O Magnífico - DTRL 14

Os antigos conhecem a história d’O Magnífico. O Magnífico foi concebido por Gerrard Franciesco, um imigrante francês apaixonado pelo circo. Mesmo sem dinheiro ele criou seu picadeiro, trouxe seus palhaços, deu vida as suas obras e concebeu o maior espetáculo da terra! Um baluarte contra o tédio, um bastião de alegria para aqueles que adentravam seus domínios!

Mas os antigos também conheciam O Terrível. Uma parte d’O Magnífico que ficava escondida e pouquíssimos tinham acesso. Não haviam nada além de lendas cercando o grande circo, mas dizia-se que aquele que encontrava O Terrível jamais seria o mesmo...

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- Doutor, que bom que chegou!

Everton assentiu com um movimento curto, não lhe agradava aquela formalidade quando vinha atender um amigo, mas Francisco era assim, uma senóide em constante mudança, em certos momentos era explosivo e mal educado, em outros um poço de sobriedade. Como um bom médico que sabia o mínimo de psiquiatria – apesar desta não ser sua especialidade –, Everton não podia deixar de pensar que o amigo era bipolar, pelo menos em algum grau.

Chovia de uma forma terrível, o verão era implacável naquela parte do interior mas quando a chuva vinha era para valer. O vento açoitava as árvores, sacudindo-as com grandes chicotadas. As gotas pesadas e geladas, pingando com o som de bombinhas a explodirem por toda parte.

A noite já havia entrado e na pequena casinha onde Francisco morava a luz era um privilégio de sua residência, os postes mais próximos estavam com as lâmpadas queimadas e os serviços da prefeitura ainda não haviam achado uma prioridade consertá-las, por isso Everton não viu uma gigantesca poça de lama em seu caminho e estava agora com metade das calças sujas de barro.

- Me siga doutor, não há tempo a perder.

Francisco era um agricultor da região que havia ganhando algum dinheiro com tomates no tempo em que esses passaram a valer seu peso em ouro. Foi uma crise passageira, que afetou a todos à exceção de Francisco, que parecia ter tido o terreno abençoado para que sua plantação não morresse. Essa era uma lenda contada por aqueles lados, de que o homem trocara a desgraça daquela época por uma posterior. Se Francisco sabia ou não da história nunca disse e isso nunca pareceu incomodá-lo.

Mas ainda que tivesse juntado uma considerável quantia isso não fora suficiente para mudar sua origem humilde, de modo que Francisco ainda vivia numa casa térrea cercada por terra. Os cômodos eram grandes e a mobília herança de gerações. Os móveis tinham tons escuros e passou-se mais tempo trabalhando os detalhes de pés e puxadores do que os construindo. Havia um excesso de renda por toda a parte, algo que incomodava alguém da cidade grande como Everton.

Era incrível como ele ainda pensava daquela forma. Alguém da cidade grande. Há quanto tempo ele estava ali? Trabalhando como médico no único posto de saúde daquela cidadezinha com tão poucos habitantes que cabiam em um estádio de futebol? Talvez quinze anos? Não, um pouco mais, dezessete talvez, de qualquer modo eram anos o bastante para ele ainda pensar como um cara da cidade grande. Ele era um caipira agora e a maior prova disso eram que os pés sujos de lama não o incomodavam.

- Por favor doutor! Você tem que fazer alguma coisa! Tem que fazer alguma coisa para salvar o Felipe!

Karina era a única filha de Francisco. Era uma jovem de vinte anos e desfrutava o auge da beleza. Ela tinha aquela beleza peculiar do campo, algo selvagem e indomável. Seus olhos não eram negros, eram jabuticabas maduras. Seus cabelos não eram castanhos, eram uma colmeia pronta para levantar voo. Sua pele não era negra, era da cor do carvão. Pelas histórias que Everton ouvira o gênio da moça seguia a mesma linha.

- Já mandei você ficar no seu quarto menina, por que não me obedece?! – Francisco gritou irado, sua irada acompanhada por uma trovoada dos céus.

Uma mulher entrou no cômodo indo ao encontro de Karina e a puxando. Ela era igual mas diferente da jovem. Também possuía uma beleza selvagem – embora essa parcialmente vencida pela idade avançada –, mas só isso. A verdadeira mãe de Karina havia sucumbido à pneumonia, uma cepa extremamente resistente que a medicação daquele fim de mundo não pôde combater.

Lá estava ele pensando como alguém da cidade grande de novo.

Karina era pequena na época e poucos meses depois Francisco se casara novamente com a mulher que eles agora viam. Everton tentou lembrar o nome dela mas não conseguiu, a mulher era reclusa como uma ermitã.

- Tira ela daqui Sofia! Tira a Karina daqui antes que eu a tranque do lado de fora! – Francisco resmungou num tom de fúria.

- Se fizer isso eu vou pôr a porta abaixo! E depois vou ficar do lado dele porque ele...

Karina não prosseguiu já que os trancos que Sofia lhe dava eram poderosos para vencer até mesmo sua juventude. “Lá se vai uma fera ferida”, pensou o doutor lutando para evitar um sorriso.

Os homens aproveitaram a distração para avançarem, seguindo por um corredor.

- Você disse que ele foi atacado? – O médico perguntou esperando obter algumas respostas antes de encontrar o paciente.

- Karina e Felipe namoram a pouco tempo, mas eles se dão muito bem. Acredite, eu não falaria isso se não fosse verdade. – Francisco começou. – Os dois foram ver o circo que veio esta semana para a cidade. O Magnífico, já ouviu falar? Eu me lembro de ele ter vindo aqui alguns anos atrás, pouco antes da seca chegar e destruir as plantações.

Everton concordou lembrando-se das histórias de maldições.

- Segundo Karina tudo foi muito rápido, eles já estavam de saída quando Eduardo disse que iria ao banheiro, na volta havia uma mancha escura em seu braço e ele disse que alguma coisa o mordeu. O rapaz chegou aqui pálido como um fantasma, está deitado desde então.

Everton assentiu, havia um único posto de saúde na cidade e Everton revesava o local com outro médico, mas isso não o impedia de ser chamado para uma consulta particular pelo menos duas vezes por semana. Não que ele se importasse, estava ali para salvar vidas. Um médico cura, esse era o lema que o ensinaram na universidade e algo que ele sempre seguia.

- Ele teve febre? Ânsia?

Francisco continuou calado, nesse momento eles haviam chegado à porta do quarto onde o ferido estava.

- Ele está confuso doutor, não fala nada com nada. Também tem sede, mas não consegue beber a água.

“Talvez uma variante da raiva?” Mas Everton nunca vira a raiva agir tão rápido.

- Mas tem algo que o senhor deve saber antes doutor... Nós tentamos lavar o ferimento, mas ele não deixou que mais que algumas gotas caíssem. Ele se sacudiu, como se fosse um gato com aversão ao líquido. Enquanto isso eu pude ver seu braço secando...

- Secando?

- Foi algo rápido e não achou que mais alguém tenha visto... O braço dele secou como palha, doutor... Até ficar como o braço de um espantalho, ou uma vassoura. Secou como o braço de uma múmia.

“Uma múmia do século vinte e um”, Everton pensou tendo um calafrio. O vento entrou por uma fresta relativamente barulhenta, intensificando a sensação.

- Ora Francisco, tenho certeza que...

Francisco o deteve com um movimento de mão.

- Eu sei doutor. Eu sei e não quero ouvi-lo. Acho melhor o senhor vê-lo por si só, e Deus queira que seja capaz de dar paz a sua aflição.

Francisco abriu a porta e Everton entrou. O quarto era simples e seguindo o padrão de móveis antigos e trabalhos, além da renda por toda parte. Havia um cheiro acre no ar, cheiro de suor e talvez de urina, algo ardido e repulsivo. Um cartão de visitas da morte. Sobre a cama jazia um homem que seria saudável se sua cor não fosse a do leite. As veias escuras estavam visíveis no rosto, como se sua pele tivesse se tornado fina como seda.

Everton se aproximou. Não foi preciso perguntar muita coisa, o rapaz estava parcialmente coberto, mas um de seus braços estava para fora, o braço mordido. Ele não estava seco como o de uma múmia mas uma abocanhada de uns cinco centímetros o marcava, o sangue coagulado deixando o local de perfuração dos dentes bem visível. O contraste chegou a assustar o médico, uma pele de seda sobre veias de couro negro, o sangue coagulado áspero como a casca de uma árvore. Seria aquela aspereza a responsável por Francisco dizer o que disse? De qualquer modo ele precisava ser prático, a infecção era pior do que pensava.

- Felipe, você está aí? – O médico perguntou parando ao lado dele e colocando a maleta que trouxera em um canto próximo. – Você consegue me ouvir?

O jovem abriu os olhos verdes como duas esmeraldas, haviam marcas vermelhas nele, como se as veias estivessem a um passo de explodir. Suas pupilas mais dilatadas do que deveriam.

- Sou o doutor Everton. Vim para ajudá-lo, garoto. Preciso que me diga o que aconteceu.

Enquanto Everton tirava um estetoscópio para auxiliar a medir a pressão do jovem, Felipe começou a falar. Sua voz era lacônica, distante, como se ele estivesse ouvindo alguém através de um ponto eletrônico e repetindo suas palavras.

- Eu fui ao banheiro, mas ele estava cheio. – Houve uma pausa estranhamente longa para o rapaz engolir a saliva. – Eu fiquei esperando do lado de fora. – Nova pausa. – Então ela me mordeu.

- Ela? – O doutor perguntou tendo que repetir a medida da pressão, não havia captado nada a princípio.

- Ela.

- Quem é ela?

- Ninguém. – O jovem respondeu.

- Eu disse que ele não fala nada com nada. – Francisco disse.

Everton não respondeu, a menos que tivesse captado errado a pressão do jovem estava em oito por cinco.

- Ela me mordeu doutor. Ela é ninguém. Ninguém me mordeu. Ninguém é ela e me mordeu. O senhor entende doutor?

Everton não entendia. Não entendia nada. A única coisa que entendia era que a nova medição confirmara a anterior. Era mesmo oito por cinco a pressão do garoto, oito por cinco!

- Eu vou ter que te dar um remédio. – Everton disse já tirando um frasco de Catoprol da valise. – Você vai tomar um agora e vamos medir sua pressão de novo em meia hora, se nada acontecer vamos ter que chamar uma ambulância.

Felipe não teve reação, seus olhos agora estatelados no teto. Havia uma moringa de água próxima e o médico fez questão de enchê-la.

- Ele não quis beber doutor. Mesmo dizendo que estava com sede o bicho foi teimoso.

- Às vezes nós temos que ser mais teimosos que o paciente Francisco, a pressão dele está baixa demais para ele querer qualquer coisa.

Com aquelas palavras Everton apoiou a cabeça de seu paciente com uma mão – uma cabeça gelada como a de um defunto –, e forçou-o até uma posição sentada. Ele entregou uma cápsula colocando-a na boca de Felipe que continuou catatônico. Então ele aproximou o copo e a princípio houve repulsa por parte de Felipe, mas Everton sabia ser decidido quando necessário. Aos poucos o líquido foi entrando e Felipe acabou engolindo-o. A água acabou seguindo seu ciclo, preenchendo o estômago seco do rapaz e levando o remédio com ele.

Everton soltou o paciente que continuou na mesma posição, era algo tão fora da estabilidade que ninguém acreditou a princípio que ele conseguia se manter daquela forma.

Mas isso foi o de menos.

As bochechas de Felipe começaram a dissolver, como se sua pele de seda não suportasse a presença da água. A água fugida de suas bochechas escorreu por pescoço e braços. Assim Everton viu o que Francisco havia dito, a constatação de que realmente o braço ferido havia ficado seco como o de uma múmia. Foi isso mesmo, a pele desaparecia, os tecidos murchavam e morriam, os tendões ficavam à mostra, parte dos ossos também ficavam visíveis, mas esses eram amarelados como dentes sujos. Felipe abriu a boca e o resto do líquido escorreu por seu peito, nu sobre as cobertas, revelando costelas e pulmões escuros. Ainda assim esses pulmões incharam permitindo a Felipe gritar. Um som estridente e terrível, que se somou a um trovão que caía do lado de fora.

Karina entrou no quarto, seguida de Sofia, ambas atraídas por aquela loucura, e ambas somaram seus gritos aos de Felipe. Francisco estava ao chão, sentado e com o olhar tão arregalado que seus olhos poderiam cair das órbitas a qualquer momento. Everton estava numa situação parecida, mas de pé por que mesmo a gravidade fugira de perto daquele demônio.

Felipe jogou os lençóis para cima num ímpeto, correndo daquela forma aparvalhada pelo quarto, da cintura para baixo uma pessoa normal, da cintura para cima uma múmia do século vinte e um. Ele correu até a janela, estraçalhando-a com seu peso e ganhando o mundo do outro lado.

De Felipe nunca mais se ouviu falar naquelas bandas, nem d’O Magnífico, que partiu da cidade dois dias depois para nunca mais voltar, com muitas risadas dadas pelas crianças e uma nova atração em seu quadro.

Mas essa atração era só para alguns seletos convidados.

FIM

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Quem é vivo sempre volta né?

Minha humilde contribuição a esse DTRL!

Gantz
Enviado por Gantz em 13/02/2014
Código do texto: T4690061
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