O Arranca-Línguas
O ARRANCA-LÍNGUAS
Jorge Linhaça
“ Fizemo a úrtima viaje.....foi lá pro sertão de Goiás...”
A música tocava no rádio do furgão, como um prenúncio do destino de seus ocupantes.
A equipe de repórteres de uma conhecida revista aventurava-se pelo sertão goiano em busca de novidades, de histórias que chamassem a atenção dos seus leitores.
A revista tinha a fama de misturar o real com o sobrenatural, dando toques pitorescos e irônicos às suas matérias.
Desta feita ocupavam-se de investigar estranhos fatos que ocorriam na região. Pessoas desaparecidas, animais mortos pelas pastagens e os boatos de uma criatura assombrosa que instilava o medo na população.
Alguns o chamavam de “arranca-línguas” e outros de come-línguas. Sua descrição variava de uma monstruosa criatura de até dez metros de altura, até a aparição de um menino que parecia divertir-se cortando a língua dos animais.
Quanto a esta última versão, contam os mais antigos que, há muitos anos atrás, havia um menino que só fazia mentir, não havia mentira que não contasse para levar vantagem, seu futuro seria promissor na área política hoje em dia, com toda a certeza. Ocorre que sua mãe não era muito fã da mentira e muito menos dos políticos e coronéis, portanto, por mais que seu coração sangrasse, não viu nenhuma outra alternativa senão a de amaldiçoar o seu rebento para que se continuasse a contar suas mentiras um grande castigo caísse sobre ele.
Segundo contam o menino não deixou de mentir e pouco tempo depois, seu corpo foi encontrado sem vida e com a língua arrancada de sua boca.
A esquipe de reportagem, conforme ia tomando ciência dessas causos contados pelo povo simples da região, mal podia conter o riso, que corria frouxo tão logo se afastavam do local.
- Coisa de gente ignorante que não tem cultura, que não conhece ciências e se apega no sobrenatural para explicar as coisas.
- Aposto que o tal menino foi castigado por alguém a quem ferira a honra com suas mentiras e o tal lhe cortou a língua...
E por aí iam as conversas da equipe, a bordo de seu furgão, até que encontrassem seu próximo personagem.
Mais adiante, a lenda já transmutada no monstro de 10 metros, falava de um antigo ladrão de gado, que não se importava de fazer crueldades, que havia sido castigado pelo senhor do inferno a vagar pela terra e só alimentar-se de línguas de animais ou de gente.
Tudo ia sendo registrado em vídeo pela equipe, e anotado nos seus tablets.
Pararam em um pequeno vilarejo para refrescar a goela, alguns com água e outros com cerveja, e comer alguma coisa, afinal, saco vazio não para em pé e a viagem, apesar de tranquila até ali, não deixava de ser desgastante, não apenas pela monotonia da paisagem, mas também pelo calor que não dava tréguas.
Entretiveram-se jogando conversa fora e procurando descansar os ossos, até que foram surpreendidos pelo entardecer.
Como não havia pousada naquele vilarejo, não lhes restou alternativa senão a de pegarem a estrada, rumo à cidade mais próxima, que distava cerca de 150 km dali.
Ainda foram alertados pelo dono do lugar que esta era a época do arranca línguas e que deveriam percorrer o mais rápido possível a distância que os separava da cidade, sem parar pelo meio do caminho.
Agradeceram o conselho com risos irônicos, já não tão contidos por conta das quantas cervejas ingeridas e partiram para seu destino.
O escuro da noite surpreendeu-os no meio do caminho, faróis acesos, tentando debelar a escuridão à sua frente, o furgão seguia a sua jornada, até que algo, parecendo um menino, cruzou a estrada à sua frente, fazendo-os frear bruscamente.
Seus corpos foram projetados à frente e para trás naquele conhecido efeito chicote dos acidentes de carro, causado pela brusca desaceleração do carro em movimento. Atordoados e em pânico, levaram alguns segundos para reagir ao ocorrido.
O motorista e o carona, que haviam se chocado contra o volante e o painel, ainda meio zonzos e doloridos, olharam pelo para-brisas tentando ver o tal vulto. Nada vendo resolveram descer do veículo e, apesar de olharem diante e sob o carro nada encontraram.
Aliviados até certo ponto, voltaram ao veículo, onde os demais aguardavam apreensivos.
Colocaram novamente o carro em movimento, julgando ter sido um veado ou coisa parecida que cruzara o seu caminho e que havia escapado ileso.
Mal andaram mais um quilómetro, e desta vez um vulto abalroou o veiculo, atingindo-o pela lateral e fazendo com que deslizasse pelo asfalto afora.
Os gritos de pânico e dor se misturavam dentro da van que agora era erguida do chão por uma força sobre humana.
Um ser gigantesco, peludo, com grandes presas, olhava pelo vão que restara no lugar do para-brisas, para as suas pobres vítimas indefesas.
Congelados pelo terror, nenhuma reação conseguiam esboçar, nem mesmo os gritos saiam de suas gargantas, com exceção dos gritos histéricos da repórter que ocupava o banco traseiro, tomada por uma loucura sem fim, olhos esbugalhados como dois ovos, e o olhar perdido em algum lugar de um espaço e tempo indeterminados.
A descomunal criatura pousou no chão o veículo e arrancou suas portas, fazendo com que todos, com exceção da agora louca repórter.
Não havia para onde correr, não havia onde se esconder. Restava-lhes, apenas, obedecer aos comandos da pavorosa monstruosidade à sua frente.
Por detrás deles surgiu outro vulto, agora o de um menino magro, sujo e assustador, o mesmo que havia cruzado a frente do seu carro quilómetros atrás.
O menino abriu sua boca e revelou que não tinha língua, os olhares de todos se tornaram sombrios, cheios de um medo que lhes fazia prever seu destino.
Ato contínuo o tal menino, após fita-los por algum tempo, escolheu sua vítima e num só golpe lhe decepou a língua que inseriu em sua própria boca privada do tal membro, fundindo-a o toco que restar de sua própria língua.
Contidos pela outra criatura, a gigantesca, nenhum dos pobres coitados pode fugir enquanto se companheiro afogava-se no próprio sangue.
O tal menino pôs-se a falar:
Vocês foram avisados para não entrarem em nossos domínios esta noite, pois este é o período em que a janela das trevas se abre e nos permite cumprir nossa sina.
Vocês ouviram as histórias e não lhes deram ouvidos, desacreditaram do povo simples aqui da região que nos respeita ou nos teme, evitando cruzar nosso caminho.
Mas na sua prepotência, julgaram-se livres de qualquer “tola lenda” local, e essa se tornou a causa da vossa perdição. Sua amiga já não nos serve de nada, aliás, somente seu corpo há de perambular pelo mundo, mas sua alma já adentrou as janelas do inferno.
Quanto a vocês dois:
Apenas um sairá daqui com vida, como testemunha de tudo que lhes aconteceu e deste encontro conosco. O outro nos fará companhia em nosso castigo eterno de vagar pela terra para expiar os nossos malfeitos, pois a mentira se espalha pela terra como a erva daninha se espalha pelo pasto.
Meu companheiro olhará no fundo de seus olhos e enxergará suas almas, e aquele em que houver maior mentira e falsidade perderá sua língua e nos acompanhará pelo caminho das trevas.
A esta altura, apenas o motorista e um dos repórteres restaram do grupo, o grotesco gigante examinou a cada um deles e não foi difícil tomar sua decisão, imediatamente arrancou a língua do repórter com suas garras, deixando-o ali moribundo, tentando estancar o próprio sangue.
Finalmente a voz da enorme criatura pôde ser ouvida:
-Está feito! Lembra-te de não mudares nenhuma linha do que aqui aconteceu ou um dia cruzaremos de novo o teu caminho.
E sumiram os dois seres na escuridão da estrada, envoltos em uma estranha neblina.
O sobrevivente tentou botar a van em funcionamento por várias vezes, sem sucesso, até que depois de mexer aqui e acolá, em meio aos gritos da mulher alucinada, conseguiu pô-la em movimento, aos trancos e barrancos o veículo seguiu pela estrada , percorrendo lentamente a distancia que ainda os separava da cidade. Já ia o dia clareando quando chegaram a um posto de gasolina, onde o motorista, já sem forças de continuar, parou o veículo e foi socorrido pelos funcionários e fregueses antes de desfalecer por completo.
Na estrada os corpos dos outros dois integrantes da equipe, eram disputados pelas aves e animais carniceiros, até que a polícia finalmente chegou.