O fanal esverdeado - DTRL 14
Nas proximidades do rio, onde os olhos dos moradores não enxergavam a grande casa, as árvores mantinham o aspecto velho e mal cuidado, portões de ferro e uma inscrição logo acima, Agua doce, era em bronze guarnecida em delicadas tiras e contornos, ao longe se via a palavra água, e o restante já era encoberto pelas folhagens. O aspecto sutil e acolhedor da propriedade afugentavam os mistérios dissimulados pela população, uma ridicularização de tamanha e belíssima fazenda a ser pauta de alcoviteiros do município.
Os raios de sol e o extenso planalto onde estava era contornado pelo rio motambu, um grande e largo rio improprio para o banho, a correnteza era forte e acreditavam em seres medonhos que habitavam os arredores. Fiz em reverência ao meu amigo Nestor, proprietário, a gentileza de conhecer as terras a cavalo.
- Veja Ulisses, lá onde os pássaros voam, existe o famoso corpo seco.
- De fato Nestor, estou um pouco impressionado a tamanha inocência de tal população em crer em mitos fantasiosos, quiçá, continuarem dissimulando tal anomalia inconveniente.
- Meu caro, estamos no interior, as pessoas ainda seguem as mentiras de nossos antepassados.
- Teus pais também contavam-lhe tais peripécias?
- Não peripécias, mas fatos.
- Um dia talvez eu creia em todos esses mitos, até então posso ser morto com o fogo de meu cavalo, ou mula talvez.
- Ulisses, onde estamos não significa que tais coisas aconteceram, todavia, o mito procede de forma conveniente a nós da fazenda, nunca vendemos tantos queijos e doces como em minha geração, um pouco de mentira faz bem ao bolso.
Eu o encarei com desdém e continuamos a cavalgar pela planície, ate que beiramos novamente o motambu, olhei para o rio e vi que a beleza de tal era formidável, limpo e extenso, a força era visível, a torrente de água acelerava em tamanha dimensão que até meus olhos ficaram maravilhados.
- Tome cuidado, não banhes aqui. Jamais.
- Por quê? – Disse gentilmente
- A correnteza é tão forte que ninguém na região que se aventurou a pular, voltou. Além da força das águas, existem redemoinhos que puxam para o fundo.
Ao fim do passeio, minhas pernas estavam cansadas, necessitei de um banho longo em uma grande louça que a casa oferecia, a banheira era grande e a água era quente. Fiquei por volta de uma hora, li parte de um exemplar que ganhara de Nestor, e fumei alguns cigarros. Dai a pouco, vi que na soleira da porta dois pés se aprumaram, e bateram na porta.
- Ulisses?
- Sim!
- Que acha de bebermos um pouco de conhaque em um casebre do centro? É um casebre apelidado de bar, é humilde e há algumas pessoas que poderia conhecer, assim como mulheres e ouvir um pouco de música.
- Acho perfeito! Ficarei pronto em instantes.
No carro com meu amigo, conversamos até que chegássemos em tal lugar, o sonido que vinha das paredes indicava que o estilo desempenhado pela banda era o sertanejo e me senti um pouco menos desconfiado, quem poderia ouvir tal estilo não deveria ter o coração tão cheio de ganancia e excentricidade.
Ao passar a porta com tramelas, vi um balcão com alguns homens em pé, algumas moças e uma dupla a cantar com seus instrumentos de corda, aferi que era certamente notado por todos no local, dei de ombros e pedi uma cerveja. Assentamos e começamos a conversar sobre propostas de negócios, pessoas do passado e a ascensão do asfalto no município.
Após um período, chegaram pessoas e percebi que Nestor foi conversar com amigos e conhecidos em outras mesas, fiquei próximo a uma garota chamada Alice, e outros dois rapazes de estimo de meu amigo.
- Então não viu ainda a Iara? – A moça interpelou enquanto falávamos sobre o asfalto recém chegado.
- Mais desses mitos contados por aqui? – Ridicularizei em tom sereno.
- É real, ela existe. – Disse o segundo e o terceiro assentiu com a cabeça.
- Onde posso encontra-la? – Perguntou ainda com um pouco de ironia.
- Ela vive no motambu, se fores às madrugadas a encontrará facilmente, mas não seja imbecil de o fazer, ela não poupa qualquer que seja, apenas seu protegido.
O tom da jovem foi sério e seus olhos arregalaram sutilmente, o temor parecia similar aos cidadãos e a maneira com que retratavam sua performance e feição eram assustadores. Os olhos cândidos castanhos, a pele morena e os cabelos esverdeados se assemelhavam a uma deusa e ao mesmo tempo a medusa, uma bruxa dos fluviais e a intenção de morte em teu olhar, diziam ainda que tal monstro apresentava como uma jovem belíssima na bruma, e que seus cabelos na escuridão cintilavam, e o canto era dócil e excitante.
As passagens segundo os dois rapazes e a moça me perturbaram com o decorrer da noite, ao cair da madrugada, voltamos para a fazenda e meu amigo disse uma surpresa. Meu pensamento era imprescindivelmente sobre a espécie de sereia do rio. Em meu delírio, podia ouvir teu canto.
- Pronto, Ulisses, tenho aqui um vinho do século XIX. Se não acreditas, o mostrarei, acompanhe-me até o escritório.
O vinho era fabuloso, sua intensidade me deixou relaxado e Nestor espreitava a janela o tempo todo. Ao fim da garrafa decidi subir até meu aposento e despedi de meu anfitrião. Abri a janela para sentir um pouco do frescor da brisa, e ao longe próximo ao rio vi uma breve luz, e próximo a casa um vulto a correr em direção ao brilho sinistro.
Em um passo relutante deitei e pensei por cerca de quinze minutos intermináveis, ao reavaliar minhas intenções e garantias, conclui que de nada perderia se investigasse, eu mesmo as dependências do motambu, o espectro correu a galopes e a breve luz se dispersou na bruma, mas em meu peito a euforia de pensamentos catapultavam a milhões.
Abri a porta com cuidado, desci as escadas e o silencio trazia a quietude familiar da casa, coloquei meus pés sobre a grama e comecei a correr em busca de alguma alma ou monstro que poderia ter por ali. Não tão longe o brilho deixava de ser fosco e uma breve cantiga podia ser ouvida, entendi que talvez fosse a Iara, e os semblantes dos jovens me vieram a cabeça em tormento. Grande parte de lendas fizeram sentido, porém, não havia qualquer sentido de provas.
Quando aproximei juntamente ao raio de luz, me surpreendi, Nestor tinha uma lamparina nas mãos e olhos rígidos olhavam para mim com raiva e severidade.
- Que fazes aqui Ulisses?
- Vi um facho de luz, como um fanal ao longe e tive de verificar.
- Devia voltar, não percebes o quanto é perigoso o rio.
- Sim, mas se é o que fazes ai?
- Lembrei que havia perdido meu cachimbo de carvalho em prata e não poderia deixar para amanha para procurar meu artefato tão querido. Não há mais nada o que fazer, já o encontrei, rumemos para a casa.
Minha atenção para o caso era de se duvidar, segundo os companheiros que deixaram a possibilidade ao ar, a minha desconfiança ultrapassava ainda a confiança de meu amigo, duvidei e voltei com insatisfação para as acomodações. Ao me despedir mais uma vez, cai no sono e acordei no outro dia com um susto, porem conformado com meu delírio e manifestação da indução de palavras e mitos dos jovens no bar.
No café percebi que as unhas de Nestor cintilavam, e ignorei o fato até o momento, me convidou para passear, mas blefei com a desculpa da indisposição, e ao descansar levemente na rede após sua saída, veio então o pensamento da trajetória do dia anterior, voltei para o centro da casa e subi as escadas, e percebi que as marcas de seus sapatos tinham escamas esmagadas, e em seu lavatório alguns fios esverdeados permaneciam estirados. Em um grito de horror constatei que meu amigo era o protegido.
- Marcos Leite
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