Morreu

A luz, cada vez mais fraca ainda conseguia fazer resplandecer aquele rosto cansado pela vida, em seus últimos momentos. A tradição daquela família católica prezava que a vela simbolizava luz, para que aquela pessoa não partisse no escuro para a outra vida.

Na sala mais adiante ouvia-se muitas vozes que conversavam sobre todo tipo de assunto, como que aguardando a notícia final.

As dores que outrora eram intensas, agora estavam amenizadas, graças a grandes doses de morfina,, o que de certa forma também deixavam o moribundo meio distante da realidade. Talvez fosse melhor assim.

Perto das duas horas da madrugada, os pulmões pararam. O coração encerrou suas atividades, após noventa e três anos ininterruptos.

Após dar a extrema unção, padre Cícero fechou os olhos daquela tão querida e generosa senhorinha.

Uma vida dedicada aos outros a fizera morrer solteira e sem filhos. Entretanto, todos aqueles anos de fraternidade renderam-lhe dezenas de admiradores e peregrinos.

Eu ainda pretendia ler a parte de esportes daquele jornal dominical, mas a notícia da morte de dona Didi me fez refletir sobre o que é vida.

Se passarmos dedicando nosso tempo a nós mesmos, talvez no final possamos olhar para o passado e tentar entender a razão de tudo. Se porém fecharmo-nos para um mundo de doação, podemos passar essas muitas ou poucas décadas a esquecer de nós mesmos, por amor aos outros.

A partir desse dia me tornei uma pessoa mais religiosa. De que teria valido à pena a vida de dona Didi, caso tudo tenha se encerrado ali, naquele quartinho apertado daquela velha casa de aluguel. Acho que deve ter algo do outro lado, e se assim o for, certamente que dona Didi há de colher os bons frutos de tudo aquilo que plantou, nessa vida cheia de pessoas egoístas e de mal caráter.

Como é do outro lado, sinceramente não sei, mas a lição deixada por essa tia solteirona jamais vou esquecer. Talvez tenha perdido a chance de viver um grande amor, ou um terrível divórcio.

Quem sabe não ter gerado filhos a privou de saber o que é ser mãe natural, mas lhe tenha poupado de muitas preocupações, e com seu amor, gerado muitos filhos, aos quais nunca negou um pedaço de pão ou um copo com água.

Paulo Farias
Enviado por Paulo Farias em 22/01/2014
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