Shivah

Kim acordou no meio da noite. Daqui a pouco iria amanhecer, e o tempo estava mais fechado e frio. Kim deitou-se novamente. Era sábado, não tinha aula nem nada de importante, e o dia seria fechado, o que eliminava qualquer chance de sair da cama. Depois, acabou se cansando de ficar na cama, e levantou-se, fazendo aquele ritual todo de higiene, incluindo um banho. Desceu para o café da manhã, sozinha. Seus pais já haviam saído para o trabalho, e Noelle, sua prima, estava em reposição de aula. Só sobrou Shivah, sua gatinha preta de olhos verdes.

-É, Shivah. Parece que só tem a gente aqui. Sobra mais café da manhã, não é?

Shivah a olhava com aqueles enormes olhos verdes. Ela olhava Kim dentro dos olhos, como se visse a sua alma. Se assim fosse, Kim esperava que Shivah visse algo de bom pelo menos.

-Eu te dou ração todos os dias, Shivah. Isso deve contar.

Shivah nada fez; apenas a olhou mais fundo ainda, e suas pupilas dilataram. Fixou o olhar na porta da cozinha, rosnando alto e se arrepiando toda. Kim morria de medo quando Shivah olhava para algum lugar onde não tinha nada. Os rosnados dela davam medo. Dizem que os gatos vêem coisas que os humanos não enxergam. E Kim acreditava muito nisso.

Shivah saiu pela janela, correndo. Kim olhou para a porta da cozinha, e pensou ter visto alguma coisa ali. Lembrou do sonho que teve. Um par de olhos violeta, emoldurados por longos cabelos negros. Sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo. Alguém tocou seu ombro, e ela gritou.

-Kim! Meu Deus!- Noelle estava curvada, com a mão no peito e ofegava um pouco. - Por que gritou? Quase me mata de susto!

-Eu estava distraída, e você é que me assustou.

Noelle viu o café da manhã e esqueceu o susto.

-Humm... Comida! Cadê a Shivah?

Kim falou o que aconteceu, e falou também do sonho que teve naquela noite.

-Hum... Interessante. E o dono desses olhos era bonito, pelo menos?

-Ai, Noelle... Não sei... Não me lembro.

Noelle ficou com os olhos pregados nela por um longo tempo. Kim pensou que ela ia dizer algo que fosse ser útil, mas tudo o que disse foi:

-Credo! Sem graça...

Noelle estampou um sorrisinho esperto nos lábios, saiu da cozinha e foi assistir TV.

. . .

Depois de um dia extremamente sonolento, Kim foi deitar-se.

Teve sonhos estranhos. Sonhou com um rapaz também estranho, lindo, parecia um vampiro. Kim teve medo dele, mas isso logo passou. Ele chegou mais perto, e se sentou ao lado dela. No sonho, ela estava sentada no telhado de casa. Ele a olhava nos olhos.

Ele tinha olhos violeta.

-Kim... –Ele tocou o rosto dela e colocou uma mecha de cabelos da Kim atrás de sua orelha.

-Quem é você?- disse Kim, já se deixando amolecer pelo olhar daquele cara. Ele falou ao seu ouvido:

-Você vai saber. Mais tarde. –Tudo foi coberto por uma névoa negra e Kim acordou como se tivesse levado um choque. Respirava pesadamente. Jogou-se no travesseiro. Que sonho mais louco e real... Dormiu depois de apenas alguns minutos.

Acordou morta de cansaço no dia seguinte. Suportar o dia foi ainda mais difícil. De algum modo, aquele sonho a perturbou um pouco. Seu pescoço doía. Pensou em sua gata, não a via desde o dia anterior. “espero que ela não tenha fugido...”, pensou Kim.

Sonhou com aquele cara várias noites seguidas. Eles conversavam, ele perguntava da vida dela, e ela perguntava sobre ele, mas ele nunca respondia quando as perguntas se tornavam pessoais demais.

Ele sempre tinha um jeito carinhoso, até ela contar que tinha um gato:

-Gato? Você tem um gato? – a expressão dele ficou sombria.

-Sim. Preto. É fêmea, se chama Shivah. Você parece não gostar de gatos... –disse Kim, reparando na expressão de raiva dele.

-Shivah... Maldita... Ainda me persegue? –ele falava para si mesmo.

Ele se levantou, e afastou-se dali, com os punhos cerrados.

-Espera! Você nunca me disse seu nome...

-Boa noite, Kim.

Kim acordou como se tivesse sido jogada na cama. Sentia seus sonhos se tornando cada vez mais reais. Algo que ela tinha falado na noite anterior o tinha deixado ofendido. Mas, lembrando bem, ele havia ficado daquele jeito quando ela falou sobre Shivah. Talvez ele não gostasse de gatos... Teria que tomar mais cuidado com o que falava.

Shivah apareceu, pulando na cama e se ajeitando para dormir.

-Você voltou. Se meu amigo te visse, ele ia ficar bravo... –passou a mão no pêlo macio da gata, pegou-a e dormiu abraçada com ela.

O dia foi chato e sem atrativos; esperou ansiosamente pela noite. O clima era de inverno, apesar de ser começo de outono. Noelle não parava de falar coisas sem noção, o que estava cansando Kim. Foi deitar-se mais cedo, e levou Shivah.

A cama estava gelada, e por mais que Kim quisesse, ela não esquentava de jeito nenhum. Acabou dormindo assim mesmo.

Novamente, sonhou com o “vampiro do telhado”, como o chamava. O frio ali era insuportável, e se intensificava a cada minuto.

Essa vez, ele não chegou perto dela. Estava amedrontado e nervoso. Só depois de muito tempo, olhou para ela com ódio, e disse:

-Livre-se dessa malignidade!

Kim não sabia do que ele falava. Ela perguntou a que ele se referia, mas sua voz era estranha, não parecia ser sua.

-Esse mal, essa cria das trevas que você chama de Shivah! –ele semicerrou os olhos, deixando à vista apenas um filete violeta.

-Ela é só um gato. Que mal pode oferecer?

Ele a olhou como se fosse matá-la, e acabou. Kim havia acordado. Logo que abriu os olhos, viu Shivah no pé da cama, olhando-a.

Vários meses se passaram e Kim nunca mais teve aqueles sonhos malucos.

Os pais de Kim iriam viajar naquela semana, e a mãe de Kim, Tânia, queria levar Shivah. Kim sentiu um medo enorme, não queria ficar sem Shivah.

-Não! Shivah fica! –Kim tremia. Não sabia porquê, mas precisava da gata.

-Kim, eu vou levar a gata. Não sei por que está tão brava. Voltaremos rápido.

-Não. –estava decidida a não deixar a mãe levar sua gata. Parecia loucura, mas Shivah a protegia, como se ela fosse um tipo de guardiã.

Terminaram levando Shivah, deixando Kim com um sentimento de perda, solidão. Só restava esperar pela volta deles.

Durante o dia, Noelle e Kim assistiram filmes, pediram pizzas, e à noite, Noelle a chamou para sair. Mas Kim não se sentia animada para isso.

Foi dormir com medo de ter novamente aquele sonho. Passou um bom tempo acordada, com medo de dormir. Sentia-se perdida sem Shivah, seu amuleto da sorte. Aos poucos, o sono foi chegando e Kim dormiu.

Acordou sobressaltada, e não estava sozinha no quarto. O “vampiro do telhado” estava lá, parado na beira da cama. Seu rosto denotava algo como loucura. Ele sorriu para ela, e no instante seguinte estava ao seu lado. Kim sentou-se na cama, e ele passou os dedos no pescoço dela, e foi repentinamente atacado por uma forma escura. Kim saltou da cama, e viu Shivah se transformar em uma pantera negra enorme, com dentes também enormes, e atacou o cara que invadia o que ela achava serem seus sonhos.

Shivah rosnava como um tigre, cravando as garras no vampiro do telhado.

Antes que Shivah o atacasse novamente, ele segurou Kim pelos cabelos e a mordeu no pescoço.

-Já fiz o que queria. Tornei-a sedenta por sangue, como eu, sua guardiã maldita! –disse isso, e teve a cabeça decepada por Shivah. Kim gritou de dor por umas horas, e, ao final dessas horas, sentia-se cansada. Shivah havia voltado ao normal, e parecia não se importar com o cheiro de morte exalado de Kim, nem com os caninos longos e os olhos vermelhos. Shivah era sua guardiã, e cuidaria dela.

Noelle chegou em casa. Kim estava com sede. Desceu as escadas e ficou olhando a prima.

-Ai... Kim, machuquei a minha mão. Você pode fazer um curativo?

Ao ver o filete de sangue vermelho brotar da palma de Noelle, seus olhos brilharam vermelhos.

-Claro Noelle. Vem aqui e eu faço um curativo. – disse, sorrindo e deixando à mostra seus caninos afiados e longos.

Shelly Graf
Enviado por Shelly Graf em 17/01/2014
Código do texto: T4652707
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