O CERVO DE FONTEINEBLEAU
 
 
 
Estava-se em meados do mês de novembro de 1314. As mortes de Clemente V e Guilherme de Nogaret, dado o constrangimento que trouxeram, por causa do clima de mistério que as envolviam, ainda não haviam sido esquecidas. A maldição lançada por Tiago de Molay não saia da cabeça do rei e de alguns elementos de sua corte. Um dos mais preocupados com esse assunto era o camareiro-mor do rei, o conde Hugues de Bouville, homem de fidelidade canina, que servia a família do rei desde os tempos do santo rei Luís, avô de Filipe, o Belo.
– Vossa Majestade não deveria sair para a caça hoje. As primeiras neves começaram a cair e a floresta se torna perigosa para cavalgar – disse ele.
– Ah! meu caro Senhor Bouville. Agradeço vossa preocupação. Mas nada há de me tirar o prazer da caça. Bem sabeis que este foi um ano difícil. Só tivemos problemas e mais problemas. Mas agora que os assuntos do reino parecem estar entrando numa fase mais propícia, creio que estou a merecer esta trégua de espírito. Não concordais? – perguntou o rei, com uma alegre disposição que não era de seu feitio.
– Decerto, Majestade – concordou Hugo de Bouville. – Posso imaginar a vossa preocupação com todos os problemas que tivestes neste ano. Esse assunto das vossas noras, esse processo dos Templários, a morte do papa e de Messier Nogaret...
A sombra que passou pelo rosto do rei á menção desses assuntos não escapou aos olhos sempre astutos de Bouville.
– Vejo que esses assuntos ainda vos preocupam, Majestade – disse Bouville. – Em que pensais? Ainda estais preocupados com a morte de Messier Nogaret e do papa? Achais que tem algo a ver com a maldição que Tiago de Molay lançou sobre vós?
– Eu não seria digno de ser o rei da França se acreditasse em tais superstições – meu caro Messier Bouville. – Não temo os demônios, mas não posso descurar de quem os invoca. Não tenho medo de feitiços, mas sei que os feiticeiros podem causar danos. Não são as forças do inferno que causam dano ás pessoas, mas sim as pessoas que invocam os demônios para poder por a culpa neles de suas fraquezas e maldades. Nós, meu caro Bouville – disse o rei, com um olhar distante – nós somos o único e verdadeiro mal neste mundo.
– Credes então que o Santo Padre Clemente e Messier Nogaret não morreram de morte natural, nem foram atingidos por alguma força sobrenatural, invocada pelos Templários, mas sim, por alguma ação criminosa a mando deles? – perguntou Bouville.
– O que creio, Messier Bouville, é que Deus tem suas formas de fazer as coisas e nem sempre elas combinam com as nossas – disse o rei, com olhos distantes, como se tivesse perdido em suas memórias. Eu pensei estar realizando a obra de Deus combatendo a podridão da Igreja, mas não sei se realmente agi corretamente...
Bouville viu nessa última frase do rei uma ponta de arrependimento, quiçá de dúvida, por alguma decisão equivocada que ele tivesse tomado em relação a alguns dos assuntos que haviam sido levantados na conversa.
– Tudo que Vossa Majestade fez foi no interesse do vosso reino e do vosso povo. Nada tendes do que se arrepender, Majestade – disse Bouville.
O rei se voltou para o camareiro como se este tivesse falado uma bobagem.
– Que dizeis, messier Bouville? Arrependido de que? Ah! sim. Arrependo-me de não ter feito algumas coisas, como por exemplo, não ter invadido ainda aquele ninho de serpentes que está reunido em Lyon para eleger o novo papa. Já faz mais de seis meses que Clemente V morreu e até agora não temos um novo pontífice – disse Filipe, como se tivesse voltado ao próprio corpo.
– Talvez devesseis fazer valer a vossa vontade de uma forma mais explícita, Majestade. Como fizestes por ocasião da eleição do Arcebispo Bertrand du Goth – disse Bouville, satisfeito pelo fato de o rei ter voltado a um assunto no qual ele podia dar palpites.
– Um rei não deve interferir pessoalmente nos assuntos eclesiásticos, por mais interesse que tenha neles – disse Filipe. – Todavia – continuou, voltando á postura meditativa que tinha assumido no momento anterior – os nossos cardeais já deviam ter resolvido esse impasse, pois sabem exatamente o que devem fazer.
– A ação que empreendentes para evitar a eleição do cardeal Duéze já deveria ter feito os bispos compreenderem o que realmente desejais desse conclave, não é, Majestade? – perguntou Bouville.
Ele estava se referindo á invasão que Bertrand Du Got e Guilherme de Budos, sobrinhos do finado Papa Clemente V, á testa de uma tropa de soldados gascões, fizeram ao convento onde se realizava o conclave para a eleição do novo papa. Essa invasão tinha sido ordenada pelo próprio Filipe, porque ele não queria a eleição do cardeal Tiago Duéze, bispo de Avignon e ex- secretário de Clemente V, pois este era apoiado pela grande maioria dos cardeais italianos. O temor do rei era que Duéze
 
levasse de volta a sede do papado para Roma. A eleição desse bispo era dada como certa, por isso Filipe orquestrou essa intervenção, como sendo feita pelos inimigos do próprio cardeal, dentro da Igreja. O fato de ter sido comandada pelos sobrinhos do papa anterior fez com que o incidente fosse atribuído ás intrigas do próprio colegiado de cardeais, onde a disputa entre  os bispos franceses, italianos e alemães pela mitra papal era acirrada. Mas poucas pessoas duvidavam que Filipe, o Belo, estava por trás daquela desastrada ação, que fez com que a cristandande ficasse sem papa durante mais de dois anos.[1]

–  Esse é problema, meu caro Bouville. Esse é o problema – repetiu o rei. – Agora, sabe Deus quando esses patifes vão se entender para eleger o novo papa.
– Entendo a vossa preocupação, Majestade. Pois agora não há mais um conclave para eleger o papa, mas vários conclaves itinerantes, que podem eleger mais de um papa – disse Bouville.
– Pois é isso, Messier. Entendeste bem a questão. Mas deixemos esse assunto aborrecido por ora, pois agora o que quero mesmo é esquecer esse tudo e sair á caça do meu gamo – disse o rei.
 
Os campos estavam esbranquiçados e um vento frio soprava sobre as árvores, derrubando a fina camada de neve que se acumulara sobre seus galhos. O séquito do rei avançava, a galope, pelo espesso bosque de carvalhos que constituía a maioria das árvores da floresta de Point-Saint-Maxence. A sua frente a matilha de perdigueiros, com sua infernal algazarra de latidos, pressentindo a presença iminente da caça. A intuição dos cães estava no seu olfato. Eles sentiam o cheiro da caça mesmo antes dela surgir ante seus olhos.
De repente, a trompa do chefe dos caçadores se fez ouvir. Eles haviam localizado a manada de veados. Os cães foram soltos de suas coleiras e começaram a correr e a latir. O barulho dos cascos dos cavalos ressoou no ar frio da floresta. A caçada começara.
A arisca manada de veados ouvira o soar da corneta. Orelhas desconfiadas haviam sido erguidas para receber aquele som que eles já conheciam desde os primeiros momentos de suas vidas. Sabiam o que significava. Em seguida veio o latido dos cães. Então a debandada.
 
Normalmente, a caçada não tinha como mira o abate de muitos animais. Era mais um esporte do que uma atividade econômica. Não se procurava matar um veado para fins de alimentação. Por isso, os cães eram treinados para isolar um dos animais do rebanho e persegui-lo até que o bicho fosse confinado em um lugar de onde não pudesse fugir. Assim podia ser abatido pelo caçador sem muita dificuldade. Isso geralmente acontecia quando o animal se cansava, ou quando era encurralado num lugar sem saída.
Os cães haviam selecionado um belo exemplar. Era um animal altivo e forte, que parecia ser o líder do bando. Tinha uma linda e vistosa galhada, que parecia uma árvore descarnada pelo inverno. Uma coroa digna de um rei. Correndo, era uma bela massa negra que se deslocava célere em meio á paisagem branca. Um magnífico espetáculo. Os cães, latindo como loucos, se puseram a correr atrás daquele bólido, que ziguezagueava entre as árvores, como se conhecesse todas e soubesse exatamente onde estava cada uma delas. Um animal como aqueles jamais seria alcançado pelos cães. Mas, de repente, sem nenhuma explicação, ele parou e ficou á espera. Ergueu, orgulhosamente, a cabeça coroada com as magníficas galhadas, e olhou desafiadoramente para a matilha de cães que se aproximava. Resfolegando, soltando no ar pequenas nuvens brancas, que pareciam flocos de algodão, escavando o chão com os cascos, com a galhada pronta para agredir quem quer que invadisse seu espaço vital, ele parecia esperar.
  
Os cães chegaram e fizeram um círculo em volta dele. Latindo loucamente, ficaram cercando o animal, numa espécie de barreira que o deixava completamente sem meios de fuga. Atrás dele havia um alto barranco.
– Aí está ele, Majestade. É todo vosso – disse o chefe dos caçadores.
– Por Deus que é um belo animal – disse Filipe.
– Por certo é digno de um rei – disse o chefe dos caçadores.
O rei da França e o líder da manada estavam frente a frente. O rei sacou a sua espada curta. Pretendia fazer daquilo um combate particular. O gamo ergueu a vistosa galhada como um adversário que aceitava o desafio que lhe estava sendo feito.
O rei olhou para o gamo e o gamo olhou para o rei. Algo, em seu inconsciente, lhe deu a impressão que, na testa do veado havia uma cruz pintada em branco. Foi lá que ele mirou a ponta da sua espada.
– Então é assim, Tiago de Molay? – uma voz, vinda do fundo do seu inconsciente murmurou. Que seja, respondeu ele, sem se dar conta do inusitado daqueles pensamentos que, espontaneamente, lhe vinham á tona.
 – Que seja! ─ gritou. E arremeteu-se contra o gamo, espada em punho.
O animal percebeu o movimento e deu um salto para a direita. Em seguida saiu em desabalada carreira. Furou a fila de cavalos e cachorros que o emparedavam contra o barrranco e continuou correndo, célere, pelo campo esbranquiçado que se estendia á sua frente. Filipe, surpreso pelo movimento do animal, tentou refrear o cavalo. Mas este empinou e o jogou no chão. O veado escapou e ninguém pensou em ir atrás dele. Ao contrário, todos correram de encontro ao rei, para socorrê-lo. Só os cães, em resposta á própria natureza, saíram, ladrando como loucos, em perseguição ao animal. Mas este, logo que atingiu o topo de uma pequena colina, parou e ficou a espera, como se pretendesse enfrentar a matilha. Esta, a poucos metros do veado, parou e silenciou. Depois, um a um, os cães voltaram sobre seus passos, como se tudo aqulio não os interessasse mais. O gamo ergueu a galhada com majestática postura e resfolegou, bafejando no ar uma espessa nuvem de fumaça es
 
branquiçada. Depois, como uma mancha negra que se apaga com uma borracha, desapareceu em meio das árvores cobertas pela neve.    
 
A imobilidade do rei preocupava os membros do seu séquito. Foi Hugues de Bouville que logo percebeu a gravidade do acidente.
– Não toquem no rei – gritou ele. Arrumem uma maca para levá-lo até Clermont – disse ele.
 Uma dúzia de galhos de árvores foram cortados e amarrados com cordas para improvisar uma maca. Depois, atada a um cavalo, ele foi arrastado até Clermont, onde uma tropa de médicos, avisada de antemão por um cavaleiro que havia galopado na frente, estava prestes para examiná-lo. Logo se viu que não era um caso para sangrias nem para aplicação de beberragens. O rei, simplesmente havia fraturado a coluna cervical, bem abaixo do pescoço. Em conseqüência, perdera todos os movimentos do corpo, do pescoço para baixo.
Colocado num leito, foi levado para o castelo de Fontainebleau, onde nascera. Foi parte do seu último desejo. Sair da vida no mesmo lugar onde viera ao mundo.
Filipe, o Belo, ainda viveu dez dias após a queda de cavalo, na qual fraturou o pescoço. Teve tempo de ditar seu testamento e passar a coroa para seu filho mais velho, Luís, o Cabeçudo.
Morreu em 29 de novembro de 1314, pouco mais de nove  meses depois de Tiago de Molay e Godofredo de Charney serem queimados na fogueira. Coincidência ou não, o sinistro vaticínio que o grão-mestre tinha lançado sobre os três principais responsáveis pela destruição da Ordem do Templo havia sido cumprido. Em menos de um ano todos eles tinham sido chamados á presença de Deus, para responderem pelos seus atos.
As chamas que da fogueira que havia sido erguida na Ilha dos Judeus, oito meses antes, ainda estavam acesas[2]
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 NOTAS HISTÓRICAS
[1] Tiago Duéze (Jacques d'Euse), formado em medicina e direito na universidade de Montpellier, foi eleito papa em 1316,  depois de um complicado conclave realizado em Lions. O trono papal ficou vago durante dois anos, após a morte de Clemente V, pois os grupos políticos, compostos pelos cardeais que votavam na eleição do papa não conseguiam chegar a um acordo em torno de um nome. Os cardeais franceses, orientados por Filipe, o Belo, pretendiam continuar com um papa francês, submisso ao rei. Mas a oposição dos cardeais italianos e alemães pensava de outro modo e queriam aproveitar o momento para levar a corte papal de volta para Roma, com um papa livre da influência do rei francês. A morte de Filipe, o Belo, ocorrida em fins de 1314, precipitou o conflito, que se arrastou por dois longos anos. Foi somente com a subida ao trono da França do rei Filipe V, que os cardeais, cedendo á pressão do rei, conseguiram eleger o cardeal Duéze, que adotou o nome de João XXII. O rei Filipe V, repetindo as manobras, de seu pai, Filipe, o Belo, mandou prender os cardeais em uma igreja e ameaçou-os dizendo que só saíriam de lá quando a eleição estivesse concluída. Nesse meio tempo, o Cardeal Duéze tinha feito uma composição com o rei, inclusive prometendo continuar com a sede do papado em Avignon. Os cardeais, prisioneiros e sofrendo necessidades, não tiveram outro recurso senão eleger Duéze. Esse papa, entre outras curiosidades, tinha fama de alquimista e feiticeiro. Seu nome aparece no famoso romance de Humberto Ecco, o Nome da Rosa, como um sendo um anti-papa. Em seu romance Os Reis Malditos, Vol. II, citado, Maurice Druon faz una divertida descrição desse conclave.
[2] Historicamente a morte de Filipe, o Belo, foi atribuída a um derrame cerebral, que o acometeu quando ele estava caçando um cervo na floresta de Fontainebleau. Morreu dez dias depois desse ataque, segundo os médicos que o atenderam, de apoplexia. Mas sendo ele um homem forte, de boa saúde e ainda jovem, a tradição atribuiu á maldição dos Templários a sua morte. Seu túmulo, na Abadia de Saint Denis, foi profanado em 1793, durante a Revolução, supostamente por seguidores dos Templários.