Doutor Scott - DTRL
Rebeca tinha aprendido a respeitar o temperamento evasivo, distante e, de vez em quando, um pouco irritadiço do marido. Afinal, no trabalho que ele exercia era normal experimentar níveis diversos de sentimentos estressantes como medo, paranóia e mesmo remorso. A mera menção do que ele fazia podia gerar uma gama realmente interessante de reações negativas até naqueles que mantinham uma postura liberal em relação ao assunto.
Parecia que todas as repreensões imagináveis estavam reservadas para aqueles que pelo menos desejassem fazer o que o doutor Scott fazia, se é que alguém desejaria fazer aquilo. Não era bem uma atividade do qual se possa exibir ou que se possa se orgulhar. Era mais como uma terrível necessidade, realizada nos porões da sociedade por profissionais ou charlatões que teriam em comum o destemor pela lei dos homens e pela lei divina e todo o mal que o ato poderia acarretar.
Rebeca, porém, não gostava de ocupar sua mente com prováveis castigos aplicáveis à profissão de seu marido Scott. Ela preferia pensar que tudo o que ele fazia era para o bem da família, era para dar uma vida digna a ela e aos filhos nesses tempos de crise. Além do mais, havia a possibilidade de a lei mudar e um médico como Scott não precisar mais se esconder na clandestinidade, e teria clínicas mais bem equipadas e lícitas para fazer o que faz, ou conseguir uma oportunidade melhor em outro ramo da medicina. Até lá, ela manteria segredo sobre isso. Não comentaria sobre aquilo com os amigos; controlaria sua língua para não deixar escorregar nada, não dar nenhuma pista, nem que tivesse que policiar cada frase que dissesse. Para os familiares também manteria sigilo. Tudo ela faria para manter a paz em seu lar, manter as aparências de uma família perfeitamente normal e sem nada a esconder. Eles ficariam bem se tiverem coragem e confiasse um no outro. Rebeca confiava plenamente no marido, e Scott também confiava na esposa. Pelo menos era o que Rebeca pensava.
Ela começou a ter dúvidas quanto a isso quando, em uma noite, Scott chegou tarde do trabalho, abatido, sujo e pálido como se tivesse visto um fantasma ou outra coisa não muito agradável. Ele foi direto para o banheiro tomar um banho demorado e durante meia hora era possível ouvir o chuveiro derramando água ininterruptamente e nenhum barulho a mais. Rebeca sentiu um nó na garganta e bateu na porta do banheiro chamando por ele, pensando ter acontecido o pior. O chuveiro desligou e Scott abriu a porta vestido em seu roupão e com os olhos fundos como se tivesse passado uma noite sem dormir ele falou que estava tudo bem, sem se importar com a incredulidade de Rebeca.
Alguma coisa tinha acontecido. Scott estava escondendo algo e não era necessário conhecê-lo há muitos anos para perceber que fosse o que fosse que ele estava guardando para si era algo muito sério. Teria sido descoberto pelas autoridades? Teria encontrado um grupo de religiosos fanáticos? Um assalto? Uma ameaça de morte, talvez? Rebeca fez várias tentativas frustradas de descobrir o que era, mas Scott passou a noite desviando de suas perguntas.
No dia seguinte, Rebeca encontrou no cesto de roupas sujas as roupas que Scott estava usando e percebeu que elas estavam sujas de sangue e rasgadas nas mangas e um pouco na região do peito. Ela não tinha visto nenhum ferimento no marido, e apesar de o sangue poder ser de alguma de suas pacientes, Rebeca não conseguiu pensar em uma explicação para os rasgos. Talvez ele tenha passado por algum lugar com galhos e isso teria rasgado suas roupas. Era a melhor explicação, já que ela nunca viu Scott como alguém de briga. Impelida por curiosidade e preocupação ela foi até ao carro e procurou por algo que pudesse dar uma pista, mas não encontrou nada. Os bancos estavam limpos e não havia dentro nada de anormal. Ela abriu o porta-malas e viu a maleta de trabalho de Scott. Rebeca a abriu e se deparou com os instrumentos cirúrgicos do marido em péssimas condições. Seringas e o aspirador manual a vácuo quebrado, catetes e sua tesoura embrionária partidas em pedaços e uma broca tire-tere torta. Todos imundos de sangue.
- O que está fazendo? – Scott a surpreendeu da porta da garagem. Seu semblante se fez em horror, como se a esposa tivesse cometido um crime hediondo.
- O que aconteceu com suas coisas? – perguntou Rebeca, se havia algum remorso por está xeretando nas coisas do marido tinha sumido. Scott foi até ela e fechou a maleta quase a arrancando de seus braços.
- Não deveria ter mexido nisso.
- Por quê? Nunca me escondeu nada. O que houve com seus instrumentos? Por que estão nesse estado?
- Foi... Bem... – Scott manteve-se de costas para Rebeca – Aconteceu apenas um pequeno acidente em um dos procedimentos.
- Ai, Meu Deus, Scott. Alguém morreu?... Quero dizer, alguma mulher morreu? Você pode se complicar?
- Não, querida. Eu garanto.
- Mas suas roupas... Seus instrumentos...
- Olha... – Scott largou a maleta no porta-malas ainda aberto e segurou sua mulher pelos ombros, olhando em seus olhos – Não foi nada. Está bem? Confia em mim. Não precisa se preocupar. Vai ficar tudo bem.
Rebeca quis falar mais alguma coisa, mas ao julgar pela seriedade no olhar de Scott e na dureza de sua voz, talvez o melhor fosse esquecer o que quer que tenha sido. Deixar para trás e ter alguma confiança. Como mãe e mulher dedicada, Rebeca assim faria.
A sensação incômoda de que Scott estava guardando um segredo, no entanto, nunca a abandonaria totalmente e ficaria sempre à espreita como uma presença fantasmagórica os observando com o decorrer dos dias e dos meses, até quando a situação estava mudando para eles.
Ele acabou conseguindo um bom emprego como clínico geral em um hospital que abriram na cidade, o que não fez dele rico, mas era suficiente para que Scott pudesse abandonar suas “consultas” clandestinas. Tudo estava melhorando, e Rebeca estava se dando ao luxo de não se deixar dominar por preocupações e teorias e nem o fato obscuro de Scott guardar ferramentas novas de seu antigo ofício compradas após ele se livrar das quebradas deveria estragar.
Um ano e meio depois, Rebeca e Scott estavam se preparando para comemorar o décimo quinto aniversário de casamento e celebrariam essa nova fase de suas vidas, onde um horizonte de menos medo se abria para eles. O médico tinha feito uma reserva em um restaurante fino e chegada a noite eles deixaram seus dois filhos sob os cuidados de uma babá para partir para uma noite romântica, embalados pela música que providencialmente tocava no rádio do carro.
Scott abriu a porta para a mulher e a deu o braço para caminharem juntos pelo estacionamento até a porta do restaurante. A mesa reservada ficava perto de uma janela, cuja vista dava para a cidade com suas inúmeras luzes se destacando na noite como uma constelação de estrelas caídas. Scott puxou a cadeira para Rebeca sentar e se sentou do outro lado da mesa. No centro, entre eles, havia uma pequena luminária e um arranjo de rosas brancas.
- Você está um cavalheiro hoje – comentou Rebeca.
- Quero que seja uma noite especial – Scott tocou na mão da esposa – Foram muitos anos juntos. Nos bons e maus momentos.
- Sim. Nos bons e maus momentos.
- Hoje posso reafirmar com toda a segurança o que sempre soube: Eu faria tudo de novo.
Rebeca piscou.
- Não vá me fazer borrar a maquiagem tão cedo. Você sabe como eu sou para chorar.
- Sei – disse Scott, sorrindo – E sua sensibilidade apenas a faz mais linda.
Rebeca sorriu e abaixou a cabeça com as maçãs do rosto enrubescendo, lisonjeada, e Scott ficou maravilhado. Mesmo depois de tanto tempo ela ainda o encantava como no início.
- Bom, vamos pedir algo – disse o médico, vendo o garçom vindo em direção a eles – Não viemos aqui só para admirar a decoração.
Scott pediu o prato de entrada e uma garrafa de vinho, do qual tomou pouco, já que pretendia voltar dirigindo para casa. O prato principal era de frutos do mar, mas nada muito rebuscado que fizesse Rebeca ter dificuldade de usar os talheres à mão. De algum lugar vinha uma música ambiente que o casal desfrutava, enquanto eles conversavam sem o incômodo de vozes altas ou o barulho de colheres e facas em pratos, comum nos lugares que os dois costumavam freqüentar. Em dado momento, Rebeca sentiu necessidade de fazer uma pergunta que estava em sua mente há tempos e que não tinha encontrado uma oportunidade propícia de fazer.
- Scott...
- Sim?
- Você já me escondeu alguma coisa?
Scott olhou para ela com o cenho franzido.
- Como assim?
- Você já teve um segredo que nunca me contou?
- Como uma conta bancária sigilosa ou uma amante?
- Não necessariamente... Espere um pouco, você já teve uma amante?
- Não! – Scott foi veemente na resposta e afastou a idéia imediatamente – Por que quer saber se lhe guardo um segredo?
- Não sei. Em todos esses anos de casado... Às vezes as pessoas têm segredos mesmo para aqueles com quem dividem a cama.
- Fique tranqüila. Não lhe escondo nada.
- Sei que possui instrumentos novos e que os guarda no carro – Rebeca falou e não soube dizer se Scott tinha ficado abalado com aquela informação.
- Você sabe que eu abandonei os...
- Abortos clandestinos? – completou Rebeca.
Scott olhou discretamente em volta. As mesas não ficavam muito perto umas da outras e nenhum dos clientes ali pareciam muito interessados no que era dito na mesa vizinha.
- Quer falar mais baixo? – ele sussurrou – Isso não é algo que se comente por aí. Sabe que é ilegal.
- Sei. Só acho curioso você guardar instrumentos de aborto já que não pratica mais isso – Rebeca falou com certa esperança de que Scott falasse mais alguma coisa ou até revelasse o que tinha acontecido naquela noite no passado. De fato, ele por um instante pareceu que queria falar algo. Scott manteve um olhar baixo como se refletisse sobre a conveniência de se avançar mais no assunto, mas seus pensamentos foram interrompidos por um zumbido que provinha de seu bolso. Ele ignorou durante um punhado de minutos e o barulho do celular vibrando no silencioso continuou insistentemente.
- Não vai atender? – perguntou Rebeca.
- Devia ter desligado esse telefone. Não queria interrupções.
- É melhor atender logo. Deve ser a babá. A Dani e o Benjamim devem está aprontando. Eu falei para deixarmos eles na casa da minha mãe.
Scott tirou o celular do bolso e o atendeu.
- Alô?
Rebeca viu no semblante do marido uma expressão que oscilava entre surpresa e preocupação.
- Já volto – Scott disse e se levantou sem dar chance da esposa perguntar do que se tratava. Ele saiu pela porta do restaurante e voltou cerca de cinco minutos depois, pálido como se todo o sangue de seu corpo tivesse sido drenado.
- O que houve?... Era a babá? – Rebeca perguntou quando Scott chegou até ela.
- Não – ele respondeu parecendo bastante agitado – É apenas uma emergência. De trabalho.
- No hospital?
- Sim. De certo modo – Scott chamou o garçom e pagou a conta. Ele caminhou para fora do restaurante com Rebeca apertando o passo para acompanhá-lo pelo estacionamento.
- Vou com o carro – ele disse abrindo a porta do veículo – Você poderia ir embora de taxi. Vou para casa mais tarde.
- De taxi? Você vai me deixar sozinha aqui para ir para casa de taxi?
- Entenda querida – Scott se virou para ela. Havia apelo em sua voz – Realmente é uma emergência.
- Deveria me levar para o hospital com você. Posso esperar por você lá mesmo, e depois voltamos juntos. Não deve demorar muito – Rebeca fitou o rosto do marido – Aliás, você não costuma atender chamadas de emergências assim. Ainda mais essa noite que deveria está de folga.
Scott ficou em silêncio com a porta do carro aberta. Seus dedos nervosos batucavam contra o teto metálico do automóvel. Novamente o clima de segredo estava presente, cobrindo os dois como uma bolha.
- Não há tempo para explicações.
- Scott! – o tom de Rebeca era duro e não deixava brecha para meio termo – Você disse que não me escondia nada, mas não é o que eu sinto. E essa sensação é péssima em pleno nosso aniversário de casamento.
Scott olhou para ela. Ele também não parecia se sentir nada bem com aquilo.
- Venha – ele disse, entrando no carro. Rapidamente, Rebeca deu a volta pelo automóvel e entrou pela outra porta para sentar no banco da frente. Scott deu a partida e manobrou, saindo para a rua.
- Não vai dar tempo de levar você para casa. Vai ter que ir comigo. – ele falou sem desviar o olhar da pista à frente e ultrapassando os outros carros a uma velocidade que Rebeca temia que chamasse a atenção da polícia ou acontecesse coisa mais grave.
- Você não está indo para o hospital – Rebeca observou Scott tomar um rumo inesperado na avenida, tão rápido quanto o limite de velocidade permitia.
- A emergência não é no hospital – Scott falou, e depois de um momento ele completa – Lembra daquela noite em que cheguei tarde e meus instrumentos estavam em mau estado?
- Lembro. – ela falou, não querendo ser invasiva nesse assunto e deixando o marido falar espontaneamente.
- Isso vai ter que ficar entre nós – ele falou após uma pausa – Aconteça o que acontecer, você vai ter que prometer não contar a ninguém. Pelo menos por enquanto.
Rebeca se sentia confusa com o comportamento de Scott e com o estranho pedido. Perguntas lhe vinham à mente e nada lhe inspirava confiança. Ainda assim, se era para entender o que estava acontecendo e o que estava o afetando daquela maneira, ela estava disposta a colaborar da maneira que fosse necessária.
- Prometo – ela disse. E depois se seguiu um silêncio sepulcral que perdurou a viagem inteira.
A paisagem urbana se transformava conforme o carro continuava avançando do centro para a periferia e adiante. Prédios de três ou mais andares iam ficando mais escassos, enquanto casas modestas se proliferavam. Canteiros de obras e campos de futebol improvisados em terrenos baldios apareciam e sumiam de vista até darem lugar à paisagem completamente rural com pastos e árvores se perdendo nas sombras da noite.
Scott virou em um trecho da rodovia e entrou em uma estrada acidentada de terra batida. O carro dava solavancos ao passar por buracos e saliências, levantando um rastro de poeira que era imediatamente iluminada com os faróis traseiros. Aproximadamente dez minutos depois, eles chegaram a um portão de fazenda aberta e ao passar por eles viram uma casa isolada com o teto divido em águas e ao lado dela havia uma garagem com uma caminhonete. As luzes do alpendre pareciam convidá-los a se aproximar.
- Chegamos – Scott falou, parando – Podemos sair.
- Tem cachorro? – Rebeca perguntou.
- Sim. Mas não se preocupe com eles. Bem, se quiser me esperar aqui.
- Não. Eu vou com você – Rebeca abriu a porta do carro e pôs o primeiro pé para fora. Sua sandália cravou na grama úmida.
Scott virou o banco da frente assim que Rebeca se levantou e foi para trás, para tirar de algum lugar atrás do banco traseiro sua velha maleta de trabalho. Rebeca vê o marido sair com ela e senti um arrepio. Mesmo depois de tanto tempo, imaginar a utilidade dos instrumentos ali contidos lhe causava certo incômodo.
- Vamos – Scott falou. Eles caminharam até o alpendre, subiram um degrau e bateram na porta. Ouviu-se pouco depois o barulho de ferrolhos abrindo e chaves destrancando fechaduras do outro lado. A parte de cima da porta se abriu e um homem de cabelo desgrenhado e barba para fazer olhou para eles. Não deveria ser muito velho. Talvez tivesse por volta dos trinta ou trinta e cinco anos, mas os anos de trabalho braçal sob o sol o fez aparentar mais idade do que realmente tinha.
- Que bom que o senhor chegou, Doutor – ele falou abrindo o resto da porta.
- Como ela está? – Scott perguntou adentrando na modesta sala. Rebeca o acompanhou com um pedido de licença praticamente inaudível.
- Muito mau, doutor. Ela está com contrações há uma hora e deve está com febre.
Os três seguiram por um corredor onde um cachorro vira-lata estava deitado no canto, de orelhas baixas e não dando tanta atenção à chegada de estranhos. Ao entrar em um quarto se depararam com uma mulher grávida deitada na cama de casal, de olhos fechados. Havia um pano umedecido sobre sua testa, sua face estava suada e ela parecia respirar com dificuldade.
- Como você deixou chegar a esse ponto? – disse Scott. No seu rosto havia algo que beirava ao horror.
- Eu... Bem... – o homem se manteve ao pé da cama, enquanto o médico se inclina para examinar a mulher – Eu tinha esperança de que fosse uma gravidez normal. De que não fosse como às outras vezes. Além do mais... – ele se deteve – Como ela está?
Scott levantou as pálpebras da paciente.
- Não muito bem – ele olhou para o homem – Devia ter me avisado que ela estava grávida.
- A gravidez não estava apresentando nenhum problema. Então, não achei que fosse preciso.
- Fizeram ultra-som? Algum exame pré-natal? – Scott perguntou.
- Não, senhor. Sabe que a Amanda não gosta de médicos, nem de hospitais.
- Não gosta de médicos... Deveria temer o que pode significar levar uma gravidez até o fim.
- Pretende abortar? – perguntou Rebeca que tinha ficado quieta, perto de um guarda-roupa. Achava meio cruel matar o bebê naquele estágio, com a mulher prestes a dar a luz. O homem olhou para ela como se somente agora tivesse percebido sua presença.
- Sua esposa?
- Sim – disse Scott – Rebeca, esse é Edson... Um conhecido. Edson, essa é minha esposa Rebeca.
Rebeca acenou, o cumprimentando. Edson reparou no vestido de Rebeca e na roupa de Scott e pareceu um pouco envergonhado.
- Estavam em uma festa? Sinto muito se atrapalhei. Eu estava desesperado e não confio em mais ninguém.
- Tudo bem – Scott falou – O importante agora é ajudar sua mulher.
Como que respondendo à voz de Scott, a mulher de Edson, Amanda, começa a balbuciar algo que evolui para gemidos, suas mãos se cravam na colcha da cama e ela grita, as veias da garganta proeminentes como se quisessem soltar da pele suada.
- Ela está entrando em trabalho de parto – Scott se virou para Edson com urgência – Pegue alguns panos limpos e água, por favor.
Edson saiu do quarto prontamente.
- Posso ajudar em alguma coisa? – perguntou Rebeca.
- Sim... Tente mantê-la calma – disse Scott tirando o paletó e arregaçando as mangas.
Rebeca se aproximou da cabeceira da cama. Pegou na mão de Amanda e enxugou o suor de seu rosto com o paninho que estava sobre sua testa.
- Respira fundo! – Rebeca falou para Amanda que se esforçava e tomava fôlego com dificuldade.
Edson chegou com os lençóis e os põe na cama, ao lado da mulher. Também estava com uma jarra, que pôs na mesma cadeira onde Scott tinha pendurado seu paletó.
- Aqui está.
- Ela não está conseguindo. Precisa empurrar com mais força. – disse Scott.
Rebeca viu o esforço para empurrar o bebê. Amanda cerrava os dentes e apertava a mão da outra mulher com força.
- Mais um pouco, querida – Edson se aproximou.
Por um instante Rebeca pensou ter visto a barriga tomar forma sob o vestido como se algo se mexesse. Aquilo era muito estranho para ser o bebê, talvez fosse apenas o tecido se dobrando com a parturiente vez ou outra se curvando em esforço.
- Vou precisar puxar – Scott se afastou e pegou em sua maleta uma espécie de grande pinça, com partes dobradas e chatas para acomodar uma pequena cabeça.
- Scott... – disse Rebeca, assustada. Sabia que o instrumento podia ser usado para esmagar o crânio de um bebê em um aborto.
- Tudo bem. Vou apenas puxar. Peça para ela colocar mais força.
- Ela já está exausta.
- Só mais um pouco.
Rebeca não pode ver o marido introduzir a peça no ventre de Amanda, com o vestido da mulher bloqueando a visão das mãos de Scott. Ela olhou para o semblante exaurido da mulher e pedia para que se esforçasse mais, apesar de duvidar que ela fosse capaz.
- Mais um pouco. – Scott começou a puxar.
Amanda pôs toda a força que restava e se curvou levantando um pouco a cabeça. Ela gritou, lágrimas se misturavam ao suor, enquanto Scott retirava o nascituro do seu ventre. Seus músculos se contraiam e sua face refletia a dor, até que o grito cessou e ela repousou novamente sua cabeça no travesseiro, suspirando baixo.
O que soou pelo quarto, ao invés do choro de bebê, foi um guincho tão estridente quanto aterrador que ninguém poderia supor ser de um ser humano. Scott se afastou tomado de perplexidade, deixando a criatura recém-nascida suja de sangue e líquido amniótico sobre a cama perto das pernas da mãe. Ela gritava de forma animalesca e se mexia horrivelmente, tentando se livrar do resto da placenta.
Edson se juntou ao médico e outra expressão se formou em seu rosto. Era uma mistura de espanto e deslumbramento.
- Aconteceu novamente – disse Scott.
Rebeca soltou a mão de Amanda que repousou sobre a colcha, desfalecida. A mulher que acabara de dar à luz estava desacordada, mas o movimento de seu peito que subia e descia demonstrava que estava viva, apenas descansando. Embora assustada com o barulho esquisito, Rebeca caminhou devagar, contornando a cama, e quando avistou o que tinha nascido deu passos para trás, sentindo náuseas, e levou a mão à boca para abafar um grito que morreu em sua garganta.
O que tinha saída do ventre de Amanda não era um bebê, era algo tenebroso demais para sequer ser comparado a um ser humano. Tinha braços grandes, desproporcionais ao corpo, com garras afiadas nas pontas dos dedos curtos e grossos. Abaixo deles havia outros dois braços, um de cada lado, feito uma versão menor e atrofiada do primeiro. Suas pernas eram longas, dobradas junto ao corpo como as de um sapo. Os pés possuíam unhas grandes e curvas. A pele que brilhava banhada com líquido amniótico era mais rosada do que a se um bebê humano e parecia dura como uma carapaça. As mandíbulas eram grandes na cabeça esquisita e não obstante ter acabado de nascer sua boca estava cheio de dentes afiados feitos os de uma piranha. As narinas se abriam e fechavam respirando a nova atmosfera, acompanhando os movimentos de subida e descida do peito.
- O que... O que é isso? – perguntou Rebeca, trêmula.
- Eu não sei – disse Scott – Mas não é a primeira vez que isso acontece.
- Foi isso – disse Rebeca, ainda um pouco nauseada – Você estava aqui naquela noite.
- Sim – disse o médico, sem desviar o olhar da aberração que acabara de fazer nascer – Há algum tempo, quando eu ainda fazia abortos clandestinos, fui chamado para este sítio para interromper a gravidez de Amanda, já que ela e Edson não se achavam em condições de criar uma criança. Durante o procedimento, percebi que não se tratava de um feto comum e sim de um monstro. Foi difícil no começo. Ele era muito resistente, meus equipamentos quebravam e mesmo com poucos meses a coisa parecia consciente e tentava se defender, mas assim que a removi do útero consegui matá-la.
- Ai Meu Deus – disse Rebeca.
- Isso não foi tudo – continuou Scott – Houve uma segunda vez. Foi pouco antes de eu conseguir o emprego no hospital. Amanda estava grávida e preocupada que fosse como à primeira vez. Ela me chamou para examiná-la e ao constatar que era mais uma aberração fiz o aborto. Por algum motivo ela dar à luz essas criaturas e nem exame é capaz de explicar por que. Deixei meu número de telefone aqui e disse que podiam me telefonar quando tiverem outro problema com relação a isso.
Edson, perto deles, não confirmava ou negava a história, apenas permanecia parado, vidrado no recém-nascido.
- O que vão fazer com ele?... Matá-lo? – perguntou Rebeca.
- Não sei – disse Scott – Os outros dois não chegaram a este estágio de desenvolvimento. Não sabemos ao certo o que é isso... Ou o que pode fazer. Nem se vai acabar morrendo sozinho.
- De qualquer modo, temos que tirá-lo daí e decidirmos depois. Precisamos cuidar da Amanda – falou Edson.
- Tem razão – Scott tentou dissipar o choque e a repulsa e ser racional – Pegue um pano, Edson. Vou cortar o cordão umbilical. – ele se moveu com cuidado até sua maleta. Scott largou a pinça e pegou uma pequena tesoura. Queria esterilizar primeiro, mas não sabia se era necessário em se tratando de uma criatura como aquela. Ela tinha parado os berros, e agora apenas fazia sons mais baixos e mexia devagar os seis membros.
Enquanto isso, Edson pegou uma das toalhas que tinha colocado sobre a cama e a abriu, se preparando para embrulhar seja lá o que aquilo fosse.
A tesourinha estava encaixada no dedo indicador e no polegar de Scott, cuja mão estava trêmula. Ele tomou fôlego e tentou esquecer o pavor que sentia. Ele precisava se concentrar e se comportar como o profissional que precisavam. Scott dá dois passos em direção à parturiente e a seu bizarro filho e para quando Rebeca pega seu braço.
- Cuidado.
- Tudo bem – Scott pôs o máximo de confiança na voz – Vai ser rápido – ele andou um pouco mais e ficou ao pé da cama, diante do recém-nascido. O médico esticou seus braços que fizeram sombra sobre a criatura gosmenta e molhada, parecendo a larva de um inseto monstruoso longe de sua colméia. Suas mãos tocaram no cordão umbilical e ele posicional as lâminas da pequena tesoura, se preparando para cortá-lo. Antes de fazê-lo, ele olhou um pouco mais para o que era para ser um bebê. Scott podia sentir a respiração dele em sua pele e bem mais de perto os detalhes da cabeça macabra e dos braços grandes e pequenos apenas o deixavam mais assustador.
Com cuidado e quase segurando o fôlego, ele corta o cordão umbilical que ligava a criatura à sua mãe. Tão logo isso acontece e antes que Scott possa reagir, a criatura abre seus olhos negros como toda a escuridão da noite e se lança sobre o médico em um rompante surpreendente de força e velocidade. Seus dentes cravam no braço de Scott que em um impulso de adrenalina joga a criatura com um movimento brusco. Ela atingiu a porta do guarda-roupa que estremeceu. O impacto, porém, não pareceu afetar o falso bebê que caiu no chão e correu pelo quarto feiamente, como um anfíbio usando os braços maiores e as pernas longas e flácidas.
Rebeca gritou e se recostou à parede.
- Edson – Scott falou, segurando o braço que começava a sangrar onde tinha sido mordido – Pegue.
Não menos assustado que os demais, Edson tentou jogar a toalha sobre a aberração, mas ela era se movia muito rápido e velozmente foi para debaixo da cama.
- Vou tentar afugentá-la deste lado – disse Scott, sem largar o braço – Fique onde está e tente pegá-lo.
Edson se posicionou com a toalha do outro lado, mas o temor dos dois se concretizou: a criatura aparentemente não ficava acuada com seres humanos. Ela saiu de debaixo da cama e atacou os pés de Edson que se esquivou com um salto, levando apenas um rasgo na barra da calça provocado pelas garras do que era para ser seu filho. Antes de se desequilibrar, ele jogou a toalha sobre a criatura que ao ser coberta ficou mais agitada, grunhindo ferozmente e se debatendo sob o pano branco. Ela conseguiu se desvencilhar do tecido e tão rápida que os olhos mal podiam acompanhar, saiu do quarto para o corredor. Eles ouviram o cachorro latir e suas patas baterem contra o piso quando o animal correu, perseguindo o estranho ser. Edson se levantou e correu para o corredor onde tomou a direção da sala.
Scott olhou para seu braço. O sangue jorrava empapando sua mão e caindo no chão em gordas e generosas gotas escarlates. Ele andou até as toalhas que restavam sobre a cama, perto de Amanda que dormia exausta, ainda alheia a tudo o que estava acontecendo. O médico enrolou uma toalha envolta do ferimento, cobrindo a marca de uma fileira de dentinhos pulsando em uma dor aguda, tingindo o tecido de vermelho.
- Rebeca – ele foi até sua esposa colada na parede, em estado de choque – Venha.
Rebeca balançou a cabeça de olhos fechados, sem falar nada.
- Fique calma – Scott pegou a mão da esposa que estava fria como um bloco de gelo. Ele queria falar que o pior tinha passado, mas tinha a nítida sensação de que não era verdade. Ele foi à sua maleta e pegou um tire-tere, uma espécie de broca que servia para matar o bebê no útero da mãe em abortos. Já tinha usado aquilo muitas vezes, e o instrumento deveria lhe ser útil novamente com aquela aberração. Scott deu uma última olhada na Amanda e na esposa, e decidiu que o melhor era deixar as mulheres no quarto até darem um jeito no bebê mutante.
Ele saiu cautelosamente pelo corredor, apurando os sentidos para detectar qualquer sinal da criatura.
- Edson! – ele chamou baixo, empunhando o tire-tere.
- Aqui – Edson veio da sala. Ele trazia, para a surpresa de Scott, uma espingarda de dois canos que manejava com desenvoltura.
- Você o encontrou? – perguntou o médico.
- Não. Vasculhei a sala inteira e ele não estava em lugar nenhum.
- Seu cachorro o perseguiu. Você o viu?
- Não. Vamos ver pela cozinha. – Edson passou por Scott e seguiu calmamente pelo corredor. O médico o acompanhou, andando rente à parede. Ele mantinha seu braço ferido e enrolado com a toalha junto ao corpo e segurava a broca com força.
- Rex! – Edson chamou – Vem cá, garoto.
Nenhum latido foi ouvido e nenhum cachorro apareceu. Deram mais passos e chegaram à quina da parede onde o corredor se abria para a cozinha. Edson ergueu a espingarda.
- Está vendo? – perguntou Scott, atrás dele.
- Não – Edson pôs o primeiro pé na cozinha, com o dedo no gatilho e atento a qualquer movimento. Ele continuou andando e Scott esperou atrás da parede. Edson apontava para baixo dos móveis e se agachou um pouco para olhar debaixo da mesa. Ele se virou para o médico e fez sinal negativo com a cabeça. A criatura não estava ali.
Scott não sabia se sentia alívio ou mais apreensão. Ele se preparava para se juntar a Edson, quando viu a face do outro homem se desfazer em horror e incredulidade. Scott não sabia o que ele estava vendo, mas não era difícil de supor. O médico se inclinou para observar a cozinha, olhando os pés dos móveis até encontrar o lugar para onde Edson olhava abismado.
A poça rubi de sangue que estava se propagando de detrás da pia era notável para um olhar um pouco mais atento. Edson deu passos perto da mesa até ficar no ângulo certo para ver a origem daquele sangue e quando isso aconteceu, seu estômago revirou.
A criatura chafurdava nas entranhas do cachorro morto, devorando avidamente os órgãos internos do pobre animal. Edson apontou a arma e tentou se concentrar. Scott já estava em plena cozinha e com o braço bom pegou uma cadeira. A aberração parou de se saciar com o corpo do cachorro e levantou a cabeça de entre as tripas e nacos de carne ensangüentados, virou e encarou a espingarda apontada para ela.
Mesmo quase hipnotizado com aqueles olhos profundos como um poço em sua negritude, Edson percebeu perto dele o caixote de madeira com a qual trouxe legumes para sua esposa lavar na pia e guardar na geladeira à tarde. Se ele fosse rápido e se tivesse sorte...
Antes que ele complete o seu pensamento a criatura ataca. Edson dispara e o tiro acerta o piso, perto da mão da pequena besta que desvia e corre em outra direção. O homem continua atirando e as marcas de balas se multiplicavam com uma pequena explosão de poeira no encalço da criatura. Ela dispara para a porta da cozinha, mas Scott consegue acertar a cadeira nela como um taco de golfe. O bebê voa um metro e meio de altura e atinge o armário despedaçando todo um jogo de copos de vidro. Ele caiu em meio aos cacos, atordoado, os fragmentos tilintavam caindo sem, contudo, lhe provocar um único corte. Antes que se recupere e ataque o médico, a criatura é presa no caixote que Edson joga sobre ela.
- Rápido! – Edson disse – Alguma coisa!
Scott lhe estendeu a cadeira. Edson a pegou e a pôs sobre o caixote, a forçando para baixo para impedir a criatura que se debatia presa de se soltar. Scott se uniu a ele e o ajudou a se firmar, mas não com tanta força, já que lançar a criatura com a cadeira daquele jeito tinha exigido muito do seu braço.
- Você está bem? – perguntou Edson, com seus braços ocupados em segurar sua espingarda e a cadeira que os mantinham a uma distância segura do caixote, uma vez que a criatura poderia por suas garras por entre os espaços entre as tábuas e os ferir.
- Estou bem. Obrigado. – Scott falou. Seu braço ajudando Edson a manter a criatura presa e segurando a tire-tere com o braço ferido.
Os dois chutavam cacos de vidros para longe de seus pés.
- Scott? – Rebeca chegou à cozinha e olhou para o bebê no caixote, ainda visivelmente abalada.
- Dona Rebeca – Edson falou – Perto da pia está a tampa do caixote. Pode pegá-la, por favor?
- Sim. Claro. – Rebeca caminhou até a tampa retangular de madeira e viu os restos do cachorro. Ela engoliu em seco e tudo o que estava em seu estômago ameaçou subir para a sua boca.
- Não olhe, Rebeca – disse Scott – Venha.
Ela desviou o olhar, pegou a tampa e a levou aos homens.
- Segure – disse Edson – Vou tentar colocar a tampa por baixo.
Ele soltou e Rebeca tomou o seu lugar, pondo seu peso sobre a cadeira. Ela não era tão forte quanto Edson, mas a criatura estava cansada e não se debatia tanto no caixote. Edson o levantou um pouco e foi pondo a tampa delicadamente por baixo arrastando consigo pedaços de copo quebrado. A criatura recuou para o fundo conforme a tampa era introduzida e levantou os braços e as pernas quando Edson a forçou para debaixo dela.
- Pronto – disse Edson ao terminar – Vou procurar alguma coisa para fixá-la.
Ele saiu da cozinha deixando a espingarda sobre a mesa e depois voltou com uma corda.
- Aqui está. Agora é só levantar um pouco.
- Eu não vou por minha mão aí em baixo – disse Rebeca.
- Ele está mais calmo agora – Scott falou.
- Tudo bem. Eu faço isso. Parem de forçar um pouco a cadeira – Edson levantou o caixote juntamente com a tampa e enrolou a corda com várias voltas, amarrando firmemente, dando um nó no final.
Rebeca e Scott tiraram a cadeira e se afastaram.
- Que coisa será essa? – disse Rebeca, podendo ver relances dos olhos negros entre as tábuas e voltas da corda.
- Não faço idéia. Mas não é nada inofensivo - Scott falou, acariciando o braço ferido que latejava sob a toalha ensangüentada. Ele rezava em seu íntimo para que a criatura não fosse venenosa. Ao julgar pela ausência de qualquer tipo de sintoma, não era.
- Scott, como você está? – Rebeca deu a volta no caixote e se juntou ao marido – Muito ferido?
- Não – ele disse – Consegui jogar isso para longe antes que cravasse os dentes com mais força. Seja o que for é muito mais perigoso do que pensávamos – Scott observou Edson chegar ao outro lado do caixote e pegar a arma sobre a mesa.
- Isso Edson. Se der sucessivos tiros com ele parado como está vai romper a pele dura.
- Como?
- Para matar isso com a espingarda. Se der mais de um tiro pode funcionar. Rápido! Enquanto ele está quieto.
- Desculpe, mas... – Edson olhou da criatura para Scott – Não vou matá-lo.
- O quê? – disse Scott tão bruscamente que sentiu uma pontada mais forte de dor no braço – Como assim não quer matá-lo?
Edson desviou o olhar e lambeu os lábios, evasivo.
- Você não entende.
- Não há o que entender. Você viu como se move, como ele me mordeu, o que isso fez com seu cachorro. E é apenas um bebê. Sabe Deus o que isso poderá fazer quando ficar adulto.
- Já falei – Edson insistiu – Não vou matá-lo.
- Eu não acredito – Scott falou. A idéia que passava por sua cabeça era absurda demais para ele aceitar – Não acredito que vai ficar tomado de amor paterno justo agora. Isso não é uma criança, não é nada além de uma perigosa monstruosidade. Ele tem que morrer! – esbravejou Scott, e se sentiu estranho em dizer aquilo. Ali estava ele, apelando pela morte de uma aberração recém-nascida que deveria ter matado ainda no útero da mãe e sem que pudesse evitar, pensou nos bebês que matou em seus anos de aborteiro clandestino. Eles não eram aberrações, não tinham mandíbulas ferozes, não tinham quatro braços com garras ou eram canibais. Eram apenas crianças. Eram pessoas como ele, como Rebeca e como qualquer outro. Que perigo representaria? Que mal poderiam causar se nascessem e crescessem? Scott afastou o pensamento de sua mente. Não era o momento para culpa e moralismos.
- Amor paterno? – Edson também recebeu aquilo como um disparate – Nunca se tratou disso. Sabe por que eu deixei a gravidez prosseguir e hesitei em lhe chamar?
- Porque tinha esperança que fosse um bebê normal – interveio Rebeca.
- Bem, um pouco – disse Edson – Mas principalmente por que eu poderia ganhar se fosse outro bicho.
- Ganhar com isso? – disse Scott, não entendendo.
- Sim. Aqui perto tem um circo grande. Fica há poucos quilômetros pela estrada. Aposto que pagariam um bom dinheiro para ter isso entre suas atrações.
- Não estou acreditando que você vai por a vida de todos nós e quantas mais deixando isso vivo por ambição – disse Scott.
- Não exagere. Não acho que esteja pondo a vida de alguém em risco. Eles têm leões e tigres. E jaulas para conter todas essas feras. Podem tomar conta de mais uma.
- Isso não é um felino, ou um jacaré. Não sabemos nada sobre ele. Imagina o tamanho que isso pode ter na fase adulta.
- Bem, vamos descobrir vendo isso crescer no circo.
- Não posso deixar – Scott deu um passo, se impondo – Você não vai sair daqui com isso vivo – ele sentiu o metal do tire-tere em sua mão. Ele mesmo iria terminar o serviço se fosse preciso.
- Creio que minha decisão já esteja tomada – Edson empunhou a arma, apontando para o médico e sua esposa. Rebeca agarrou o braço do marido com força, seu coração apertado em apreensão.
- Por favor, Edson – Scott falou com muita calma – Não vá fazer nada que possa se arrepender.
- Não se preocupe, doutor. Sei o que estou fazendo.
- Tem certeza? – Scott fitou os olhos de Edson – Não precisa ser assim.
- Sinto muito. Mas inclusive já falei com o dono do circo e prometi que se tudo desse certo, dentre em breve eu lhe ofereceria uma grande atração que poderia interessá-lo. – Edson levantou um pouco mais a espingarda, apontando para os dois. – Para trás!
Scott recuou, olhando para a arma e mantendo Rebeca junto a si. Não havia como reagir com um braço ferido e o outro homem armado. Edson andou um pouco, passando pelo caixote.
- Abram essa porta e entrem – ele falou indicando a porta da despensa.
Rebeca se virou um pouco, quando chegaram à porta, alcançou o ferrolho e o abriu.
- Edson, pense bem... – Scott falou.
- Pensei o bastante. Entrem!
Rebeca foi a primeira a entrar, sem, contudo, largar do marido que também foi para dentro da copa dando passos para trás até os fundos do aposento. Edson fechou a porta e trancou o ferrolho, os prendendo.
- Peço desculpas mais uma vez, doutor. Mais eu preciso fazer isso.
- Edson! – Scott falou batendo na porta – Pense na sua mulher.
- Você não entende, não é? É por ela que estou fazendo isso. Você sabe o que é viver da terra, com uma colheita ruim atrás da outra? Você sabe... – Edson se virou como se alguém pudesse ver sua amargura – Ver seu sogro pagar um aborto para sua filha, por que acha ela jovem demais para engravidar de um pobre como eu?
- Se o problema for dinheiro, eu posso ajudar – a voz de Scott soou abafada de dentro da despensa, sendo difícil de saber se estava sendo sincero ou não.
- Agradeço sua solidariedade, mas estou de olho em um negócio muito melhor que filantropia – Edson olhou para o caixote, estudando uma maneira de pegá-lo. A criatura dentro dela se limitava a dar rosnados baixos. Edson pôs a arma em cima, pegou nas voltas da corda que fixava a tampa e equilibrando a arma ele levantou. Enquanto isso, Scott continuou batendo na porta.
- Edson, me escute – Scott pensava em algo que o pudesse convencer – Isso pode ter algum valor morto. Com certeza, laboratórios em todo o mundo se interessariam nisso, nem que seja apenas o corpo – ele apelava. Porém, mesmo se Edson acreditasse que os laboratórios e instituições científicas pagariam dinheiro pelo espécime, o homem não os ouviria mais. Edson tinha acabado de sair da cozinha carregando o caixote com a preciosa e letal carga, deixando os gritos do médico e suas insistentes batidas na porta da despensa para trás.
Chegando à sua caminhonete, herdada do sogro, Edson deixou o caixote no chão e abriu o carro para ligá-lo. Ele tinha pensado em deixar a criatura atrás, na carroçaria, mas temia que o caixote caísse na estrada ou acabasse se abrindo com o sacolejo do veículo, já que não tinha como mantê-lo fixo. Então, resolveu deixá-lo na cabine com ele.
Edson sentou no banco do motorista, pôs a espingarda no console do pára-brisa e olhou para a criatura, pensando no que Scott tinha dito. “Isso não é uma criança. Não é nada além de uma perigosa monstruosidade.” Sendo monstruosidade ou não, ele iria lhe ajudar a ganhar bastante dinheiro. E Edson não poderia esperar mais nenhum minuto; precisava sair logo, enquanto a criatura estava cativa e calma. Ele não sabia o quanto tempo isso iria durar.
Edson olhou com mais atenção para a aberração. Estaria esperando o momento certo para um bote? Provavelmente não. Apesar de tudo era apenas um bebê. Um filhote que segue instintos e não planeja ataques surpresas.
Ele apertou de leve o acelerador e a caminhonete saiu do sítio pela estrada, iluminando o caminho com seus faróis que pareciam olhos flamejantes de uma fera.
Apertado com a mulher na pequena despensa, entre caixas e latas de produtos alimentícios organizados em pequenas prateleiras e botijões de gás, Scott andava de um lado a outro no cômodo e voltava a bater na porta.
- Por favor! Alguém! Edson! – ele chamava.
- Não adianta – disse Rebeca, no canto – Ninguém vai ouvir, e Edson deve já ter ido.
- Precisamos sair daqui e alcançá-lo antes que chegue ao circo. Não gosto nem de imaginar o que pode acontecer se aquilo se soltar.
- Você acha que ainda pode alcançá-lo?
- Preciso tentar – Scott se preparou e se jogou com o ombro contra a porta que estremeceu, mas não se abriu. O médico voltou para trás, fazendo caretas de dor.
- Cuidado! Você não está em condições de arrobar portas.
- Tem outra idéia? – Scott falou – Espere... – ele apurou a audição – Está ouvindo?
- O quê?
- Passos.
Os dois ficaram quietos. Inicialmente Rebeca não ouviu nada digno de atenção, até que percebeu que realmente havia sons de passos arrastados, se aproximando muito lentamente. Eles ouviram alguém encostar-se à porta e o ferrolho foi aberto. Se Rebeca não tivesse sido rápida, a pessoa que tinha destrancado a porta tinha caído no chão logo que ela tivesse aberto.
- Amanda! – Rebeca falou, segurando a esposa de Edson.
Scott se aproximou.
- Ela não deveria ter se esforçado caminhando até aqui.
- Bem, pelo menos ela nos libertou – disse Rebeca, dando tapinhas suaves no rosto de Amanda para acordá-la. Se levantar e caminhar até a cozinha tinha exaurido forças da delicada mulher.
- Sim. – Scott falou saindo da despensa – Pode ajudá-la a ir para o quarto?
- Aonde você vai?
- Vou ver se encontro o Edson e o convenço a matar a criatura.
- Mas Scott, ele pode está longe e você não deve está em condições de dirigir com esse braço ferido.
- Sei. Mas não posso simplesmente ficar aqui parado. Eu tenho responsabilidades quanto a isso tudo. Fique e cuide da Amanda e... Scott parou um pouco antes de sair – Eu amo você – ele se virou e correu pelo corredor, sem dar chance de Rebeca responder.
O médico chegou ao carro fora. Ele entrou, deu a partida e o veículo girou em meio cavalo-de-pau no gramado em frente à casa, passando pelo portão e prosseguindo pela estrada de terra batida.
A toalha que tinha colocado sobre o ferimento estava praticamente pendurada em seu braço, enquanto Scott segurava o volante. O carro sacolejava devido às imperfeições da estrada, o que só piorava as pontadas de dor, mas ele continuava firme com o pé no acelerador, indo na única direção que Edson devia ter tomado. Pelo outro lado da estrada se chegava à rodovia de onde ele veio com Rebeca, e Scott tinha certeza absoluta de que não havia nenhum circo por aquela parte.
Os faróis do veículo dissipavam o véu de escuridão, revelando a estrada à frente que parecia infinita. Scott não sabia a distância que já tinha percorrido e tinha perdido até mesmo a noção de quanto tempo estava dirigindo. Ele estava começando a pensar que não conseguiria alcançar Edson quando percebe com sua visão periférica luzes vermelhas no final de um declive, em um trecho da estrada que passava por um campo, certamente o pasto de algum fazendeiro. Scott deu a ré e confirmou sua primeira impressão. Ele tinha alcançado Edson, mas não da maneira que pretendia.
O médico saiu da estrada, entrando no campo e deixou o carro virado para o local, para iluminar. Ele saiu do veículo e o deixou ligado. Pela cor e pelo estado de conservação, a caminhonete ali parada solitária em meio ao pasto só poderia ser a de Edson e calafrios percorriam o corpo de Scott somente em pensar no que poderia ter acontecido.
Por um momento, o médico desejou inutilmente que Edson tenha parado para apenas para se aliviar, ou que o carro nem fosse dele. Se aproximando mais, Scott encontrou a porta da caminhonete aberta e vendo os rastros de sangue no solo, percebeu que seus pensamentos positivos eram em vão.
Um arrepio percorreu sua espinha e sua vontade era de dar meia volta e ir embora o mais rápido possível, mas algo o fazia ficar. Scott olhou para dentro do veículo com cuidado. Estava tudo silencioso e quieto. Ele subiu e encontrou o caixote aberto no chão da cabine e a corda rompida. A criatura tinha conseguido rompê-la e se soltar. O banco estava imundo de sangue. Pelo que tudo indicava, quando a aberração se soltou, Edson desviou perdendo o controle do carro e tentou fugir mesmo com os ferimentos provocados pelas mordidas e garras. Scott pegou a espingarda no pára-brisa e desceu. Não era bom com armas, mas podia apontar e apertar o gatilho, e esperava que isso fosse o suficiente. Ele andou com cuidado, seguindo os rastros de sangue. Esperava a criatura saltar de algum lugar, mas nada aconteceu.
No final do rastro, pouco além do limiar da área iluminada pelos faróis do carro, Scott encontrou o que tinha sobrado de Edson. O pouco que via dos membros decepados e entranhas rasgadas que não estava escondido no mato, na escuridão, era o bastante para fazer seu estômago embrulhar. A criatura teve tempo de brincar com o cadáver do pai depois que o matou. Mas onde ela estava agora?
Scott olhou em volta e esperou por alguma manifestação da aberração. Apenas os sons de grilo e o farfalhar das folhas ao vento, além do ronco do motor dos dois carros se fazia ouvir. Definitivamente a criatura não estava ali, do contrário o teria atacado. Onde ela estaria?
Havia muitas possibilidades de lugares onde uma besta recém-nascida poderia está naquela noite. A região era cheia de fazendas e matas, com gado e pequenos animais silvestres com os quais ela poderia se alimentar, mas Scott insistiu em um pensamento: “Se eu fosse um bebê mutante, onde eu estaria?” ele se esforçou para imaginar “Onde qualquer filhote gostaria de está?” E a idéia que lhe ocorreu o atingiu feito um golpe.
- A mãe! – Scott quase falou em voz alta – Ai, Meu Deus! Rebeca!
* * *
Depois que ajudou Amanda a voltar para o quarto e a acomodara na cama, Rebeca foi à cozinha. Por para fora os restos do cachorro e limpar um pouco o sangue no chão tinha sido um grande desafio, do qual ela fazia questão de esquecer. Em seguia, mexendo por entre as panelas no armário e produtos na despensa, pensou em preparar algo para sua anfitriã. Embora não se sentisse à vontade para mexer em coisas alheias, ainda mais de pessoas que ela não conhecia, Rebeca queria fazer algo para a mulher de Edson. Um leite, um chá, talvez uma sopa. Amanda precisava de ajuda e Rebeca não queria ficar de braços cruzados, enquanto Scott estava fora.
Ela juntou o resto de cacos de vidro e limpou o armário. Realmente aquela tinha sido uma noite estranha. Nem em seus pesadelos Rebeca teria imaginado passar por o que tinha passado, ou pensava enquanto se arrumava em sua casa para ir ao restaurante – o que parece ter sido há um ano – que a comemoração dos seus quinze anos de casamento iria ser tão inesquecível. E o pior de tudo é que a noite ainda não havia acabado e só o que ela queria era que Scott alcançasse Edson e resolvesse o assunto uma vez por todas.
Ela colocou uma panela sobre a mesa e abriu a geladeira para conferir o que tinha para preparar algo para Amanda comer. Foi quando escutou o primeiro barulho que vinha do lado de fora. Talvez Rebeca ainda estivesse bastante abalada e pensasse ter ouvido coisas. O segundo barulho, um pouco mais nítido, a fez perceber que era real. Rebeca pegou uma frigideira e a empunhando como uma arma de defesa caminhou pelo corredor. Nada lhe tirava da cabeça que não estaria sozinha com Amanda. Mas o que poderia ser? Edson tinha saído com a criatura e Scott tinha ido atrás dele. Seria um animal? Um bandido? Muitas possibilidades e nem todas lhe eram agradáveis. Passo após passo ela atravessou o corredor, e olhou para Amanda no quarto. A mulher estava dormindo tranquilamente.
Na sala, Rebeca abriu a parte de cima da porta, encontrando tudo calmo do lado de fora.
- Scott? – ela chamou.
Ninguém a respondeu de volta. Claro que o médico não havia chegado, afinal não havia nenhum carro ali. Se bem que ele desejava muito que ele voltasse logo. Teria encontrado Edson? Ela se perguntava e esperava que sim.
Rebeca abriu a porta de baixo e saiu pela área em direção ao portão. Em volta, as árvores e cercas estavam cobertas pela noite, pouco visíveis com a luz da casa. Ela não tinha chegado ao portão para ver se Scott estava chegando quando ouviu o rosnado atrás de si. Apesar de o som não ser exatamente igual à de nenhum animal, Rebeca o reconheceu muito bem.
Ela congelou onde estava, e se virando devagar, a mão firme no cabo de madeira da frigideira, viu o que era. Estava saindo das sombras da garagem. Os olhos negros tinham um brilho perverso sob a luz do alpendre. A criatura se movia lentamente, observando sua presa.
Uma explosão de pânico invadiu Rebeca e sem que pudesse controlar, deu um grito que rompeu a calmaria da noite. Com isso, a aberração disparou correndo horrivelmente em sua direção. Rebeca quase que instintivamente a atingiu com a frigideira, assim que ela saltou, e com uma força que desconhecia fez com que a criatura caísse há mais de dois metros de distância, se debatendo. A pequena besta não reagia bem com pancadas, Rebeca percebeu.
Ela olhou além para a porta. Não teria tempo de correr para dentro da casa antes que a criatura se recuperasse e a alcançasse. Mas não tinha outra opção. A frigideira não seria suficiente se ela fosse atacada mais vezes pela criatura. Rebeca se preparava para correr, com ou sem possibilidades de chegar, quando o carro entrou pelo portão acelerado e passou por cima do que era para ser um bebê, logo que ele se recuperava, bem em frente à Rebeca.
- Scott! – ela falou com um misto de alívio e surpresa.
O médico saiu do carro com a espingarda e apontou para a criatura com um braço preso sob o pneu. Ela se debatia e guinchava arranhando a terra e a roda com o braço que não estava preso. Rebeca deu a volta no carro e correu para ele.
- Cuidado – disse Scott, indicando para ela não se aproximar muito. Ele apertou o gatilho e a bala atingiu a terra, levantando uma pequena nuvem de poeira, mas sem atingir a criatura – Droga! – ele disparou e errou novamente. O braço dolorido não ajudava muito.
Scott apertou o gatilho mais uma vez e além de um pequeno estampido, a arma não disparou mais nada.
- Essa não! Sem balas – disse e percebeu que não era o seu único problema. A criatura estava, pouco a pouco, conseguindo arrastar seu braço de debaixo da roda.
- Rebeca, pegue um isqueiro ou um fósforo. Rápido! – ele disse.
- Como?
- Um isqueiro ou uma caixa de fósforos. Agora.
Sem discutir, a mulher correu para casa e Scott foi à garagem.
- Gasolina... Gasolina – ele procurou em meios às coisas de Edson, e mesmo na precária iluminação ele encontrou um galão com um líquido pela metade. Ele levou a boca do recipiente ao nariz para se certificar. O cheiro era inconfundível.
Ele voltou e viu que a mulher também já tinha chegado.
- Aqui está – ela o entregou uma caixa de fósforos.
Scott derramou a gasolina em cima da criatura com cuidado para não molhar muito o pneu.
- Saia com o carro, assim que eu riscar o fósforo – disse Scott.
- Mas você...
- Vou ficar bem, agora entre.
Rebeca foi para dentro do carro e sentou no banco do motorista. Os dois se entreolharam. Scott respirou fundo e riscou um fósforo, o jogando na aberração.
- Agora!
O carro deu a ré, logo que as labaredas apareceram em um clarão. Scott saiu do caminho, deixando a aberração queimar como uma tocha viva correndo pela área em frente à casa, chamuscando a grama e criando uma cortina de fumaça de odor pútrido. Os guinchos e os berros horríveis de dor foram sumindo quando a criatura parou, agonizando com as chamas.
Rebeca saiu do carro e correu até o marido.
- E Edson? – ela perguntou, com a cabeça encostada ao ombro de Scott, sem olhar para a aberração que queimava.
- Ele... – o médico hesitou – Ele não conseguiu – disse, com tristeza.
Rebeca se abraçou mais fortemente ao marido, se sentindo com mais frio de repente, e ousou virar o olhar por um momento para contemplar o fogo devorar a pequena besta e o vento espalhar suas cinzas pela noite, que era capaz de esconder muitas coisas, até as mais obscuras.