Criaturas da Noite

Criaturas da noite

Jorge Linhaça

Ao cair da noite, as trevas sobrepõem-se à luz e a razão dá espaço aos mais primitivos instintos que habitam no homem.

Como que tomados pelo lado negro que habita em cada coração, os temperamentos das criaturas da noite se modificam, todos os sentimentos afloram com maior intensidade.

Pode ser culpa dos corpos exaustos, das mentes cansadas, das agruras do dia a dia, mas o certo é que a noite, com seu negrume, destila o medo, a ira, a lascívia e os vícios. É no ceio da noite que se multiplicam as tragédias, onde o mal se reúne à indiferença para ceifar vidas, seja rápida ou demoradamente.

A noite, que pode inspirar os poetas, é a mesma noite que tira a lucidez de muitos, é na calada da noite que o mal se esconde e se apresenta com maior impetuosidade angariando almas que o inferno aguarda com ansiedade.

Cai a noite sobre as ruas da cidade, qual animais de hábitos noturnos, a fauna humana libera seus representantes: Assassinos, viciados, criminosos, prostitutas, degenerados e também, os inocentes úteis.

“À noite todos os gatos são pardos” diz o adágio popular. Pura verdade, não importa o quão colorido possa ser o individuo, ao cair da noite, somente os tons de cinza colorem suas almas.

Almas angustiadas, almas perdidas, almas iradas, almas em decomposição flagrante se misturam nos antros, nas ruas, nas alcovas, nos bares, nos becos e nos pontos.

O dinheiro de sangue troca de mãos rapidamente, sem que muitos se deem conta disso. O vício de uns alimenta o crime de outros e o palco está armado para mais algumas tragédias cotidianas.

No silêncio da noite as sirenes preenchem as ruas, ambulâncias voam desesperadas buscando chegar a tempo para salvar vidas. Nem sempre é possível. A noite cobra o seu preço e a morte não erra de endereço.

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Sobre uma poça de sangue, um homem jovem, de seus vinte e poucos anos, tenta manter-se agarrado a um fio de vida ainda persistente, seu coração reluta em cessar de bater e sua mente busca nas lembranças alguma força para resistir ao fim.

Saíra da faculdade, como todos os dias, um metrô e um ônibus para voltar para casa na periferia da cidade. Tudo como fazia diariamente.

Desceu do ônibus e iniciou a parte final do percurso à pé, 10, no máximo 15 minutos o separavam do merecido descanso. Mas hoje seria diferente.

Sexta feira, a noite onde chapa esquenta, onde muitos se entregam à atração das baladas, dos bares, das festinhas... Noite em que o crime come solto.

Voltava para casa quando foi pego num fogo cruzado, o impacto do primeiro projétil atingiu seu braço, fazendo-o derrubar a mochila que ele carregava, segura pelas alças. O segundo projétil atravessou seu corpo, arremessando-o ao chão. Demorou alguns instantes para dar-se conta do que estava acontecendo, até que sentiu o liquido quente e viscoso espalhar-se pelo corpo. O barulho dos tiros ensurdecia. A cada estampido seu coração saltava no peito como se fosse rompê-lo.

Silêncio, um silêncio inquietante se fez sentir nos momentos seguintes. Da mesma forma como os tiros haviam se iniciado, agora cessavam de forma abrupta. Ouviu passos, curiosos vieram ao seu encontro, um deles grita:

Está vivo, chama a ambulância, rápido!

Suas lembranças viajam de encontro à mulher e ao filho que o aguardam em casa, há pouco que está casado, o menino tem pouco mais de dois anos. A vida não tem sido fácil, trabalho, faculdade, alguns bicos no fim de semana para complementar a renda familiar.

Entre tantas ocupações, o tempo partilhado com a família parece, agora, tão ínfimo, tão mal aproveitado. Precisava mudar, mas era justamente para isso que estava fazendo faculdade, para ter um emprego melhor, trabalhar menos e ter mais tempo para a família.

E agora? O que seria da mulher e do filho se não resistisse?

Era isso que o mantinha vivo, nada mais.

O som das sirenes ecoa ao longe e vai aproximando-se gradativamente:

Será que chegarão a tempo? Pensa ele.

O som torna-se mais próximo, um certo alívio invade sua alma, acalmando seu espírito.

À sua volta curiosos filmam sua agonia com aparelhos celulares, tiram fotos, como se ele fosse uma curiosidade qualquer, um mórbido ponto turístico temporário. Iria parar nas páginas do Facebook, do Instagran, no Youtube ou sabe-se mais lá aonde. Sua privacidade invadida, sua agonia usada para conseguir a popularidade instantânea de alguns clicks.

É aqui! Grita alguém na pequena multidão.

A ambulância chegou, os paramédicos correm para pegar os equipamentos necessários.

- Qual o seu nome? Pergunta um deles.

- José, balbucia o jovem, José da Silva.

- Idade

_ 25 anos

- Calma amigo, tudo vai dar certo, deixa com a gente.

Os primeiros socorros são feitos ali mesmo, a prancha é colocada ao seu lado, o respirador cobre sua boca e seu nariz...aos poucos as imagens se tornam turvas, tudo vai escurecendo...ouve alguém gritar lá longe...ele está fibrilando...

E só. Nada mais ouve. Apenas o silêncio pleno o envolve.

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À sua volta os paramédicos lutam para manter sua vida, o desfibrilador é ligado, uma carga, duas, três... e o coração volta a bater...

A ambulância parte com o moribundo rumo ao hospital mais próximo.

Sua sirene corta a noite e afasta-se do local da tragédia.

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Pi...pi...pi...pi...pi...pi...

O ruído agudo e intermitente parece que vai destruir seus tímpanos, começou fraco, bem longínquo, agora parece quase que a sirene da fábrica onde trabalha. Luta para abrir os olhos, um cheiro estranho invade suas narinas, sua boca está obstruída por algo que não consegue definir.

Finalmente consegue abrir os olhos, a claridade o cega por instantes, uma luz forte o incomoda, volta a fechar e abrir os olhos várias vezes buscando acostumar-se com a claridade. Aos poucos vai divisando alguns vultos, reconhece a sua esposa, sua amada esposa, olhos fundos e o rosto banhado em lágrimas. Está vivo.

A morte não tinha o seu endereço nesta noite.

( continua)