O corpo que habitarei
O vento soprava fraco, apenas para se mostrar presente. A entrada do cemitério ficava para trás à medida que Natália e Francine andavam cemitério adentro. O lugar encontrava-se vazio naquele dia.
Planejaram com cuidado a ida ao cemitério. Francine queria mostrar um pouco das coisas de seu belo mundo gótico à Natália.
Natália, estando pela primeira vez em um cemitério, olhava tudo, achando-o um pouco mórbido, mas bonito. Ambas sentiam a quietude do lugar, como um lago calmo que guarda em seu fundo algo terrível, abominável. Francine andava ao lado de Natália, quieta.
-Fala alguma coisa, Fran. -Natália pediu com medo do silêncio de Francine.
-Falar o quê?-Sorriu Francine.
-Eu quero entrar em um jazigo. Você pode tirar uma foto pra mim?
-Claro.
Natália e Francine, nos fundos do cemitério, escolheriam um jazigo que estivesse aberto, para entrarem.
Embaixo de uma pequena árvore, havia um jazigo mal-cuidado, de aspecto pobre. Francine chamou Natália, que sentou na pequena entrada na altura do chão, com metade do corpo para fora.
-Eu vou entrar e você tira a foto, tá?
-Pode deixar.
Após Natália sair do jazigo, viu-se sozinha. Francine havia sumido. Natália, sentindo certo pavor crescer em seu peito, procurou pela amiga. O dia escurecia mais e mais, com uma violenta chuva a caminho.
Minutos depois, que pareceram horas para Natália, ela avistou Francine parada na frente de um tumulo em forma de capela, de cor vermelho sangue. As roupas negras de Francine dançavam com o vento. O interior do túmulo era um mistério, pois a porta de vidro escuro nada deixava ver.
Francine estava parada à frente dele com os olhos vidrados. Os cabelos ondulados, tocados pelo vento, balançavam malignamente. Natália aproximou-se, assustada. Nunca vira a amiga daquele jeito.
-Francine?-Natália chamou várias vezes, sem obter resposta.
Francine virou-se e começou a andar. Parou em frente ao túmulo onde Natália havia entrado e pediu a ela que entrasse novamente. Natália, com medo de contrariá-la, obedeceu. Fran agia de modo horrivelmente estranho.
-Pegue a caixa na sua frente. -Disse Fran, com o olhar vago.
Ela deu a caixa à Fran, que a abriu, colocando-a no chão para que Natália pudesse ver. Francine respirava devagar, com os lábios entreabertos. O batom vermelho pareceu, por um segundo aos olhos de Natália, sangue.
-Fran, o que você quer com esses ossos? Vamos guardar que é melhor tá?-Natália fez menção de pegar a tampa da caixa de exumação para tampá-la, quando Francine pisou em cima dela, impedindo-a de pegar a tampa.
-Não.
Olhando para cima, Natália estudava o rosto de Fran, demorando-se nos detalhes; A maquiagem, que parecia fazer parte da pele, nunca borrava. O batom vermelho estava sempre presente. Mas havia algo a mais nos olhos dela. Normalmente castanho-claro, eles exibiam um brilho maldoso, não eram exatamente os mesmos. Havia algo muito errado. Francine abriu a boca e inspirou lentamente. Natália ouviu mais um pedido estranho dela.
-Pegue o crânio e vire-o para mim. -os olhos dela brilharam mais.
Natália atendeu ao pedido. Ao virar o crânio para ela, seus dedos esmagaram parte dele. Recuperando-se do ato nojento que cometera sem querer, escutou Fran gritar loucamente, ajoelhando-se para recolher os pedaços do crânio que havia caído com o susto de Natália, que estava à beira do choro. A amiga a assustou demais com aquele ato estranho. Francine guardou os ossos e fechou a caixa, colocando-a no lugar. Andou até Natália, parada embaixo de uma estátua de Cristo. Ela chorava. Francine a abraçou, dizendo estar tudo bem.
-Não está tudo bem!-Natália gritou, afastando os cabelos curtos do rosto. Estava visivelmente nervosa.
-Vamos embora então.
Ela relutou, mas acabou indo com Francine.
Francine apertou levemente em sua mão uma lasca do crânio que Naty havia pegado.
Em casa, Natália ligou para Francine, preocupada. Por todo o caminho de volta, Francine mostrara-se normal, após o modo estranho como agiu no cemitério. Ninguém atendia ao telefone. Recolocou o telefone no gancho e ligou o computador, a fim de ver melhor as fotos que tirou com Fran.
Em uma foto, Natália demorou-se. Olhava todos os detalhes, pois a foto estava bonita. Na foto, ela estava ao lado de Francine, viradas de costas para o túmulo vermelho onde Fran ficou parada momentos depois. Ela aumentou a foto, para ver melhor o túmulo. Seu coração bateu mais forte ao olhá-lo melhor. O telefone tocou e Natália pegou-o, atendendo rapidamente. Era Francine.
-Você me ligou Naty?-Disse Francine, com voz manhosa.
-Sim. Queria saber se você tá bem. -Disse ela, tremendo.
-Por que sua voz está tremula guria?
Natália não respondeu.
-Natália?
-Tinha mais alguém lá no cemitério além da gente?
-Não. Ninguém. Só eu e você mesmo. Por quê?
-Não posso falar, porque você tem que ver. Vem aqui amanhã.
-Meu Deus, Naty. Tá bom. Ah, mais uma coisa.
-Diga. -Respondeu ela, após Fran calar-se.
-Você está bem?
-Sim. Acho.
Francine notou a hesitação na voz dela, mas não deu importância.
-Tudo bem então. Até amanha. Tente dormir bem, porque eu não sei se conseguirei. -Fran baixou a voz.
-Por quê?
-Tchau Naty. Cuida-se.
-Não, espera!-o telefone estava mudo.
Natália esperava ansiosa alguma reação de Francine, que olhava a foto ampliada do túmulo.
Além de Natália e Francine, havia outra pessoa na foto, em frente ao túmulo vermelho. A imagem da suposta aparição era meio borrada, mas de certo modo nítida. Uma pessoa de contornos enevoados se arrastava para fora do túmulo. Apenas metade do corpo estava para fora dele.
-Não sei se realmente é uma aparição isso aí... -Disse Fran, finalmente.
-Como não? Olha aí o espírito saindo do túmulo!
-Eu vi.
-E ainda fala que não é nada?-Naty andava pela sala, nervosa.
-Sim.
Natália virou-se para encarar Francine; ela a encarava também, de modo estranho. Reparou que Francine permanecia com a mão direita fechada desde que saíram daquele maldito cemitério
-O que você tem aí?-Perguntou Naty, apontando para a mão dela.
-Nada. -Francine colocou as mãos nos bolsos da calça preta.
-O que é Francine?
-Outro dia te falo. Vou indo agora. Se descobrir mais alguma assombração nas fotos, me fala.
Natália não sabia se ela havia falado sério ou se estava sendo a ironia em pessoa como sempre.
Francine saiu para a rua escura e úmida. Levou a mão fechada ao peito, onde repousava um crucifixo prateado e, dentro do peito, um coração envenenado.
Naquela noite, Francine deitou-se com roupas negras, como uma mortalha. Fumara um maço inteiro de cigarros de menta. Estava sozinha em casa e ouvia Flood I, da sua banda amada, The Sisters of Mercy. A lasca de osso havia sido posta dentro de um relicário oval enegrecido, tendo uma pedra vermelha à frente; o qual Francine usava sempre.
-Descanse em paz, Constance. -Disse ela, monótona.
Vinda do escuro, uma voz feminina e delicadamente forte respondeu:
-Descanse em paz, Francine.
O relicário oval no pescoço dela vibrou, como se a pequena lasca que um dia fizera parte de um maldito crânio tivesse vida própria.
Natália tentava dormir, mas algo a incomodava. Precisava falar melhor com Francine. A foto e o jeito estranho dela a perturbavam. Algo havia acontecido naquele lugar maldito. Um farfalhar de tecido chamou sua atenção. Ela não estava sozinha no quarto.
Pegou o celular e ligou para alguns contatos na agenda dele. Nenhum atendeu. O próximo número era bem conhecido. Ligou para o número de Francine; só chamava. Na sétima chamada alguém atendeu, porém nada disse. Natália ouvia música tocando alto do outro lado da linha. Desligou, preocupada.
-É hora de dormir, Natália. -Falou baixinho, para si mesma.
Seu coração disparou louca e doloridamente ao ouvir uma resposta, vinda do canto mais escuro do quarto:
-Sim. É hora de dormir, Natália. -Ordenou a voz feminina e macia.
-Então você diz que ouviu uma voz, é isso?-Indagou Fran, ao telefone.
-Sim. Foi horrível. Fiquei deitada, com os olhos apertados... E nem pensei em dormir!
-Hum...
-Fran?
-Sim?
-O que está acontecendo com você? Aconteceu algo lá no cemitério?
-Não, Naty. Não aconteceu nada.
-Desde aquele dia, em que você ficou estranha do nada, você anda diferente. Eu sei que nunca vou entender você e pelo pouco que você me deixou conhecer de si, eu vejo que esse seu comportamento de agora não é normal.
Francine permaneceu quieta. Vários minutos de silêncio se passaram até Natália falar.
-Francine, caralho!-Gritou, irritada.
-O que é caramba?
-Me fala o que diabos está acontecendo com você!
-Eu já te disse não ser nada. Não insista mais, por favor.
-Por que você gritou quando deixei aquele crânio cair?
-Não sei. -Mentiu Francine.
-Aquilo fedia.
-Sim.
-Fran, tenho que desligar agora. Promete que vai se cuidar? Por favor?
-Prometo. -Respondeu ela, sempre de poucas palavras.
-Escreve uma poesia gótica pra mim?-Pediu Naty.
-Escrevo, pode deixar.
Ao desligar o telefone, Francine escreveu a poesia que havia prometido à Natália. Leu-a ao terminar de escrevê-la e foi até a casa dela, a fim de se desculpar e recitar a poesia.
Conversara um pouco, deixando de lado a esquisitice de Francine.
-Fiz a poesia que me pediu. Vou lê-la para você.
-Sim, por favor.
Francine tirou do bolso do sobretudo uma folha fina e branca e começou a ler.
-"Esperei os anjos caírem
Para o mundo silenciar.
Aos meus olhos você ainda é
A mesma pessoa.
Deixe-me ir embora com os meus pecados.
Não pisoteie minha alma.
Esperei os anjos caírem para ter minha alma de volta.
Até morrermos,
Até eu morrer,
Seu rosto ficará preso em minha mente.
Até eu morrer.
Até morrermos."
Francine despregou os olhos da folha e viu Natália com os olhos brilhando. Ela sabia que Naty havia gostado da poesia.
-Gostou?-Francine sorria.
-Se gostei? Amei Francine. Amei!
-Naty, tem uma coisa que eu preciso contar a você.
A expressão séria de Francine fez Natália apagar o enorme sorriso que estampava seu rosto, tornando-o sombrio.
-Eu preciso que você deixe uma pessoa que eu amo morar em você. -Disse ela, impassível.
-O quê? Morar comigo você quer dizer?
-Não. Em você. Dentro de você.
-Francine, pára. Você está me assustando mais ainda. -Naty andava para trás, com passos cautelosos.
-Eu preciso que você faça isso. Por mim. -Lágrimas rolavam pelo rosto dela. Suas mãos tocaram o relicário em seu peito.
Natália, tomada por um medo irracional, correu para o banheiro, pois era o único lugar mais próximo de onde estava. Trancou a porta e encolheu-se no canto do banheiro. Sabia que Francine tinha passos leves, o que não a denunciaria caso estivesse na porta, esperando.
Natália fechou a cortina do banheiro, encolhendo-se mais ainda contra a parede. ¬Seu peito doía e sua cabeça girava. Iria desmaiar.
Um clique foi ouvido, vindo da porta do banheiro. Natália sabia ser Francine, pois não escutava os passos dela, mas sentia-a ali dentro. Perdeu a consciência antes de ver Francine abrir a cortina do chuveiro, com o pequeno relicário enegrecido nas mãos.
Sentir a cama macia embaixo de si a trazia de volta à consciência. Natália abriu os olhos, receosa. Tudo estava em seu devido lugar. Um alívio reconfortante tomou conta de seu coração.
Como que tentando espantar o bem-estar, sua pele começou a queimar loucamente. Sentia seu coração sendo corroído. Foi ao banheiro para olhar seu peito que tanto ardia.
Um pequeno filete de sangue escorria de uma ferida minúscula onde um pequeno e amarelado objeto se aprofundava na carne dela por vontade própria. Natália tentou retirar o pequeno fragmento de osso da sua pele, porém ele já estava dentro dela, fazendo parte dela. Naty andou a passos vacilantes, dirigindo-se à sala. Sentia-se mal; uma tontura absurda fazia-a cambalear.
Chegou à sala e deu de cara com Francine. Ela havia chorado, pois lágrimas negras de delineador manchavam o rosto absurdamente branco. Natália se se encostou à parede e escorregou até o chão, ficando sentada. Seus ossos pareciam estar derretendo. Seus músculos queimavam horrivelmente.
-Naty, deixe-me explicar melhor o porquê disso tudo. -Francine tinha a voz morta e baixa. -Faz anos que vou naquele cemitério, você sabe. Desde a primeira vez em que pisei lá, conheci uma mulher. Ela conversava comigo, contava-me coisas... Eu podia dizer que ela era uma mãe pra mim, já que a minha está longe, naquele hospício maldito. Quando eu perguntei onde ela morava, ela me levou até aquele túmulo vermelho, dizendo que morava lá. Eu fiquei meses sem ir lá depois disso. Mas senti a falta dela e voltei. Ela me pediu um corpo. Alguém que eu confiasse. Disse-me para levar essa pessoa lá. Eu não sei bem o porquê, mas os ossos dela não estavam naquele túmulo onde ela disse morar. Acho que é por que ela ama vermelho... Os ossos dela eram aqueles que você pegou, lembra? Ela me disse como fazer para que você a hospedasse, pois ela sentia uma falta terrível de ter um corpo, uma vida. Eu escolhi você porque te amo.
Natália chorava de desespero. Não conseguia mais se mover.
-O nome dela é Constance. Ela se apossará do seu corpo e você vai ter a consciência dela habitando você.
-Por que... Você mesma não... Deixa... -Naty tentava falar, mas não conseguia.
-Porque corre pelas minhas veias um veneno maligno, que me habita desde o nascimento. Você tem um coração saudável e puro. Uma das coisas pelas quais te escolhi.
Francine olhou para o lado e sorriu. Uma sombra tomava a forma de uma mulher, trajando roupas ciganas.
-Essa é a Constance, Naty. Ah, esqueci de dizer que esse fragmento de osso dela irá se juntar com os seus ossos, o que a dará o poder de controlar seu corpo como se fosse dela.
O rosto de Natália estava encharcado de lágrimas. Pensava em tudo o que não poderia viver por causa dessa loucura toda.
-Desculpe Natália. Só escolhi você por que você é importante demais. Eu só confio em você para cuidar da Constance. Ela é muito importante pra mim... Ela é uma cigana que habitou minha avó, até ela morrer. Não podia correr o risco de você me deixar na mão, por isso fiz assim.
A cigana aproximou-se dela, sorrindo. Se não fossem as terríveis circunstâncias, Natália até teria simpatizado com ela.
-Naty, ela é poderosa demais. Você mesma vai poder ver as milhares de coisas que ela poderá fazer. De todas as feiticeiras e afins, ela é a mais poderosa. Você vai gostar dela.
Constance a tocou, fazendo suas mãos entrarem nos braços de Natália. Naty só sentiu frio ao ser tocada. Ela já não conseguia raciocinar direito.
-Natália, eu te amo. Não esquece.
Francine sorriu para ela, que desatou a chorar. Sentiu o corpo todo ficar gelado no momento em que Constance instalou-se em seu corpo.
Natália habitava apenas um pequeno canto de seu ser. Ouvia palavras saírem da sua boca, comandada por Constance. A cigana controlava seu corpo.
-Está bom assim, Constance?-Perguntou Francine, sorrindo.
-Está ótimo. Obrigada meu bem. -Respondeu ela.
-Cuide bem desse corpo. A Natália é muito importante para mim.
Natália ouvia tudo, mas não podia interferir; estava presa em seu próprio corpo, sem o menor controle sobre ele.