O Anjo Vingador
Bastava alguém morrer aqui em Paranaguá, e ele já se tornava assunto mais uma vez: o anjo esculpido sobre um dos maiores mausoléus do Cemitério Nossa Senhora do Rosário.
Era de fato uma imagem impactante e majestosa: um anjo em tamanho natural – ou melhor, no tamanho natural de um homem adulto – prostrado em um dos joelhos tal qual um cavaleiro ente a seu rei, jazia sobre o telhado de um sepulcro que fora construído em estilo gótico, lembrando muito um castelete europeu.
Tinha ainda outra característica única: as suas asas não estavam esticadas ou à mostra como os pequenos serafins que às vezes eram edificados nos túmulos dos bebês; ele tinha asas enormes, impressionantemente volumosas para o material com que fora construído – concreto pintado de branco, e não gesso como a maioria – e que se dobravam para frente de seu corpo, envolvendo-o de forma semelhante a um casulo de penas, deixando de fora apenas a cabeça abaixada e o rosto eximiamente esculpido como um guerreiro do mediterrâneo na época das cruzadas. Cabelo curto e de traços modernos, para frente.
Às vezes algumas pessoas que vinham visitar seus entes queridos, paravam nessa região do cemitério e o fitavam por horas a fio, com as cabeças voltadas para o alto, tentando olhá-lo face a face, e entender o porquê daquela feição tão rígida, como se uma dor inexplicável lhe tivesse consumindo por dentro.
Pouquíssima coisa se sabe sobre a obra de arte ou o dono do luxuoso esquife. Acontece que a placa de cobre que carregava o seu nome e foto fora furtada por algum criminoso da madrugada. O registro de propriedade no cemitério se perdeu, porém ninguém ousa demolir aquele túmulo tão suntuoso temendo a figura alada prostrada sobre ele.
Dizem que foi graças a aquele anjo que o cemitério passou a fechar seus portões assim que o sol se põe, e não mais às nove da noite como era antigamente. Pois quando a lua passa a estampar o céu negro da cidade, assim como o está estampando hoje, seus raios prateados recaem sobre o concreto e – dizem, muitos dizem – ele recebe um brilho sobrenatural, como se fosse luminoso e não iluminado.
***
Não muito distante dali, no décimo andar do Palácio do Café, um prédio erguido como uma estaca no peito da cidade, passos apressados de um sapato baixo feminino estalavam secamente contra a solidez do assoalho.
A jovem olhava para trás e tratava de caminhar mais depressa. Correr não, pois se corresse, o homem que a perseguia se daria conta da tentativa de fuga e apressaria o passo também, e assim ela não teria chance de escapar.
O elevador ficava no fim do corredor, que nunca pareceu tão comprido.
Embora fosse um prédio comercial da cidade, àquela hora – dez da noite – já estava deserto, apenas pincelado por um ou outro gemido por trás das portas fechadas.
O homem se aproximava cada vez mais, o que causava uma apreensão ascendente na garota. Seria mais digno de medo se ele estivesse com uma túnica preta ou algum tipo de máscara, mas na verdade vestia terno e gravata impecavelmente passados e gomados, o sapato caro fazia um som muito próprio enquanto ele a perseguia.
Logo esse homem sem rosto já estava no encalço da garota e não demorou até que seu braço a tomasse.
– O que você está fazendo? Me larga! Me larga! – gritava, desesperada. As mesmas palavras que já foram ditas milhões de vezes em florestas, ruas escuras, prisões, manicômios, só mudava de cenário, mas são sempre as mesmas palavras.
Ele a jogou contra a parede e afundou uma mão em seus lábios muito vermelhos, para calá-la.
A fronte do homem com algumas rasas rugas e um cabelo branco que lhe dava um porte respeitoso. Mais cedo, tivera uma reunião e convencera todos os acionistas a seguirem suas ordens.
Os gritos abafados pela mão eram disfarçados pelo zumbir do ar condicionado acima de suas cabeças.
A outra mão do homem rasgava a blusa e a saia da jovem. Ela já chorava sabendo o que estava por vir.
E foi quando aconteceu.
Ambos ouviram o som de uma janela se estraçalhando atrás de alguma daquelas portas, o homem olhou em volta, assustado. Alguém devia ter jogado algo para a rua, nada podia ter entrado, estavam a mais de vinte metros do chão.
E uma parede também desabou no início do corredor. Alguém a destruíra com apenas um golpe.
Tão branco e tão iluminado quanto a lua-cheia, emergiu dos escombros o semblante sério do guerreiro. Cabelo curto e de traços modernos, para frente.
Não, não era um homem, a moça sabia, o presidente da empresa sabia. Não era nada próximo a um ser humano. Ele era mais.
Caminhava devagar, o corpo muito bem delineado, anatomicamente um corpo exatamente como um humano, se não fosse pelo branco que dele cintilava. E aqueles olhos. Aqueles olhos perturbadoramente calmos. Brancos como os olhos de um cadáver.
– O que é... o que... você...? – gaguejava o homem engravatado. A mulher sentia o seu algoz tremendo. Naquele momento ela já poderia se desvencilhar dele, mas também estava paralisada graças à figura de concreto.
Ele não respondia, não dizia nada, sua boca fora esculpida com os lábios colados um ao outro. Apenas continuava a se aproximar.
Logo o sujeito soltou a jovem empurrando-a. Ela caiu no chão e lá ficou, observando a cena.
Em seguida, o velho que antes estava com a roupa tão arrumada, já a amassava toda para retirar o revólver da lateral da calça.
– Afaste-se! Afaste-se ou eu... – antes de terminar a frase já havia disparado duas vezes.
Os tiros não surtiam efeito, apenas faíscas no peito de pedra reluzente e as balas desviaram para as paredes do corredor.
Ele cada vez mais próximo. Cada vez mais próximo.
– O que é isso? Quem é você?
Chegou até o criminoso e lhe arrancou a arma. O homem choramingava que não iria fazer nada com ela, que tinha família, que tinha filhos.
Mas ele não teria piedade. Com apenas uma mão segurou-o pelo topo da cabeça afundando seus dedos nas têmporas e coro cabeludo quase a ponto de tocar o cérebro.
E o homem rugiu. Grunhiu. Ali não era mais Homem – era Bicho que sabia que ia morrer.
Bateu ainda a cabeça do sujeito contra a parede que o próprio engravatado certa vez pedira ao engenheiro que fizesse com muita solidez e resistência, e que há pouco servia para pressionar a sua vítima. Abria-se uma cratera de sangue e cabelo na parte de trás da cabeça.
Mas ele sabia que o homem ainda não estava morto – nem queria que estivesse.
Olhou-o nos olhos, muito profundamente.
E então a moça que acompanhava a cena viu claramente quando as asas se despregaram das entranhas nas costas e abriram-se, uma para cada lado, ambas com o mesmo tamanho que a envergadura do seu herói – um anjo.
E ele bateu as asas, o vento projetou o cabelo da jovem para trás quando seu corpo subiu numa velocidade extraordinária, destruindo o teto daquele andar, e do próximo e do próximo – levando em mãos o sujeito com a roupa já toda rasgada.
De volta ao cemitério, quando o anjo se aproximava de seu mausoléu, os portões do pequeno castelete se abriram assim como a grossa tampa do túmulo dentro dele, mostrando um salão imenso e escuro no subsolo. E o justiceiro alado jogou o homem dentro daquele recinto, onde ele se misturou às dezenas de cadáveres na mesma situação, alguns já em ossada, outros sendo devorados por vermes e moscas.
– Não! Não me deixe aqui!
Dos trajes esculpidos no anjo ele próprio retirou a sua espada, de quase um metro de diâmetro e com uma pedra preciosa separando a lâmina da empunhadura.
Sem demonstrar o menor resquício de piedade para com o homem que lhe clamava pela vida, ele cravou a arma bem no centro do seu peito, atravessando órgãos e dilacerando ainda mais o cadáver que estava abaixo dele.
Deu as costas para o local e a tábua se fechou sozinha sobre o túmulo. Depois, com apenas um bater de asas, seu corpo se projetou para o topo do mausoléu, e de lá ele observou brevemente a imensidão de lápides e túmulos, antes de abaixar mais uma vez a cabeça, prostrar-se com um joelho dobrado, e fechar as asas em frente ao corpo no formato de casulo, a fim de que isso cobrisse a espada ainda manchada de sangue vivo.
Seu rosto rígido tentando esconder aquela dor inexplicável que lhe consumia por dentro, tentando entender a natureza dos homens.
***
Os passos lentos de um sapato baixo feminino estalavam por entre os estreitos corredores no dia seguinte. Então ela parou, abaixou os óculos escuros e ficou algum tempo olhando para o anjo sobre o mausoléu.
A cabeça estranhamente vazia, sem pensamento algum, só gratidão e paz.
Repôs os óculos e partiu dali pouco depois. O coveiro logo viria lhe avisar que o cemitério fecharia em alguns minutos, o sol já estava quase se pondo outra vez.
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Mais um conto pessoal, espero que tenham gostado. E sobre a pequena série "Sob o silêncio da noite", eu não desisti de escrevê-la, ela já está pronta lá no meu computador, que está estragado então não tenho como postar por enquanto (o conto que vocês leram acima foi manuscrito),mas assim que for possível eu posto os três capítulos finais da história, até lá, grande abraço.