AS VELAS MALDITAS

AS VELAS MALDITAS

Jorge Linhaça

Contam os antigos habitantes de Fundão que há muitos anos atrás, havia na cidade uma fábrica de velas, de propriedade de João veleiro. Não era uma fábrica que tivesse uma grande produção, mas suas velas tinham uma durabilidade diferente das demais o que fazia com que muitas pessoas vinham de longe, de outras cidades para comprar a sua produção.

João veleiro não revelava a ninguém o seu segredo, por mais que o tenham tentado com grandes somas para que compartilhasse o mistério.

O fato é que por muitos anos João fabricava suas velas, a produção não era constante, às vezes aumentava e por vezes mal dava conta de suprir a sua clientela local.

Mas o assédio e a necessidade de lucro já não podiam ser compensados pela elevação dos preços pois já haviam chegado ao limite do tolerável pelos seus clientes. Restava a João partir em busca de mais matéria prima para o seu produto.

Já tentara novas fórmulas, mas nenhuma delas se mostrava eficiente para manter a qualidade de seu produto.

E foi assim que João começou a viajar, ausentando-se por vários dias, retornando com tambores lacrados dos quais não permitia que ninguém se aproximasse. Em breve sua produção voltou ao normal, mais algum tempo e havia aumentado em uns 40% estabilizando-se nesse patamar.

Todos os meses João veleiro fazia suas viagens e voltava com os misteriosos tambores.

E assim passaram-se os anos, com João envelhecendo, e sem procurar por alguém que pudesse o sucede no negócio de velas. Todos que se ofereciam eram rechaçados por ele com aspereza ímpar.

Uma noite, João estava em sua fábrica, preparando as encomendas para o dia seguinte, como sempre fazia. As velas se amontoavam nos cantos à espera de serem embaladas.

Mas esta noite não seria uma noite normal, uma intensa tempestade se formara sobre Fundão e os ventos jamais sopraram com tamanha intensidade, uivando por entre os fios elétricos e os galhos das árvores emitindo ruídos fantasmagóricos.

João continuou o seu labor, até que a luz se apagou, numa queda de energia comum em épocas de raios e trovões. Mas João não permaneceu muito tempo no escuro.

Como que do nada várias velas se acenderam simultaneamente, iluminando tetricamente, com suas chamas bruxuleantes o velho galpão da fábrica. João deu um salto para trás, tentando encontrar uma explicação para aquilo, mas no fundo de sua alma já sabia a resposta.

Pela primeira vez a culpa o consumia e o medo invadia sua alma.

Em cada chama de vela viu formar-se a imagem de um rosto humano, desfigurado pelo fogo, em cada chama de vela João vislumbrava uma fração de seu destino.

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João viu desfilar á sua frente a sua história, de menino pobre a empresário de velas, o começo em que suas velas não era nada especiais até que lera em algum lugar que antigamente as velas eram feitas de gordura de animais. Tentou incorporar essa gordura á parafina para produzir velas diferentes, mas o resultado não havia sido tão bom. Havia sentido uma melhora na durabilidade mas nada que torna-se seu produto único.

Foi quando uma ideia terrível lhe veio à mente, fazendo-o sentir calafrios de pavor e ao mesmo tempo de excitação.

-E se invés de gordura animal ele utilizasse gordura humana?

Tentou apagar esse pensamento de sua mente, mas a ideia o perseguia em seus sonhos, até mesmo a maneira de incorporar o macabro ingrediente ao seu produto surgira clara num desses sonhos.

Não sabendo mais como escapar ao seu destino, João ocupou-se de encontrar os meios para colocar em prática a sua nova fórmula.

O cemitério parecia ser o melhor caminho para encontrar a matéria prima. E foi assim que João começou a sua vida dupla, entre fabricante de velas e violador de sepulturas.

Era uma alegria imensa quando alguém mais corpulento falecia, João aguardava o funeral, acompanhava o enterro e ainda fornecia às famílias alguns maços de velas como cortesia e uma forma de dar um último adeus ao morto.

Aguardava dois ou três dias, não mais, para ir em busca do que necessitava.

Abria a cova, expunha o defunto e retirava a barriga da pessoa, como quem remove o toicinho de um porco. Refazia a sepultura e lá se ia para a fábrica de velas durante a alta noite.

Depois era ocupar-se do mister de separar a gordura dos demais restos mortais.

A produção de velas variava justamente de acordo com o número de óbitos que a cidade produzisse.

Quando as coisas começaram a ficar mais perigosas, pois, com o passar dos anos a cidade cresceu em direção ao cemitério que já não era mais um lugar totalmente ermo, João se viu obrigado a buscar em outras paragens a matéria prima de seu macabro produto.

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Os lamentos vindos dos rostos que surgiam nas chamas das velas foram aumentando de volume, como que finalmente libertos para executar sua vingança, dezenas de almas desprenderam-se das velas malditas e revoaram ao redor de João, qual um ciclone que procura engolir o que lhe caia no centrof

João se viu erguido do chão, sustentado pelos braços informes das almas , a parafina fervia no enorme tacho e João já pressentia a morte preparando-se para abraça-lo...

A parafina foi despejada goela abaixo de João, juntamente com um enorme pavio, lhe queimando as entranhas com o calor do próprio inferno ...mas a morte sustentou sua mão, a vingança ainda não estava cumprida. O corpo de João foi coberto com a maldita mistura que ele tantas vezes havia preparado... Mantiveram-no na mesma posição macabra até que a mistura secasse e a morte enfim, o tomasse para si.

No dia seguinte ao chegarem os primeiros fregueses, encontrando a porta do galpão apenas encostada, depararam-se com a macabra figura de João , cabeça erguida com os olhos voltados para o telhado, numa atitude de pavor infernal, com o pavio aceso a faze-lo arder como uma vela diabólica...

Sobre a mesa a receita de como incorporar gordura humana às parafinas junto a um diário onde registrava as quantidades obtidas, trouxe finalmente à luz o segredo maldito de João veleiro.