"Não julgue pelas aparências, elas enganam"


Prólogo
 
 
   A mãe olhou para o filho. Avistou o céu negro, um sorriso mergulhava em carmesim, e o perfume de outrora agora era o oposto, solto no ar, aguçando o faro das feras, que vinham em disparada pela mata à procura da mulher, latindo alto, quebrando galhos, e salivando, homens famintos, monstros em busca de justiça, enquanto a mulher, sorria, sorria e chorava.

 Entre lágrimas e risos ela disse:

 - Quem bate na mãe fica com a mão seca – e repetiu – Quem bate na mãe fica com a mão seca.
 Logo sentiu a mão do filho tocar-lhe, e a maldição virou realidade.

 
 

Capítulo 1 – Inferno – Parte 1
 

  Olhou além das portas à fronte, nenhuma delas o aceitaria, nem mesmo em mil anos.

   Sentou-se a beira do abismo e sentiu as labaredas lhe tocarem o rosto, assando a própria pele. O estranho é que toda aquela dor o atraia, era como se o convidasse para as profundezas.
 
  Abaixo dos pés que balanceavam desprendidos de apoio, enquanto os calcanhares batiam repetidamente contra a parede que descia dando forma ao abismo havia uma imensidão perversa. Sons múltiplos e profanos ecoavam doutra dimensão, gritos de dor e orações maléficas, lamurias e lamentações tal quais cânticos que eclodiam das profundezas. Brados funestos e estridentes, quase metálicos zumbindo em seus ouvidos.
 
   Olhou para esquerda, depois para a direita, sem ao menos mover o pescoço. Vislumbrou colunas rochosas que se estendiam por centenas de metros, ostentando paredes negras que o cercavam, e destas emanava sangue.

  O liquido rubro insolentemente deslizava viscoso por sobre as ondulações caricatas. Efígies, desenhos vivos, esculpidos por um artista sombrio, como em auto-relevo, anjos e demônios, faces rugosas, asas mefistofélicas, chifres medonhos e línguas que se assemelhavam a serpentes de duas cabeças, entrelaçadas dentro das bocas escancaradas, e olhares infernais, revirando-se, escravizados naqueles pilares soturnos.

   Seguiu-as até o alto, apenas com os olhos, e pôde ver o que sustentavam, e donde estava deduziu que eram nuvens.

   Dali pôde sentir o aroma de flores conhecidas, e até mesmo a brisa fina lhe incitando a experimentar a bonança daquele plano superior. Mas Antonio não tinha um ingresso, pois abrira mão dele há muito tempo, não, ele não tinha mais ingresso para lugar algum.

  Tão breve percebeu onde estava. Aqueles eram os pilares da vida eterna e também da morte eterna, sentiu os pés úmidos, molhados daquele mesmo sangue, o mesmo que era essência da vida, tão pútrido e fétido.

  Sim, ele tinha toda certeza, estava vagando, passeando entre o céu e o inferno, perdido em lugar algum.

 
 
Capítulo 2 – O Circo – Parte 1
 


  Nuvens embaçavam o céu, e uma lua se mostrava presente sobre as estrelas, partida ao meio, num risco reto e certeiro, sendo invadida pelos olhos do garoto, que a vigiavam sob a funesta noite.

  Tinha os olhos azuis, como o mar, ou quando o céu em dias bons. Magro em excesso, era dono de orelhas um tanto quanto crescidas, pontiagudas ao topo, e a cabeça redondinha no formato cômico de uma bola de boliche. O jovem “Meio Quilo”, como fora apelidado pelo pai devido ao porte físico, sentiu o toque dos dedos do homem por sobre o ombro, e espontaneamente virou-se, vestido de felicidade.

 - Está na hora filho – disse em tom simpático.

 - Pai, você me compra pipoca e refrigerante? – indagou inocentemente.

 - Claro filho – O homem sorriu, aquele mesmo sorriso de sempre – o papai conseguiu guardar parte do dinheiro da capina – respondeu acariciando os cabelos crespos e mal cortados do menino.

 - Que legal! – exclamou – Pai, então vamos, vamos logo! Quero estar na primeira fila – e saiu correndo à frente do pai, enquanto esse se recordava do que fizera no dia anterior.

  O homem de vestimentas simples, chapéu de palha à cabeça e mãos repletas de calos enfiou os dedos no bolso e sentiu o volume das notas, sim, ele tinha dinheiro para pipoca e refrigerante e até para um pouco mais.

 
 
Capítulo 3 – A Aberração – Parte 1
 
  Dirigia insanamente, parte de si estava em um hospital, outra parte estava no passado.

  As mãos deslizavam pelo arco do volante, os dedos desnudos acariciavam os pedais, agressivamente, enquanto os olhos miravam além do vidro embaçado, além da tempestade que ruía lá fora.

  O velocímetro se movia com a voracidade de um termômetro encarando uma febre convulsiva. Já o limpador de pára-brisas encarava a chuva de frente, numa guerra incansável, constante e aparentemente perdida.

  Faróis altos, olhos acesos, e tudo parecia ter se apagado, se acabado numa escuridão sem fim. A estrada aparentava ser mais longa que o normal. O caminho cercado de sombras convidava a morte a cada curva, em cada flash de relâmpagos ou rugir de trovões.

  O celular continuava tocando, ali, do seu lado, irritantemente as luzes da tela piscavam por sobre o painel, enquanto o ruído do vibrar do vibracall o desnorteava ainda mais, fazendo o reviver aqueles minutos infernais.

  - Oi – atendeu ao telefone com a voz terna.

  - Cristiano Louzada? –respondeu a voz desconhecida.

  - Quem está falando? - ele indagou.

  - É do hospital Carlos Prates – o telefone ficou mudo por um instante – bem, senhor – a voz saia pausada – é que – a pessoa do outro lado da linha já podia sentir a aflição de Cristiano mediante o ouvir da respiração carregada, o que apenas dificultava aquela noticia – é que seu irmão – e nesse momento a linha ficou muda – Sr. Cristiano? Sr? – não houve resposta.

 

Capítulo 4 – O Segredo – Parte 1
 
 
   - Ele não é normal, nunca foi.
 
   - Tem certeza que quer fazer isso? – perguntou o negociante, pois não havia volta.

   - É, tenho mais bocas para alimentar – havia uma centelha de ódio ou um sentimento similar – ele nasceu assim, essa coisa, o criei por todos esses anos, mas ele nem sabe como é de verdade, mal sabe ele que não é normal.

  - Como conseguiu mentir para o menino todo esse tempo? – indagou o velho, tirando o chapéu da cabeça e revelando o dinheiro guardado dentro do chapéu, enquanto pegava as notas amassadas e começava a contar.

  - Mentindo para mim mesmo.

   O homem olhou-o com frieza, já conhecera muitos monstros, e como poucos sabia bem que o que define um monstro não está do lado de fora de sua carcaça e sim preso entre as grades que sustentam o corpo, bem ali, onde a dor não é algo experimental.

 
 

 
Capítulo 5 – O Circo - Parte 2 
 
  Ele só queria estar ali, sempre quis. Era o calor da platéia, os aplausos e rumores a cada investida. Tudo aquilo era um espetáculo a parte.

  Sentiu-se zonzo em meio a tudo aquilo, a má alimentação, a tristeza, a solidão. Ajoelhado frente ao garotinho que carregava nas mãos uma maçã açucarada, vermelha viva, como o próprio sangue que lhe escapava a cada chicotada recebida, enfim percebeu que ela não podia simbolizar o amor, não. A maçã, a fruta proibida que revelara o segredo do éden, despertara sua ira, o ódio de tudo e de todos.

  Viu o riso do menino inocente, apontando-lhe o dedo e indagando:

 - O que ele é mamãe?

A mãe olhou-o, torceu o nariz e fez um estranho bico com os lábios, olhando-o com repulsa de cima á baixo.

 - É um monstro, filho – a mãe afirmou.

Meio Quilo sentiu-se estranho, como podia ser tão odiado, como podia ser tratado como uma criatura qualquer? Em meio a pensamentos fora atingido novamente e logo voltou à realidade.

 - Obedeça! – gritou o sádico que o humilhava com chibatadas que acendiam o público – pule feito uma gazela! – e começou a chicotear o chão – pule Meio Quilo! – e ele, desengonçado e ferido, pulou, enquanto o apresentador de trajes desproporcionais e multicoloridos ria e zombava, manuseando o impiedoso chicote.

  O menino continuou assistindo ao lado da mãe.

 

Capítulo 6 – O segredo – Parte 2

  A mesa do dia seguinte era farta, o pai parecia feliz e nada arrependido por tal ato. Olhou para a mulher que usava um vestido comprido, largo por cima do espartilho.

 - Estranho, não vi Meio Quilo hoje – comentou – e você? – indagou, olhando de soslaio.

 - Não, mulher, não vi – respondeu, olhando para o rosto já envelhecido da mulher que estranhamente lhe trazia tanto desejo.

 - O que você fez com ele? – ela olhou nos olhos dele, queria dar uma surra naquele homem já formado, mas as mãos estavam presas as correntes assim como os pés, acorrentados há tantos anos, como um cão qualquer – Sabe que isso não é certo, sabe que irá pagar muito caro se tiver feito algum mal a ele.

  O homem se aproximou, ele tinha pouco mais que a metade da idade dela, trinta e cinco anos, e ela cinqüenta. Ergueu a mão e acariciou o rosto da mulher.

 - Sabe o quanto te amo, não sabe? – perguntou segurando-a firme pelo queixo e pescoço, indicador e polegar castigando o maxilar da amante.

 - Eu te odeio – respondeu – e também te amo, meu filho – A mulher falou com dificuldade, sentindo ele apertá-la ainda mais. Até que com a outra mão ele levantou o vestido da própria mãe e como em outras tantas vezes abusou dela, enquanto a surrava, assim como vira o pai, e o avô fazerem por tanto tempo, dia após dia.

  E enquanto saciava seu desejo doentio, sua mente lhe trazia lembranças sórdidas.

  - Mulheres só servem para isso menino, somos animais, precisamos delas para nos satisfazer – ele era apenas uma criança – olha para mim, pirralho! – gritou o avô – é assim que se faz – disse enquanto estuprava a própria nora – é assim – e arfava – assim – e ele ouvia os gemidos da mãe, paralisado, sem entender o que era certo e o que era errado.

  Antonio despertou com o barulho do tiro, e sentiu o cheiro da pólvora entrar pelas narinas.

 

Capítulo 7 – A Aberração – Parte 2
 
  - Como você está? – Perguntou.

  - Me sinto feliz.

  - Ah, você não está nada bem, mestre Tales.

  - Já te disse para não me chamar assim – disse Tales – você é meu irmão.

  - Não, não sou, sabe disso – disse olhando o velho amigo nos olhos.

  - São tantos anos, tanta coisa mudou – a voz de Tales começou a falhar – quero que me prometa uma coisa – ele tossiu.

  - Não quero prometer nada, só quero que fique bem.

   - Cristiano, você carrega meu sobrenome, meus filhos te tem como um tio, meus netos como um avô.

   - Olhe para mim, sabe que não sou normal – Cristiano rebateu.

   - Você sempre será meu melhor amigo, e preciso que me faça um favor, ou não morrerei em paz – Tales segurou a mão de Cristiano – por favor – insistiu.

  - Tudo bem – aceitou Cristiano, enquanto as lágrimas brotavam dos olhos sem nenhuma pretensão de cessar.

 

Capítulo 8 – O segredo – Parte 3
 
  Estavam dentro de casa, mãe e filho. Ela, exausta, a vida lhe traiu de forma trágica, desde a infância até os tempos atuais. Os homens de sua vida eram bichos, cheios de músculos e guiados por uma cabeça que não pensava. Aprisionaram-na dentro de si própria. Deixaram-na a deriva em um barco sem rumo, sem velas, remando com os próprios braços, por um mar morto, acorrentada a tantas decepções.

  Ele, o filho fora criado num berço de espinhos. As figuras que o tornariam um homem, fizeram-no um monstro. A mulher que lhe deu a vida seria também a única que lhe daria o amor, e foi nesse encontro de conflitos psicológicos que surgiu o monstro.

  O silencio após o ato do filho que não agia como tal, fora quebrado pelo estalido de um tiro de espingarda. Logo a voz do delegado ecoou pela velha casa.

 - Antonio Ferreira, aqui é o delegado Alcântara, abra a porta e saia com as mãos à cabeça – a voz era grave e soava um tanto como ameaçadora – Temos uma denuncia de que mantém sua mãe em cativeiro – e então seus olhos se arregalaram – eu contarei até dez e entraremos a força – ameaçou o homem da lei.

 - Merda – praguejou o louco, olhando para mãe que o olhava melancólica – eles querem te levar de mim, mãe, querem você para eles – Antonio sussurrava – mas eu não posso deixar – disse, pegando o velho rifle do avô, que jazia pendurado acima da porta de entrada. Olhou para fora da janela, pelas espreitas da cortina, e viu cinco homens rodeando o quintal, todos armados e fardados. Mais ao longe, uma multidão marchava empunhando tochas e armas.

  - Vamos sair pelo porão, lá onde seu avô e seu pai me mantiveram até morrerem, há uma passagem que da no riacho. Debaixo dessa casa passam as manilhas que levam o esgoto da cidade ao rio – revelou a mulher, a mãe que ele tanto castigara.

 - E como sabe disso? – ele perguntou, lembrando-se de ter decidido assim que o pai morreu que tiraria a mãe de lá, e a manteria lá encima, para que ao menos pudesse respirar o ar puro que entrava pela janela.

 - Ah, Antonio, não sei se posso te chamar de filho – ela suspirou enquanto olhava para as alianças sádicas que apertavam seus punhos – Eu saia quando eu queria, a fossa fica abaixo da casa, nem seu pai, nem mesmo seu avô sabiam disso. A casa foi herança de meu bisavô – disse lembrando-se do dia em que descobriu como sair dali – enquanto falava o delegado contava pausadamente, numa contagem regressiva – Mas eu só sabia que havia uma fossa e não dessa tubulação, até o dia em que me lancei nela, enojada com tudo que faziam comigo, eu queria morrer ali, na merda, estaria muito mais limpa do que sendo estuprada constantemente por eles – respondeu.

  Ao ouvir o numeral oito sendo ditado em alto e bom tom pelo delegado, Antonio soltou a mãe e abriu a porta que havia abaixo dos pés. Puxou-a e desceram os degraus apodrecidos pelo tempo, enquanto a porta fechava atrás de si.

  Por esse tempo o silencio reinou. Antonio estava confuso com tudo aquilo, a mãe o escoltou até a tampa da fossa que tinha um metro e vinte de diâmetro, e o motivo de não ser notada é que ficava bem no canto da parede, sendo que a abertura para entrada era outro alçapão em forma de quadrado, feito de cimento, além de estar coberta pela terra solta que a camuflava.

  Havia uma argola de ferro para puxar a tampa, Maria a abriu enquanto ouvira o barulho de alguém arrombando a porta do piso superior.

  - Vamos logo! – A mãe sussurrou, enquanto o chamava fazendo o gesto com as mãos.

 - Não entendo – Balbuciou Antonio, e repetiu, olhando para mãe, totalmente descrente – Não entendo. Por que nunca fugiu? – indagou, e ela olhou para ele e respondeu num tom melancólico.

 - Por você, mas estamos ficando sem tempo, Antonio – foi quando ouviram gritos lá de cima.

 - Tem alguém lá embaixo! Eles estão aqui! – os pés pareciam querer quebrar a madeira, e então veio o primeiro disparo seguido de um grito do delegado.

 - Não atire imbecil, ela está com ele – mas era tarde demais, Antonio havia sido atingido – vendo o sangue escorrer pelo corpo do filho, Maria o perguntou:

 - Consegue andar?

 - Sim, eu acho – respondeu, vendo a mãe pular dentro da fossa, e em seguida fez o mesmo, caindo nos esgotos da cidade.

 

Capítulo 9 – A Aberração – Parte 3

 - Pois é Cristiano – Tales olhava para o irmão que tantos enxergaram como uma monstruosidade. Mas ele não, nem mesmo quando criança poderia deixar de ver a pureza daqueles olhos azuis. Segurando a mão do irmão, lembrou-se daquele dia no circo.

“Lembranças”

  - Obedeça! – gritou o sádico que o humilhava com chibatadas que acendiam o público – pule feito uma gazela! – e começou a chicotear o chão – pule Meio Quilo! – e ele, desengonçado e ferido, pulou, enquanto o apresentador de trajes desproporcionais e multicoloridos ria e zombava, manuseando o impiedoso chicote.

  O menino continuou assistindo e depois de alguns segundos olhou para mãe.

 - Mãe, ele não é um monstro – respondeu e a mãe o olhou assustada.

  - O que disse? – indagou.

  - É uma criança, como eu.

  - Filho, isso não é verdade. Ele é horrível e você é – ela dizia quando foi interrompida.

 - Você mesma disse mamãe, somos todos iguais – o menino olhou para o palhaço que açoitava o Meio Quilo – Aquele é o monstro mamãe – e disse novamente enquanto as lágrimas surgiam – Aquele é o monstro – e quando o palhaço se preparava para dar mais um golpe, vendo o garoto pulando, meio corcunda, tão magricela, e de formato do rosto tão irregular, Tales gritou:

– Pare agora!

  O palhaço, sabendo quem era o menino soltou o chicote, surpreso, enquanto parte da platéia ainda gargalhava.

  - O que foi filho? – A mãe perguntou.

  - Disse que me daria o que eu quisesse hoje. Qualquer desejo que o dinheiro pudesse comprar, certo? – O menino questionou.

  - Sim filho, mas não estou entendendo.

  - Compre-me esse menino mamãe – e então Tales estendeu a mão para Meio Quilo – Compre-me esse menino, para que eu possa brincar com ele.

  - Ele não é um brinquedo, Tales – A mãe respondeu.

 - Não, não é mesmo mamãe, mas o eu não quero um brinquedo – ele respondeu enquanto olhava para o garoto que a mãe chamara de monstro – como você se chama? – perguntou ao açoitado.

 - Meio Quilo – Disse a atração.

 - Isso não é nome – retrucou Tales – Seu nome agora será Cristiano, Cristiano Lousada, ta bom?

  Meio Quilo olhou para o menino, não podia entender aquilo. Lembrara de ouvir aquele nome sendo pronunciado pelo pai, o nome da família mais rica da cidade, a família do prefeito.

 - Tem certeza que quer isso Filho? – A mãe perguntou não entendendo tal decisão, mas tinha certeza dentro de si que a criança que saíra de seu próprio ventre estava dando-lhe uma lição.

 - Não só isso mamãe – respondeu encarando o palhaço – quero que aqueles que o colocaram aqui e os que o mantém aqui paguem por essa maldade – disse sem piedade alguma pelos mal feitores.

  Logo o prefeito chegou, era um homem realmente digno, diga-se de passagem. Ao ouvir toda estória, e ao perceber tamanha indignação do filho, pôs-se a pensar. A platéia e o dono do circo, e até mesmo o palhaço não percebiam por que a criança poderia ser tão importante, não viam o que aquele pequeno viu nele.

 No mesmo dia o circo foi fechado. O palhaço foi parar atrás das grades, e o dono do circo, teria o mesmo destino, porém antes revelou aquele que havia lhe vendido o pobre menino, o próprio pai. Mais tarde, já na casa do prefeito, Meio Quilo, ou melhor, Cristiano, havia sido medicado, e tomado um banho e também ganhado roupas novas.

  Sentado no Carpete fino, olhava para aquele que o salvou, quando alguém bateu a porta.

 - Acha que já pode falar, garoto? – perguntou o delegado que entrara junto com o prefeito.

 - Sim, senhor.

 - Então, onde seu pai mora, nunca ninguém o havia visto por aqui, e o dono do circo, seu Malaquias, apenas revelou que foi seu pai.

 - Pode salvar minha mãe? – O garoto perguntou.

 - Sua mãe? – e foi aí que descobriram tudo.
 


Capítulo 10 – O segredo – Parte 4
 
  E os dois seguiram se arrastando pelos tubos de concreto, eram manilhas com diâmetro de cinqüenta e seis centímetros que se estendiam por quase oitenta metros. A bala parecia ter ricocheteado em algo e atingido em algum ponto da barriga de Antonio, que era puxado pela mãe que tanto havia maltratado.

  - Por quê? – ele continuava perguntando a si mesmo – Por quê?

  Logo Maria enxergou a luz, eles estavam bem próximos do local onde era despejado todo o esgoto. Mais algum esforço e estariam lá, mas de repente Antonio começou a engasgar com o próprio sangue, estava tendo uma hemorragia.

 - Calma – ela disse em seu desespero – Maria tinha os cabelos brancos, lisos, e bem penteados, afinal cuidava de si, pois era só isso que podia fazer presa aquelas correntes. Passou os braços por debaixo dos sovacos do homem e terminou a empreitada com muito determinação.

 Saíram das manilhas, o lugar era fétido a principio, porém mais a frente Antonio zonzo e com poucas forças, viu a beleza daquele local. Era um riacho, porém um pouco antes da caída dos efluentes, havia uma queda d’água maravilhosa.
 
  - Esse lugar é lindo. Como não conheci isso? – Perguntou ele enquanto a mãe olhava para o filho que sempre fora tão lindo, desde a meninice.

  - A primeira vez que fugi, tinha a intenção de não voltar mais. Ah, quando achei essas manilhas, pensei estar salva, salva para sempre – logo os olhos da mulher incharam, eram um poço transbordando – mas, mas vo... Você – ela gaguejava em meio aos soluços – você ainda era um garotinho, era tão lindo, tão doce, e tinha apenas dois anos – os dois estavam próximos a queda d’água, apoiados em uma árvore grande – eu tinha que voltar para cuidar de você – disse enquanto a cabeça do filho permanecia sobre seus ombros.

 - Você – Antonio respirava com muita dificuldade, o sangue escapava da boca, já anoitecia, e a lua enfeitava o céu – Eu não sou digno disso tudo, de todo esse amor – falou.

  - Eu nunca poderei me perdoar – disse ela estranhamente – e nunca poderei te perdoar – concluiu já ouvindo o som dos policiais e de seus cachorros se embrenhando pela mata, farejando o sangue do filho – logo eles estarão aqui – deduziu enquanto o filho a encarava desfalecendo pouco a pouco – e logo você morrerá.

  - Mãe – ela estranhou aquela palavra – Mãe – ele repetiu já delirante.

 - Sim, Antonio – respondeu.

 - Eu não quero morrer, mãe – disse em meio a uma crise de tosse – ele ta no circo mãe – ela não podia acreditar que depois de tantos anos ele a chamava de mãe – sempre pensei que ele fosse o monstro – Antonio chorava como nunca ela o vira chorar – agora sei o que sou, sou seco por dentro, e isso é ser um monstro – Maria o ouvia, e repentinamente começou a sorrir desvairadamente – Eu não quero morrer mãe – o filho insistiu.

 - Não deixarei que morra – a voz soou com misto de ódio e amor – não deixarei que morra meu filho. A mãe acariciou-lhe a face e ele riu. Um riso mergulhado em sangue.

 Os policias se aproximavam, barulhos de galhos quebrando-se assombravam a noite. Os cães farejavam e corriam puxando as correntes que eram seguras pelos guardas. O povo da cidade carregava tochas, facões, porretes, facas, todos queriam matar o filho ruim, após saber de toda estória que se alastrara pela cidade.

  Há poucos metros dali a mãe olhou para o filho. Avistou o céu negro dentro da boca dele, o sorriso mergulhava em carmesim, e o perfume de outrora agora era o oposto, solto no ar, aguçando o faro das feras, que vinham em disparada pela mata a procura da mulher, eles só queriam salvá-la. Os cães latiam alto, quebrando galhos, e salivando. Os homens estavam famintos, eram monstros à procura de justiça, enquanto a mulher, sorria, sorria e chorava.

 Entre lágrimas e risos ela disse:

 - Quem bate na mãe fica com a mão seca – e repetiu – Quem bate na mãe fica com a mão seca.

 Logo sentiu a mão do filho tocar-lhe, e a maldição virou realidade.

  Antonio sentiu algo novo dentro de si. Algum tipo de energia, vida talvez, ou quem sabe uma dose de morte que não lhe era letal, olhando por algum ponto de vista sobrenatural. Sentiu o corpo ser atraído para arvore, estava grudado ao tronco, fazia parte dele Suas unhas cresceram desproporcionalmente e sentiu uma força descomunal em seus braços.

 A terra abriu-se abaixo de si, querendo engolir-lhe. Vendo tudo aquilo, Maria gargalhava atraindo todos com o som escandaloso que emitia.

  Depois de ser repelido pela terra varias vezes, e ser cuspido para fora dela, sentiu uma fome enorme, uma sede estranha, e notou as veias da mãe, as veias altas sob as rugas que a consumiam pela idade. As unhas dele cravaram na pele da mãe e como seringas drenaram todo o sangue da mulher, pouco a pouco, enquanto ela continuou sorrindo até o ultimo suspiro.

 Quando terminou, Antonio era algo bisonho, seco, pele e osso, carne pútrida  e apesar de todo sangue roubado da mãe, não havia sangue algum em seu corpo.

 Olhou para ela uma ultima vez, e sentiu uma bala atravessar-lhe o corpo. Mas nada mais poderia matá-lo. Antonio fora amaldiçoado e perdera o ingresso para o céu e até mesmo para o inferno. Abruptamente sumiu na escuridão e as pessoas que estavam lá juram que ele entrou dentro da árvore, ou que passou a fazer parte dela.

  A verdade é que assim vagaria pela eternidade, sendo o que sempre foi. Um monstro.

 

Capítulo 11 – A Aberração – Parte 4

  Tales ainda olhava para o irmão que tantos enxergaram como uma monstruosidade. Agora livre de suas lembranças.

  - O que quer que eu faça? –

 - Quero que cuide dos meus filhos, quero que deixe eles continuarem te amando – Tales parecia muito fraco – eu quero que nunca mude o que você é, e o que a vida te tornou, pois você ainda é para mim uma das pessoas mais lindas do mundo – O som de um bip intermitente disparou irritantemente.

  - Deixe –me chamar a enfermeira – Cristiano falou querendo levantar-se.

 - Não. Chegou minha hora, irmão – e então ambos se abraçaram entre lágrimas, ficaram assim por quase cinco minutos, em silencio até que Cristiano disse:

 - Obrigado por tudo meu irmão – e Tales sorriu, e aquele sorriso dado enquanto o queixo estava repousado no ombro do irmão foi sua despedida.

 

Capítulo 12 – Inferno – Final


  Sim, ele tinha toda certeza, estava vagando, passeando entre o céu e o inferno, perdido em lugar algum. Antonio, o Corpo Seco, olhou para entrada do paraíso uma ultima vez, e viu uma alma, linda, adentrando os portões adornados de ouro.

  Tales olhou para baixo, podia ver alguém lá, perdido, mas se sentia tão bem. Sentindo que tinha um caminho tão lindo pela frente, teve pena dos que iriam para o inferno, mas não daquele que não iria para lugar algum.
 



"O que define um ser humano é seu interior"

Fim!

  Desculpem pelo atraso pessoal! A Lenda para quem não conhece é a do Corpo Seco, com algumas alterações. Deixem aqui suas opiniões. Obrigado!

 

Corpo-Seco ou Unhudo, é um homem que passou a vida batendo e respondendo a mãe. Quando morreu, virou uma criatura maligna que fica grudada nos troncos da árvore, cada pessoa que passa perto dele, ele da um abraço da morte pois tem unhas compridas e esmaga a pessoa no seu abraço. Há também outra lenda sobre ele, diz que ele era um fazendeiro muito egoísta e mesquinho, que apanhava suas frutas para que todos não pegasem e depois de morto ele fica cuidando de suas frutas e mata quem chega perto de seu pomar.

No interior de São Paulo, há uma variante desta lenda, conta-se que quando uma pessoa passa perto do corpo seco ele pula nela e suga todo seu sangue, se não passar nenhuma pessoa ele vai morrer, porque se alimenta do sangue humano (semelhante a um vampiro).

Há ainda relatos do corpo-seco no estado do Amapá, Paraná, Amazonas, Minas Gerais, em alguns países africanos de língua portuguesa, relatados por soldados brasileiros veteranos da missão UNAVEM III e na região Centro-Oeste do Brasil, principalmente.

Em Ituiutaba, Minas Gerais, há uma variação desta lenda, onde conta-se que o corpo-seco - depois de ser repelido pela terra várias vezes - é levado por bombeiros à uma aparente caverna em uma serra que fica ao sul do município. Dizem que quem passa à noite pela estrada de terra que margeia a "serra do corpo-seco", consegue ouvir os gritos do corpo-seco ecoando de dentro da caverna.Á mãe foi amaldiçoa antes de morrer, por ter sido usada como cavalo pelo filho.

Até hoje, há o dito popular: "Quem bate na mãe fica com a mão seca".

Texto em azul retirado do Wikipédia!

Sidney Muniz
Enviado por Sidney Muniz em 14/02/2014
Reeditado em 16/02/2014
Código do texto: T4690332
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