todos eram sempre obedientes e servis. O mesmo valia para o administrador da fazenda, e ainda mais para os empregados. Sua autoridade, exercida de modo absoluto, incontestável, não permitia a mais leve dúvida, suas ordens eram obedecidas ao pé da letra.

A família era pequena por enquanto, pois, no tempo destes eventos, quando esta lenda aconteceu , Adamastor e Evangelina estavam ainda naquela fase da vida em que o preceito de crescei e multiplicai estava sendo exercido plenamente.

Seus filhos, Abelardo e Caiman, moram e trabalham na fazenda ajudando Adamastor nas lides diárias e usufruindo de relativa liberdade: as tarefas são divididas de tal forma que a Caiman compete cuidar de parte do gado, ajudado pelo capataz Norato. E Abelardo, o primogênito, trabalha nas plantações, onde colhe boas safras a cada estação do ano.

A mulher Evangelina é uma sonsa. Cuida mal-e-mal da casa, no que é ajudada por duas meninotas , filhas de colonos agregados à fazenda. Crédula, fica sempre escutando as conversas das duas empregadas e se intriga com os assuntos e comentários das mocinhas.

Raramente Evangelina e seus dois filhos vão à cidade. Só saem da fazenda para as grandes festas religiosas e, assim mesmo, pouco ou nenhum contato mantêm com estranhos. Admastor está sempre junto nessas ocasiões e impede qualquer movimento ou atitude que possa estabelecer uma comunicação entre seus familiares e estranhos.

-- Esse pessoal da cidade não merece confiança. São todos uns ciganos, só querem passar a gente pra trás. Além de serem depravados, pecadores, víboras mensageiras de Satanás. Não respeitam ninguém.

Adamastor tinha plena convicção do que falava. Freqüentava a cidade, lá ia todos os meses fazer as compras e levar os produtos de sua fazenda. Porém, nem mesmo nessas ocasiões permitia que os filhos ou a mulher o acompanhassem.

A família obedecia. Para proteger Evangelina, Abelardo e Caiman, o enérgico patriarca fazia de tudo. Mantinha a casa abastecida do que precisavam, desde sal, açúcar e querosene até calçados e tecidos, que Evangelina costurava em peças de roupa para si, para os filhos e o marido.

-- Evange, amanhã me prepara cedo um quebra-jejum que vou à cidade levar um carro de lenha pro Totó Miranda. Prepare uma lista do que você precisa que lhe trago do comércio.

E para Abel:

-- Você fica atento aí, não deixa de olhar nada. Cê mais Caimam vão até as bandas do Corgo Frio e vejam como é que estão as vacas e os cabritos. Vejam se o Norato tá cuidando bem das rezes.

-- Pode deixar, pai. Bem cedinho vou verificar.

A divisão dos trabalhos era bem feita. Abel tratava das plantações: arroz, milho, cana, fumo, feijão e todos os legumes e vegetais necessários para abastecer a grande fazenda e, naturalmente, produzir excedentes para a venda na cidade. As terras de plantio, as roças ficam todas próximas da casa-sede, são os melhores tratos de terras e produzem boas safras. A cada ano, melhorias e consertos nas edificações são feitas graças ao esforço de Abelardo , que moureja de sol a sol para dar conta do seu recado.

-- Este ano o feijão vai render vinte por um. Vai ser uma safra danada de boa! -- Era com orgulho e alegria que dava notícias assim ao Pai.

-- É, tá bom. E o gado, Caimam, como tá indo?

-- Ara, pai, depois daquela peste de aftosa, tá difícil de recuperar. Vai indo. Até as cabras deram de ficar amuadas, mas elas não pegaram a doença, não.

-- Carece de vigiar mais de perto. Cê mais o Norato deviam ficar mais atentos.

Caimam não gostava de seu trabalho, deixava as coisas correrem frouxas, mais por conta de Norato, que era um pé-de-boi no trato com o gado.

-- Presta atenção, Caimam. O pai estava ficando cada dia mais exigente, pensa Caimam enquanto ouve: é o olho do dono que engorda o gado.

Se por um lado o trabalho de Abelardo rendia e rendia, o esforço de Caimam não era muito produtivo. O Pai observava. De noite, conversava com Evangelina:

-- Caimam tá ficando esquisito. Não parece muito dedicado.

-- Deve sê de cansado. Os dois irmãos não param um momento de trabalhar. Aparecem aqui só pra comer e logo saem. Vai vê, Caimam tá meio desanimado com essa doença do gado.

Os dois irmãos tinham temperamentos bem diferentes. A afabilidade e presteza de Abelardo contrapunha-se à evidente sisudez e uma certa tristeza de Caimam. Essa diferença vinha se acentuando à medida que ambos adquiriam mais idade.

Com a doença grassando nos rebanhos e a exigência cada vez maior do Pai, querendo mais e mais atenção para o gado, Caimam resolveu:

-- Vou construir uma casinha, um abrigo lá do outro lado do Corgo Frio. Assim, posso dormir por lá mesmo e ficar mais atento. Norato tá disposto a ir prá lá com sua mulher.

De início, Adamastor não aprovou.

-- Que isso, filho ! Você ficar lá naqueles cafundós, longe da gente ? E não gosto desse arranjo de morar oceis tudo junto.

Caimam era resoluto, quando tomava uma decisão ninguém o demovia. Além do que, dessa forma ficava livre dos interrogatórios de todas as noites. O Pai queria saber tintim-por-tintim a respeito do gado, dos pastos, uma inquirição sem fim.

-- Assim fica melhor. A gente vigia o gado mais de perto. Não perde tempo indo e vindo todo o dia, é longe pra demais.

Se assim pensou, melhor fez. Dentro de pouco tempo, Caimam passou a permanecer no Corgo Frio a semana toda, só vinha em casa nos domingos. Mesmo assim, apenas para dar uns dedos de prosa com a mãe, conversar com o pai sobre o gado.

Caimam quase não falava com Abelardo, parecia que o evitava. Ia nisso uma dose de inveja pelo trabalho bem sucedido do irmão , sempre elogiado pelo pai.

Era uma vida pacata, sem percalços, tudo girando em torno de plantar, criar, colher, aumentar o gado e melhorar as habitações, barracões, cercas.

Não faziam nem recebiam visitas, não conheciam os vizinhos, que todos moravam a grandes distâncias, a fazenda era pra lá de enorme.

Iam raramente à cidade. Aliás, Caimam deixou de ir à cidade, estava ficando cada vez mais apartado da família. Não tinham diversão alguma, vida austera e sem graça, viviam para o trabalho, mas ninguém reclamava.

Adamastor prezava principalmente as partes jamais tocadas de sua propriedade: os bosques, as matas fechadas, povoadas por animais que nunca saíam daquelas ermas paragens. Não permitia o desmate alem do necessário para as áreas de lavoura ou de pastos. Passava horas e horas andando pelos locais virgens, com respeito e humildade, reconhecendo que ali estava o início de tudo; naquelas matas virgens é que estavam as fontes, dali surgiam os regatos e os córregos, as árvores, a vida, enfim.

Para ele a mata virgem era sagrada, sua própria vida confundindo-se com a natureza, com as árvores, com os animais, com a chuva e com o Sol.

E assim ia escoando o tempo , passando: águas claras de suave riacho, deixando aos poucos suas marcas nos corpos , nos espíritos e nas mentes dos simples moradores da Fazenda Paraíso.

Os Ciganos

Numa suave suave dos fins de abril, o sol morno caminhando para seu ocaso, chegaram os ciganos. Vindo pelas bandas do Morro dos Confins, passando por atalhos e caminhos pouco usados, a caravana chega à Fazenda. Em três carroções grandes de quatro rodas e cobertos de lona, vinham as mulheres e crianças, acompanhados por uma vintena de cavalos montados por homens de porte altivo, elegantes no cavalgar, mais uma meia dúzia de mulas de carga, marchando com dificuldade sob pesadas bruacas.

As sombras da tarde já se alongavam e o sol dava um colorido extraordinário, a luz dourada iluminava plenamente a tropa. Lenta coluna subia pela estrada no morro, do outro lado da casa-sede.

-- Mulher, venha ver uma tropa passando lá do outro do morro.

-- Quem são? -Evangelina perguntou. Observou, apesar da distância, o colorido das lonas e das roupas do pessoal da caravana. Jamais tinha visto coisa igual.

-- Ciganos. Tropa de vagabundos. Ladrões de cavalos. Precisamos tomar cuidado com eles. Têm trato com o Demo.

-- Cruz credo, Adamastor !

Adamastor mandou chamar Abelardo.

-- Filho, veja aquela tropa lá, que ciganada. De certo, vão querer acampar nos terrenos da Fazenda.

Caimam estava no Corgo Frio. Um recado foi enviado, que se precavessem ele e Norato contra a ciganada na região. Vigilância dobrada dia e noite.

-- O Senhor vai permitir que eles acampem nas terras da Fazenda, Pai?

Adamastor não respondeu. Esperou que a tropa chegasse mais perto.

A caravana parou num aplainado, propício para um descanso e para acampar. Dos cavaleiros destacaram-se três que, num trote tranqüilo, chegaram até a sede. Sem descer das montarias, cumprimentaram Adamastor, Evangelina e Abelardo:

-- Boas tardes, patrão!

Adamastor vivia isolado do mundo , mas tinha alguma educação. Sabia das coisas do mundo lá fora. Respondeu mostrando cordialidade:

-- Boas tardes. Apeiem-se, vão se achegando.

Os três fortes ciganos, altos, com lenços coloridos amarrados às cabeças, sob chapéus de abas largas, roupas vistosas, desceram de suas montarias. Adamastor observou os cavalos, magníficos árabes como há muito tempo não via. Chegaram até a varanda da casa, subiram os quatro degraus. Chapéus nas mãos, cumprimentaram Adamastor, a mulher e o filho.

-- Boa tarde, Dona. Boa tarde, cumpadre.

Adamastor não gostou de ser tratado com intimidade. Engoliu seco.

-- Tão vindo de onde? -- perguntou Abelardo, pra quebrar o momento de desconfortável silêncio.

-- Vindo de Brejo Fundo e vamo praaGoiás. Queremo permissão prá pernoitar por aqui.

Adamastor mordeu o lábio, alisou o bigode, ganhando tempo para responder. Se não deixo, eles vão acampar mais na frente assim que a noite cair. E podem aprontar confusão. Melhor deixar eles acamparem lá no campinho onde pararam. Ficam sob minhas vistas, posso vigiá-los daqui da varanda.

-- Só para o pernoite?

-- É, sim, cumpadre. Amanhã cedo picamos a mula, continuamos na estrada.

-- Bem, pela noite têm minha permissão.

-- Obrigado cumpadre. Boa tarde prá todos.

Não falaram nem perguntaram nomes. O trato foi rápido e ríspido. Viraram as costas, montaram e voltaram para o local onde algumas mulheres já se preparavam fazendo fogo para acampar.

As ciganas

Noite tranqüila. As luzes dos lampiões do acampamento foram apagadas cedo. Adamastor havia pensado numa vigilância por toda a noite, mas, quando o silêncio e a escuridão desceram completamente sobre o acampamento dos ciganos, adentrou-se pela casa, foi dormir tranqüilo.

Dia seguinte, bem cedo, meia dúzia de ciganas apareceram na sede. Uma delas, a mais alta (e todas eram de porte elevado) dirige-se à casa-sede, é atendida por Evangelina. A cigana fala rapidamente e usando da sedução peculiar das mulheres de sua raça, conversa com a dona da casa. Não demora nem cinco minutos e Evangelina estende a mão para ser lida pela cigana. Acomodam-se em cadeiras no alpendre, enquanto Adamastor e Abelardo continuam tomando café na cozinha.

-- Vejo muita viagem, muita aventura na sua vida. Tem de sair daqui. Esta vida não é pra senhora, não. Tem de ir pra cidade. Foge pra lá que sua vida vai mudar muito....

Enquanto isso, as outras ciganas foram entrando pelos galpões, no galinheiro e no curral onde Zé-da-Nica tirava leite.

-- Ganjão, tem leite? As crianças precisam de leite.

Zé-da-Nica, tomado de surpresa, estava olhando para duas ciganas a seu lado, ainda sentado no tamborete e manejando o úbere da "Mimosa". Enquanto uma terceira passou a mão numa corda com rédea, outra pegou umas ramas de mandioca, e foram saindo sem mais aquela.

-- Peraí, dona, onde é que a senhora vai com a rédea. E essa outra , larga aí a mandioca.

As ciganas começaram a discutir com Zé-da-Nica em altas vozes. Do galinheiro vinha um alarido de galinhas assustadas: uma cigana tirava ovos dos ninhos.

Adamastor ouviu o alarido, passou correndo pela varanda, descendo as escadas num pulo. Assustado com o barulho, quer saber o que estava acontecendo. A confusão aumentou. Chegou em seguida Abelardo, que se atracou com uma das ciganas. Deu-lhe um safanão na tentativa de arrancar-lhe o cabresto. Desconhecendo a própria força, joga a cigana no chão.

A cigana que lia a mão de Evangelina saiu correndo, juntando-se às companheiras, entrando no entrevero com os homens.

-- Parem com essa confusão ! -- A voz de Abelardo se perde entre os gritos das ciganas.

A muito custo, conseguiram que as cinco ciganas se agrupassem ao lado da porteira.

-- Mas, o que é isto? Ficaram doidas ? -- Abelardo tenta um diálogo.

-- Num dianta não, filho. Essa ciganada é assim mesmo. - explica Adamastor - Ladrões, só ladrões. -- Grita para as mulheres:

-- Saiam daqui, saiam da fazenda, sumam da minha vista, suas ladronas imundas, jararacas !

Assim escorraçadas, as ciganas lentamente vão, em bloco, na direção da porteira. Quando passam por ela, uma das ciganas, a que lia a mão de Evangelina, grita para os homens e para Evangelina, hirta na varanda.

-- Malditos! Malditos! Malditos todos vocês! Maldita fazenda! A desgraça vai cair sobre vocês. As sete desgraças de Zarapelho fiquem com vocês e nesta fazenda. --- E reforça sua maldição com as duas mãos levantadas, na direção do grupo de pacatos fazendeiros.

Virando as costas, correram com agilidade, as saias suspendidas até as coxas.

-- Eu sabia que ia dar confusão. Essa raça num nega !

Naquela mesma manhã, a coluna se pôs em marcha. Nunca mais o pessoal da Fazenda Paraíso viu ou teve notícias daquela caravana de ciganos.

A Desgraça

A maldição da cigana foi feita com toda a força de sua malignidade. Atingiu em cheio os espíritos simples daquela gente. E os efeitos não tardaram a se manifestar.

-- Pai, o gado tá todo empesteado. Tá tudo doente. Num tem uma cabeça sã. E já morreram oito novilhas das melhores, da cabeceira do gado. -- A notícia, trazida por Caiman, iniciou a série de infortúnios. Desatou, como se um laço tivesse sido desfeito e aberto um baú de desgraças.

-- Vou comprar remédios na cidade, cês ficam aqui firmes. Amanhã, enquanto vou pra cidade, cês dois vão pros pastos, ajuntem todo o gado, que vamos aplicar o remédio assim que eu voltar.

Embora fosse tarefa pra meia dúzia de homens, o arrebanho do gado ficou a cargo de Abelardo, Caimam e Norato. Caimam não gostou de ver o irmão ali, a seu lado, ainda que fosse para ajudá-lo.

-- Ei, Abelardo, tá gostando de amassar a bunda no lombo do Alazão? Garanto que hoje a noite vai ter de dormir de bruços... -- Dia inteiro Caimam fazendo chacota do irmão.

Abelardo realmente cansou-se e nem esperou a volta do pai para abandonar a lida de arrebanhar o gado. O sol ainda estava alto quando ele chegou a casa.

-- Uai, gente! Voltou cedo. Acabou a tarefa? Seu pai ainda num chegou, não.

Evangelina foi dizendo tudo de supetão. Abelardo nem respondeu, foi logo deitar, não agüentava mais de tão cansado.

Quando Adamastor chegou da cidade, já era noite entrada, não dava mais para ir até o Corgo Frio tratar do gado. Ficou para o dia seguinte a ida aos pastos do Corgo Frio.

Cedo, ainda escuro, lá foram os dois levar remédios e ajuda para Caimam e Norato. De longe, viram a coluna de fumaça que se levantava por trás do morro, na direção dos currais do Corgo Frio.

-- Que coisa estranha! Será que pegou fogo no pasto? -- Abelardo, atônito, pergunta a esmo.

-- Nessa época do ano, impossível ! Tem chovido muito.

Apuraram as montarias. Quando chegam ao alto da colina, deparam com uma cena dantesca: lá embaixo, uma enorme fogueira levantava altas labaredas para o céu. Caiman, pulando de um lado prá outro, com um galho em chamas, espalhava o fogo por sobre um monte de carcaças de animais mortos.

-- Mas o que que é isso? -- Intrigado Adamastor acicata seu cavalo, chegando rapidamente até Caimam. Apeia-se num átimo e agarra Caimam pelo braço.

-- Pára, Caim, pára com isso. O que tá acontecendo aqui ?

-- É o gado morto, pai. Num dá prá enterrar, tô queimando tudo, assim a peste num alastra ainda mais.

Os olhos brilhantes nas órbitas fundas, a pele e as roupas enegrecidas pela fumaça contra o fundo de enormes chamas dão um aspecto terrível à cena. Caimam está à beira da loucura, parece um duende, pulando com seu archote, espalhando o fogo por todo o monte de vacas mortas.

O cheiro acre e ao mesmo tempo adocicado, enjoativo entra pelas narinas de Adamastor. Abelardo chega em seguida, sente ânsias , põe-se a vomitar ali mesmo, na frente do pai e do irmão.

-- Endoidou, meu filho ? — Segura Caimam pelo braço com o archote, tentativa vã de deter o filho. Caimam arranca-se, continua na dança macabra de incendiário. Parece estar rindo, gozando o espetáculo.

Adamastor grita por Norato inutilmente. Abelardo, apesar de nauseado, segura o irmão, procurando detê-lo. Entram em luta corporal, o galho em chamas, pesado cacete continua na mão de Caimam. Ao rolarem pelo chão, as chamas se espalham tambem pela macega seca, sobe pelas roupas de Caimam. Urrando de dor, num lance de defesa e ataque, bate violentamente com o tição na cabeça de Abelardo, que se estatela no chão.

Adamastor tenta separá-los, corre ao redor, evitando as chamas. O calor é insuportável. A imensa fogueira aumenta cada vez mais. Ao ver Abelardo no chão, agacha-se e toma nas mãos a cabeça ensangüentada e meio queimada do primogênito. Caimam consegue tirar a camisa, está por perto, parece um louco: cabelos desgrenhados, o rosto negro de carvão, de fumaça, de terror.

Adamastor abraça o filho, traz sua cabeça de encontro ao próprio peito. Sente a vida se esvair do corpo de Abelardo e nada pode fazer. Seu desespero é inominável, indescritível, impossível de ser sequer imaginado. Num assomo de dor e de cólera, levanta os olhos para Caimam:

-- Seu desgraçado, cê matou seu irmão. Olha o que cê fez, seu filho duma égua. Maldito! Suma das minhas vistas. Desapareça da minha frente, antes que eu faça uma besteira maior. Maldito! Maldito ! -- Grita , tentando exorcizar todos os demônios que estão por ali, naquele verdadeiro inferno.

Caimam corre sem direção, foge da ira do pai, do castigo que o espera. Atravessa num carreirão os pastos, parece não saber o que está fazendo. Corta com os pés descalços as águas frias do córrego, sobe pela margem íngreme, correndo sempre, a resistência multiplicada pelo pavor e pelo terror, sabe que seu crime é sem perdão, está à beira da loucura, tenho que fugir daqui, deste lugar, aqui num volto nunca mais.

Atinge o alto de uma elevação, sempre correndo, a loucura lhe dá mais força e mais ímpeto. Ao descer pelo outro lado do morro, escapa da vista do pai. Desaparece acompanhado por sua dor, seu medo e a maldição, estigmas que vão estar com ele por toda sua longa vida, até o último de seus dias de miséria, angústia e castigo.

Ao pé da imensa fogueira permanece Adamastor, ajoelhado no chão, acariciando a face e a cabeça de seu amado filho, o corpo sem vida, inerte, o sangue já secando na sua face e nos seus cabelos.

Desespero sem fim

A maldição cigana continuou depois -- ou como conseqüência -- da morte de Abelardo e do sumiço de Caimam. Evangelina, a princípio chocada e pasma com tanta desgraça, deu em falar de mudar para a cidade.

= Vamo, Adamastor, isto aqui é amaldiçoado, a cigana jogou praga em tudo, não adianta fazê mais nada. Temos que mudar, vamo imbora .

Adamastor a princípio resiste, mas ele mesmo se sente desanimado. Sem a ajuda de seus dois filhos, a administração da fazenda pesa-lhe, não tem como continuar as plantações, nem como lidar com o gado. Falta-lhe pessoal, falta-lhe vontade, falta-lhe tudo.

Nem seis meses se passaram após a trágica perda de seus dois filhos, Adamastor toma a decisão. Ou melhor, deixa-se levar pela vontade de Evangelina. Vão para a cidade. Alugam uma pequena casa nos arredores, Adamastor e Evangelina são simples demais, não querem saber de conhecidos, vizinhos, nada.

A fazenda fica por conta de Norato que tenta, mas não consegue administrá-la . No fim do ano, aparece na casinha de Adamastor para avisar-lhe que está deixando a fazenda: consegui emprego melhor com o Coronel Salustiano, já estou com a mudança numa carroça, minha mulher e os dois guris estão aqui comigo, viemos despedir.

-- Mais cumo é que vou tocar a fazenda sem você, Norato? Fica mais uns tempo, até arrumar outro capataz.

-- Tem jeito não, seu Adamastor, aquilo tá uma desgraceira só, num tem gado que agüente, e as plantação não viçam mais, de jeito nenhum.

-- Cê devia vendê a fazenda. -- Entra Evangelina na conversa.

-- Vendê pra quem, Evange? O pessoal num qué nem trabalhar lá mais, sabe que lá tem praga rogada.

A decadência da Fazenda Paraíso, sem a presença de Adamastor -- que lá nunca mais botou os pés -- e a falta de um capataz, foi só questão de tempo. Dois ou três agregados que restaram jamais vieram à cidade prestar contas a Adamastor.

Sem os recursos de sua propriedade, Adamastor e Evangelina tiveram de abandonar a casa alugada. Foram morar num casebre sem dono, na beira da estrada. Sem posses, caíram na miséria. Passaram a pedir ajuda dos moradores da pequena cidade. Esmolaram e esmolambaram-se. Degradaram-se totalmente.

A última notícia que se tem do casal foi a de sua saída, numa madrugadinha, a tralha de ambos amarrada numa pequena trouxa, os dois caminhando em passos desanimados e trôpegos, pela estrada poeirenta.

Ninguém mais os viu nem deles teve notícias.

A lenda continua. O povo modifica e aumenta, mas não inventa. Ao ser contada e recontada, a memória popular simplifica naturalmente os nomes dos seus protagonistas. Na cidade todo mundo conhece e sabe contar, com detalhes, a dramática história de Adão e Eva, Caim e Abel.

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ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO =Belo Horizonte - 9 de maio de 2000

Conto # 21 da série Milistórias.

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 01/03/2014
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