O massacre dos urubus
O massacre dos urubus
Jorge Linhaça
Os urubus faziam parte da paisagem e ninguém parecia importar-se realmente com eles.
Sobrevoavam o lixão da cidade e volta e meia desciam ali para devorar uma ou outra carcaça jogada em meio aos restos de comida e outros detritos.
Em meio aos urubus, adultos e crianças famintas recolhiam restos de comida ou coisas que pudessem ser recicladas e lhes proporcionar alguns trocados.
A cena era desconfortável aos olhares mais sensíveis, mas terrivelmente real e cotidiana para aqueles que precisavam disputar a sobrevivência com os urubus.
Um dia uma lei foi aprovada e o lixão deixou de ser o local de despejo dos resíduos da cidade.
A paupérrima população que dali sobrevivia sofreu todo o impacto da mudança, principalmente aqueles que haviam instalado seus barracos por ali mesmo.
O horror da fome, antes pressentido e sentido em doses suportáveis, deu lugar ao desespero de não haver mais o que garimpar para comer, nenhum caminhão chegava, os poucos trocados que ainda conseguiam com os recicláveis foram rareando. O fantasma da fome, o olhar desesperado de adultos e crianças, já com os olhos fundos pelo flagelo da falta de alimento, deu lugar ao desespero crônico, à insanidade coletiva, ao puro e simples instinto de sobrevivência, desprovido de razão ou consciência.
Apenas a fome ditava as regras.
Qual um bando de zumbis enfurecidos, os outrora humanos lançaram-se como leões sobre um bando de urubus que devorava a carcaça de um dos cachorros que havia sucumbido à fome.
Paus, pedras, tudo que pudesse ser arremessado foi usado para atacar as aves... Aquelas que não conseguiram voar foram devoradas em meio ao frenesi canibalesco que acometeu a multidão. Alguns urubus feridos ainda procuraram resistir com suas garras e bicos afiados, causando ferimentos aos seus agressores.
O sangue das aves e dos famintos misturava-se pelo chão fétido e úmido.
Os rostos deformados pela loucura coletiva, agora estavam manchados pelo sangue das aves abatidas e devoradas, seus olhos contemplavam o vazio... O mesmo vazio da fome que já tomara conta de seu corpo e agora consumia suas próprias almas.