Bemvindo e o banquete na floresta (parte 2)
_A bela índia acariciou-me com sua pele morena, e após muito zelo e insistência libidinosa, meu pavor foi mitigado, e nós fizemos sexo; um sexo estranho, repleto de medo, desejo, suor frio.
Pouco depois de Bemvindo ter transado com a índia, uma grande corda foi amarrada em seu pescoço, e sendo liberto, fitou ao redor, a fim de encontrar uma senda oculta por entre as ocas, riachos e pedaços de floresta, e esgueirar-se pra dentro da escuridão. Ele sabia que havia chance de fuga, pois por alguma razão inexplicável, os índios estavam praticando rituais antropofágicos há muito abolido pelos portugueses, e Bemvindo sabia bem o quão importante era aquele momento, não apenas para os membros da aldeia, mas também para o inimigo, que considerava o ventre dos seus captores como a melhor sepultura: fugir era um opróbrio impensável, mas não para um homem branco a beira da morte.
O farmacêutico estava taciturno, abatido e desesperado, assentado sobre uma rocha e vendo três robustos índios preparando um enorme porrete. A visão era tão assustadora quanto toda aquela selvageria solene. Bemvindo ainda estava absolutamente desconcertado, pois se sabia que os rituais canibais eram a manifestação da vingança, nos quais se comia o inimigo por ele ter comido os membros da outra tribo; mas tal desavença não existia há muito, nada mais restava sobre tal cerimônia hedionda, apenas os relatos de tempos de outrora. Todavia, Bemvindo não tinha tempo para saber o porquê das coisas: preocupava-se apenas em fugir, em manter-se vivo, em achar uma forma para se safar daquele povo,que logo iria devorá-lo.
O apavorado cativo, já banhado e depilado naquela manhã, finalmente encontrou o ensejo de que tanto precisava para fugir: viu um cipó tremulando na correnteza de um pequeno rio, e se ele tivesse sorte, poderia pular e agarrá-lo antes que a correnteza o sugasse para as profundezas daquela água marrom e lamacenta, e subir pelo barranco escorregadio, que fora recentemente fustigado pela chuva que viera de forma inesperada. Bemvindo fitou ao redor, e graças ao senhor bom Jesus, pensou ele , sua fuga era iminente, pois toda a tribo estava num humor exaltado, como que estivessem ébrios. Sem hesitar,Bemvindo, ainda com uma grande corda amarrada no pescoço, correu e saltou rio adentro, um pouco mais acima de onde estava o cipó, de modo que houvesse tempo para agarrá-lo antes de ser levado pela correnteza agitada do rio.
_ A água entrava pela minha boca, narinas e ouvidos; meu olhos sujos de barro doíam e nada pude enxergar._ prosseguiu Bemvindo com sua narração através de Jasimbalg.
Os pequenos segundos de agonia com certeza marcaram toda a eternidade, e os gemidos afogados do farmacêutico ainda aterrorizam os índios, dizem os moradores locais ao se lembrarem da tragédia. Tendo fugido, Bemvindo pôs-se a correr o mais rápido que pode, dando solavancos em inúmeras árvores espinhentas, que logo o deixaram como um porco espinho; afinal, ele não podia abrir os olhos: estavam repletos de terra.
O alívio de ter deixado as terras indígenas e conseguido chegar até a margem foi esmagado como um pernilongo que se demora demais na testa de alguém, que exausto, tenta desesperadamente dormir. Porém, não foi uma mão pesada que derruiu as fugitivas esperanças do farmacêutico, mas um coro selvagem, fragoroso e desvairado: Bemvindo não conseguiu fugir, de fato; mas foi deixado fazê-lo: tudo era parte da ritualística horrenda da qual fazia parte, e agora, com os olhos ardentes e espinhos por todo o corpo, ele notava o aproximar célere de uma corja de animais famintos ir ao seu encontro.
Dona Joaquina e seu Inácio não demonstravam mais tristeza: imagine como é ouvir toda essa tragédia da boca do próprio filho, ou melhor, diretamente de sua alma ,através da boca de outrem. Não lhes restou nada, a não ser uma letargia pálida e extenuante em suas faces pregadas de vazies. A verdade lhes foi por demais dolorosa e era preferível continuarem alheios dos fatos e sendo torturados pela dúvida a saber com minúcia daquela calamidade.
Os índios avançaram impetuosa e veementemente floresta adentro, loucos, em transe, para recapturar o jantar que saíra correndo. Pegaram Bemvindo com brusquidão e arrastaram-no de volta a margem do rio. Dois índios corpulentos agarraram seus braços e deram alguns passos para trás, como que para pegarem impulso, e atiraram Bemvindo direto na outra margem. Uma pancada de tal magnitude certamente poderia causar algumas sequelas, mas o desespero do farmacêutico abrandou a dor de seus ossos quebrados. O que é um osso, ou até mesmo um membro, quando se luta desesperadamente pela vida , sustentada por um fio?!
_ Fui colocado novamente sobre a pedra onde me rasparam as sobrancelhas, para que outras índias se aproximassem e fizessem algo de diferente comigo: fui untado com mel e revestido com plumas e cascas de ovos, mas não antes que me pintassem de preto com alguma substância desconhecida. O céu nimboso passou do cinza funesto, que havia tragado todo o esplendor do dia, para azul escuro e sorumbático: era o entardecer, momento mais ebrifestivo até então; momento no qual todos os índios embriagavam-se de cauim_ um “vinho” azedo, o qual era feito de mandioca mastigada e cuspida num recipiente e deixado a fermentar.
Já fazia mais de quarenta e oito horas desde o desaparecimento de Bemvindo na floresta negra, quarenta e oito horas de agonia e angústia, que pareciam mais longos do que a vida inteira do farmacêutico, que tinha na época 33 anos. É incrível a sensação de infinitude provocada pelos maus momentos.
A noite de assobios, danças, e vultos transitando na aldeia de um lado para o outro atingiu seu píncaro sentimental no despontar dum dilúculo irradiante, que mal parecia ter provindo de uma noite tão tempestuosa e sorumbática como a noite anterior.
Mais adiante, próximo à oca em que Bemvindo avistara os índios prepararem um porrete, saiu um homem com feições destemidas e nefárias, profusamente ornado com plumas e corpo tingido com uma vasta miríade de ervas. Segurava na mão o Ibirapema, o tacape executor. A visão esplendorosa e fúnebre fez com que Bemvindo sentisse uma vontade inexorável de correr, mas ele estava amarrado à Mussurana, pela cintura_ uma corda grossa feita de algodão.
O aproximar faustoso e teatral do grande índio portando o tacape executor foi sublimado com assobios e gestos extravagantes dos que dançavam ao redor do cativo apavorado.
O egrégio índio, copiosamente adornado, com notável caminhar de um guerreiro altaneiro, parou atrás de sua cabeça, proferiu algumas palavras incompreensíveis e arqueou o corpo para trás, braços musculosos segurando com verve o Ibirapema: era o golpe sepulcral, cujo túmulo seria o próprio ventre dos que festejavam vigorosamente diante daquele jantar, fresco e suculento.