O Correio das Trevas
O Correio das Trevas
Jorge Linhaça
Aquelas cartas chegavam em meio à correspondência diária e comum do dia a dia, nem mesmo a aparência dos envelopes era diferente do comum.
Começaram a aparecer aqui e acolá, dentro das caixas de correspondência ou enfiadas por baixo das portas, como remetente apenas as iniciais AMPSP.
Tão logo eram abertas espalhava-se pelo ar um aroma de flores, adocicado, mas, ao mesmo tempo com um toque de putrefação.
A personalidade dos destinatários era paulatinamente afetada pelo estranho perfume.
O texto dizia apenas:
Estou te aguardando, junto com outros convidados para a uma festa que jamais esquecerão.
Compareça na sexta-feira, 13 de junho de 2014, às 7 horas da noite, no Solar Negro, na estrada das acácias 666.
Traje livre.
A pergunta que todos faziam era: Que festa será essa? Não conheço ninguém que more naquele solar, afinal o mesmo está fechado há anos.
As pessoas que abriam as correspondências foram tornando-se mais taciturnas, menos sociáveis, iravam-se facilmente e sua agressividade apenas ia aumentando ao correr dos dias.
Enquanto isso o Solar Negro, desde há muito tempo desabitado, começou a receber a movimentação de operários que se ocupavam de fazer pequenos reparos no mesmo, recebeu uma nova pintura exterior, da cor negra, para reforçar ainda mais o seu nome. Seu porão foi esvaziado de todas as quinquilharias que lá havia há décadas.
Imagens góticas ao estilo de górgonas, foram afixadas em cada canto do seu telhado, dando ao solar um ar ainda mais assustador.
Ao mesmo tempo em que isso destilava temor em alguns, por algum motivo exercia um indecifrável fascínio sobre os convidados para a tal festa.
A situação começou a tornar-se incontrolável, as pessoas se agrediam por pouca coisa, a irritabilidade inicial transformava-se em delitos, em vandalismo, em crimes sem solução.
Uma mudança de grande porte chegou ao tal solar em uma noite em que a lua cheia brilhava no céu, os poucos vizinhos observaram, curiosos, as imensas caixas que eram carregadas diretamente pela entrada do porão, situada ao lado esquerdo do antigo solar.
Durante o dia o solar parecia tão abandonado quanto sempre fora nas décadas passadas, à noite por detrás das cortinas podiam-se ver vultos circulando pelo casarão.
Dia 11 de junho começaram a chegar outros caminhões, no fim do entardecer, início da noite, descarregaram caixas de bebidas, mantimentos e itens de decoração para uma grande festa.
Aproximava-se o grande dia.
O movimento no solar foi intenso naquela noite e na noite seguinte, o ir e vir de pessoas entrando e saindo do casarão bem como o dos vultos que percorriam seu interior aumentou intensamente, até a hora da aguardada festa.
Na estrada, dois porteiros. mal encarados, solicitavam os convites escritos em tinta vermelha e a comprovação da identidade dos convivas.
Lá dentro, a decoração, apesar de um tanto quanto estranha, era cheia de detalhes e a iluminação fazia um jogo de luz e sombras que parecia moldar-se adequadamente ao ritmo do rock pesado que invadia o ambiente.
A bebida era servida sem restrições, bem como os petiscos pitorescos da festa.
O som parecia crescer com o passar das horas, levando os convidados a um frenesi que só fazia aumentar, liberando os mais secretos instintos de cada um.
A lascívia podia ser vista em cada rosto e em cada corpo que se esfregava nos outros, nada parecia ter limites. Donas de casa, maridos fiéis, adolescentes, e até mesmo idosos se entregavam à luxúria das mais variadas formas. Não havia sequer a preocupação de encontrar um lugar mais reservado, tudo era feito ignorando os demais e não se passou muito tempo até que uma verdadeira orgia se instalasse no salão principal do solar e nos seus anexos.
O enorme relógio de pendulo marcava as horas e faltavam poucos minutos para a meia noite.
Quando finalmente soaram as doze badaladas, as portas fecharam-se hermeticamente, assim como as janelas, tornando o solar uma verdadeira armadilha sem escapatória. Da escada que dava acesso ao porão surgiram homens e mulheres de aparência sedutora e a música cessou por um instante.
Como que movidos por uma força incontrolável, os convidados voltaram seus olhos para o mesmo ponto, onde agora se reuniam seus anfitriões até então ocultos.
A mulher mais sedutora, trajada de modo a deixar seu corpo escultural ser percebido em toda sua magnitude tomou a palavra:
- Hoje é a noite em que cada um de vocês mostrou sua verdadeira face diante de mim, e hoje é a noite em que cada um pagará o preço de sua insanidade.
E eu vim cobrar a conta!
Ao dizer isso seus acompanhantes assumiram a forma de vampiros criando pânico incontrolável entre os visitantes. Caíram sobre estes com suas presas afiadas dilacerando suas veias e sugando seu sangue, decepando os membros dos que tentavam fugir.
As portas do inferno estavam abertas e os tais porteiros, agora metamorfoseados em lobisomens, devoravam os restos do banquete vampírico, dilacerando carnes e estilhaçando ossos com a força brutal de suas mandíbulas.
O som da música, agora mais alta do que antes, encobria os gritos de horror e de dor dos pobres diabos que haviam se entregue ao festim desconhecido.
O banquete macabro prolongou-se por horas, até que nada restasse dos convidados, senão restos disformes espalhados pelo chão e o sangue respingado por todos os cantos, móveis e paredes.
Antes do alvorecer um revoar grotesco de asas enormes se fez ouvir sobre os telhados dos vizinhos insones pelo barulho da festa, agora cessado.
Alguns que se atreveram a olhar pela janela, juram ter visto dois enormes lobos saltarem das janelas do solar e perderem-se em direção ao ermo da cidade.
A Polícia foi acionada e nada pode fazer senão recolher os restos humanos espalhados.
Na parte interna da porta como uma macabra elucidação do mistério, ou como uma última e jocosa retaliação, um convite, semelhante aos demais, continha como assinatura A Morte Pede a Sua Presença. AMPSP.