O Estádio do Demônio
O Estádio do Demônio
Jorge Linhaça
Aquela noite um jogo como muitos outros se desenrolava naquele estádio na periferia de uma grande cidade. Havia sido erguido anos atrás com aporte de dinheiro público, às pressas, com os mesmos atrasos que sempre assombram as obras públicas, gerando mais aportes e o aumento do capital investido.
Muitos negaram esse favorecimento ao time que em mais de cem anos jamais havia tido a capacidade de construir um palco para os seus eventos esportivos.
Mas o jogo transcorria normalmente, a torcida gritava , comemorava e xingava a cada lance bem executado , a cada gol perdido ou a cada erro do árbitro, esquecido dos hospitais que deixaram de ser construídos para se erguer o tal estádio, dos investimentos em educação que deixaram de ser utilizados para a sua real finalidade.
Mas, o que importava para o torcedor era a hipnose do espetáculo, era vestir a camisa do seu time do coração fosse ele qual fosse, o resto era sempre menos importante que o futebol.
Mas aquela não seria um noite comum, justamente quando acabou o primeiro tempo, as luzes se apagaram, um vento de gelar a alma circundou o tal estádio e as estruturas estremeceram, fazendo com que, por alguns instantes todos os gritos se calassem presos nas gargantas.
No meio do gramado uma enorme cratera se abriu, todos os acessos do estádio se fecharam misteriosamente, o medo era latente nas almas dos torcedores ali presentes, as câmeras das emissoras que faziam a cobertura ainda conseguiam funcionar enquanto duravam suas baterias. Voltaram-se todas para a cratera nascente, os locutores tentavam explicar o que acontecia, com suas vozes confusas, embargadas de medo e entrecortadas pela emoção. Da imensa cratera que agora já ocupava o gramado de área a área, o fogo parecia brotar e ganhar altura, iluminando com sua luz tétrica os rostos apavorados e desfigurados pelas sombras soturnas que se alternavam com o bruxulear das chamas dançantes.
Em meio a esse quadro uma figura grotesca ergueu-se do centro das chamas, uma figura imensa que superava a altura do estádio, com seu corpo vermelho e asas negras... Com uma voz gutural, capaz de paralisar o mais corajoso dos homens, simplesmente declarou:
Eis que chegada é a hora de cobrar o preço de vossa condescendência e cumplicidade. Que venham as almas dos aflitos, vitimas desta obra.
Intensa neblina invadiu as arquibancadas trazendo consigo inúmeras almas desencarnadas, sequiosas de sua vingança contra o descaso absoluto daqueles para quem a diversão estava acima da vida de seus semelhantes.
Eram as almas das vítimas do sistema precário de saúde, que haviam deixado esta vida por falta de atendimento decente, a elas se uniam as almas daqueles que foram tirados prematuramente desta vida por conta do uso de drogas e da criminalidade geradas pela não chegada de verbas à educação, pela falta de investimento na qualidade de vida da população por conta de ambição de alguns poucos que enriqueceram com a obra que agora mostrava sua verdadeira face.
Ali não havia inocentes, cada espectador que ali estava era um cúmplice, pois, ao frequentar o tal estádio, assinava em sua alma um termo de concordância com tudo o que já foi relatado.
As tenebrosas almas, em sua vingança, espalharam o terror por cada fileira das arquibancadas, ceifando vidas com seu gélido toque, vidas essas que eram imediatamente absorvidas pelo demônio da cratera, que as devorava com sua bocarra fétida e medonha.
Quem tentou correr, fugindo de seu destino, encontrou seu fim sob os pés de uma multidão insana que lutava para manter, em vão, a própria vida. O sangue dos pisoteados escorria pelos lances das arquibancadas, indo regar o que restara do gramado, tingindo-o de vermelho. Alguns em seu último suspiro amaldiçoaram o nome daquele que, para justificar as obras superfaturadas, havia dito que não se pode jogar futebol em hospitais.
Esse mesmo e outros tantos, que frequentavam os luxuosos camarotes foram arrastados vivos pelas almas famintas e lançadas diretamente na boca do monstro, senhor do estádio que acreditavam ser deles.
Como que cumprindo algumas profecias feitas por pessoas comuns, a cratera expandiu-se até tragar para dentro de si o gigante de concreto, sepultando com ele, todos aqueles que se atreveram a comparecer a tal jogo.
Apenas a mão divina impediu que as crianças seguissem o mesmo destino dos demais, de maneira tal que, ao fechar-se a boca do inferno que ali se abrira, apenas estas foram encontradas vagando sobre o tumulo cavado e fechado pela força do demônio...