“O mal não morre, pode até ficar adormecido, mas será por pouco tempo.”
“Na árida região de aço e pedra eu ergui a minha voz para que você possa escutar. Eu chamo o Este e o Oeste. Eu mostro um sinal proclamando o Norte e o Sul. Morte ao fraco, saúde ao forte!” (Livro de Satã 1:1)
Soube da morte de Samantha quando curava minha bebedeira.
Uma ressaca como aquela é muito ruim. Mas pior que isso é ficar sabendo, no meio de um pileque da morte de uma boa amiga. Para muitos, Samantha não passava de uma prostituta. E pode ser que tivessem razão. Para mim era uma moça muito jovem para a profissão que exercia, presa num cepo asqueroso, cruel que é a cidade grande. Cruel como a luta para sobreviver nela de algum modo, digno ou não.
Tinha acabado de tomar sal de frutas para combater o enjoo e não vomitar quando o telefone tocou. Precisei segurar minha cabeça com as duas mãos por um instante, pois parecia que ia explodir em mil pedaços...
Mas aquela maldita campainha soava insistentemente tão forte que meus tímpanos pareciam não aguentar.
- Sim – respondi fazendo parecer que minha voz soava de dentro de uma tumba.
- É você Tony?
Tentei reconhecer a voz, mas não estava em condições para tal.
- Sim – disse – Sou eu. Quem está falando?
- Aqui é Marcos. Marcos Sampaio, você sabe.
Eu sabia, claro que sabia. Um velho amigo. O médico legista do IML. Não gosto de receber telefonemas dele, pois é sempre anunciação de morte.
- Olá doutor – tentei engolir a saliva, mas a boca seca não permitiu que o fizesse. Minha língua parecia estopa no meio de uma boca espessa e fétida – O que houve?
- Nada de bom. Chegou nessa madrugada uma grande amiga sua. Samantha Sanders.
Samantha Sanders.
Por um breve momento calei. Não se levam ninguém ao necrotério para extrair um dente ou operar de apêndice.
- Meu Deus... – murmurei com voz áspera como lixa - O que houve com ela?
- Um caso muito feio Tony. Quase a esvaziaram por dentro. Destripada a faca. Coisa de sádico.
Voltei a me calar. Não podia fazer coisa diferente. Um maldito filho da puta fizera outra barbárie.
A cidade está cheia de pessoas assim. Eles se acham enviados de Deus ou coisas do gênero.
- O que sabe sobre isso? – finalmente articulei – Algum cafifa furioso?
- Não está parecendo. Não é estilo deles. Primeiro eles dão uma boa surra e só depois, se elas reincidem, é que eles matam. Mas, sem requinte de crueldade.
- Entendo. Irei vê-la, se é que posso.
- Você pode sim.
- Não sou policial, Marcos, e você sabe disso.
- Vamos dizer que você irá identificar o corpo, afinal de contas era sua amiga, ou não?
- Sim – suspirei – Era minha amiga.
Nunca me deitei com Samantha. Embora ela tivesse tentado. Pobre menina.
Desliguei o telefone. Eu me sentia pior que quando acordei. Desta vez não consegui segurar o vomito, apesar do antiácido.
Tomei um banho, melhorei um pouco e saí.
Pouco tempo estava no necrotério, o doutor e amigo se limitou a apertar minha mão languidamente, com olhar perdido atrás de seus estranhos óculos com lentes que diminuíam seus olhos. Com um movimento de cabeça me fez segui-lo até a câmara fria, lugar que eu conhecia muito bem. Lá os corpos esperavam a necropsia ou funeral.
A mim bastou dar uma olhada. Era Samantha. Não cabia mais nenhuma dúvida.
Jovem, muito jovem ainda para morrer.
Não completaria seu vigésimo aniversário.
- Acho que é ela, não? – disse Marcos, talvez para dizer alguma coisa.
- Sim, é ela – disse crispando o punho tamanha raiva eu sentia. – O que dizem meus antigos colegas?
- Quase nada. O delegado Andrade parece nada saber. Disse que esse é o sexto caso em dois meses, mas ele está cauteloso em dizer que se trata de um serial killer.
Dirigi um último olhar a seu ventre arrebentado, antes que ele tornasse a fechar a gaveta e aquele recipiente frio levasse novamente a bela Samantha para o fundo da escuridão glacial.
- Tony, preciso te dizer que nenhum dos órgãos da moça está com ela, tudo foi arrancado. – a voz tremula de meu amigo anunciava algo muito terrível, pois ele está acostumado com selvageria que os seres humanos são capazes de fazer. Mas essa foi demais até para ele.
(Continua)
“Na árida região de aço e pedra eu ergui a minha voz para que você possa escutar. Eu chamo o Este e o Oeste. Eu mostro um sinal proclamando o Norte e o Sul. Morte ao fraco, saúde ao forte!” (Livro de Satã 1:1)
Soube da morte de Samantha quando curava minha bebedeira.
Uma ressaca como aquela é muito ruim. Mas pior que isso é ficar sabendo, no meio de um pileque da morte de uma boa amiga. Para muitos, Samantha não passava de uma prostituta. E pode ser que tivessem razão. Para mim era uma moça muito jovem para a profissão que exercia, presa num cepo asqueroso, cruel que é a cidade grande. Cruel como a luta para sobreviver nela de algum modo, digno ou não.
Tinha acabado de tomar sal de frutas para combater o enjoo e não vomitar quando o telefone tocou. Precisei segurar minha cabeça com as duas mãos por um instante, pois parecia que ia explodir em mil pedaços...
Mas aquela maldita campainha soava insistentemente tão forte que meus tímpanos pareciam não aguentar.
- Sim – respondi fazendo parecer que minha voz soava de dentro de uma tumba.
- É você Tony?
Tentei reconhecer a voz, mas não estava em condições para tal.
- Sim – disse – Sou eu. Quem está falando?
- Aqui é Marcos. Marcos Sampaio, você sabe.
Eu sabia, claro que sabia. Um velho amigo. O médico legista do IML. Não gosto de receber telefonemas dele, pois é sempre anunciação de morte.
- Olá doutor – tentei engolir a saliva, mas a boca seca não permitiu que o fizesse. Minha língua parecia estopa no meio de uma boca espessa e fétida – O que houve?
- Nada de bom. Chegou nessa madrugada uma grande amiga sua. Samantha Sanders.
Samantha Sanders.
Por um breve momento calei. Não se levam ninguém ao necrotério para extrair um dente ou operar de apêndice.
- Meu Deus... – murmurei com voz áspera como lixa - O que houve com ela?
- Um caso muito feio Tony. Quase a esvaziaram por dentro. Destripada a faca. Coisa de sádico.
Voltei a me calar. Não podia fazer coisa diferente. Um maldito filho da puta fizera outra barbárie.
A cidade está cheia de pessoas assim. Eles se acham enviados de Deus ou coisas do gênero.
- O que sabe sobre isso? – finalmente articulei – Algum cafifa furioso?
- Não está parecendo. Não é estilo deles. Primeiro eles dão uma boa surra e só depois, se elas reincidem, é que eles matam. Mas, sem requinte de crueldade.
- Entendo. Irei vê-la, se é que posso.
- Você pode sim.
- Não sou policial, Marcos, e você sabe disso.
- Vamos dizer que você irá identificar o corpo, afinal de contas era sua amiga, ou não?
- Sim – suspirei – Era minha amiga.
Nunca me deitei com Samantha. Embora ela tivesse tentado. Pobre menina.
Desliguei o telefone. Eu me sentia pior que quando acordei. Desta vez não consegui segurar o vomito, apesar do antiácido.
Tomei um banho, melhorei um pouco e saí.
Pouco tempo estava no necrotério, o doutor e amigo se limitou a apertar minha mão languidamente, com olhar perdido atrás de seus estranhos óculos com lentes que diminuíam seus olhos. Com um movimento de cabeça me fez segui-lo até a câmara fria, lugar que eu conhecia muito bem. Lá os corpos esperavam a necropsia ou funeral.
A mim bastou dar uma olhada. Era Samantha. Não cabia mais nenhuma dúvida.
Jovem, muito jovem ainda para morrer.
Não completaria seu vigésimo aniversário.
- Acho que é ela, não? – disse Marcos, talvez para dizer alguma coisa.
- Sim, é ela – disse crispando o punho tamanha raiva eu sentia. – O que dizem meus antigos colegas?
- Quase nada. O delegado Andrade parece nada saber. Disse que esse é o sexto caso em dois meses, mas ele está cauteloso em dizer que se trata de um serial killer.
Dirigi um último olhar a seu ventre arrebentado, antes que ele tornasse a fechar a gaveta e aquele recipiente frio levasse novamente a bela Samantha para o fundo da escuridão glacial.
- Tony, preciso te dizer que nenhum dos órgãos da moça está com ela, tudo foi arrancado. – a voz tremula de meu amigo anunciava algo muito terrível, pois ele está acostumado com selvageria que os seres humanos são capazes de fazer. Mas essa foi demais até para ele.
(Continua)