NEKAN, ADONAI- A MALDIÇÃO
 
 
A ordem fora dada por Jean de Marigny, para que Tiago de Molay e Godofredo de Charney fossem levados á Ilha dos Judeus, e lá fossem queimados. Como arcebispo de Seins, ele tinha esse poder. A ordem chegou a Alain Parreiles, capitão dos arqueiros reais, por volta das quatro horas da tarde. Ele mal acabara de trancar os dois em suas respectivas celas e já era preciso tirá-los de lá novamente.
“Essa gente da Inquisição não sabe o que quer”, pensou de Parreiles. De fato, teria sido mais fácil conservá-los sob guarda dentro da catedral de Notre Dame até ulterior deliberação, que se sabia, seria mesmo aquela, de queimar os infelizes. Agora, teria que quebrar novamente as cadeias, e levá-los, em novo cortejo, até o local onde a fogueira já havia sido preparada, desde a manhã.
Desta vez a jornada, desde o edifício do Templo até o centro da ilha, onde ficava a Catedral, e do outro lado do rio, onde um pequeno braço de rio separava a Ilha dos Judeus da praça da catedral, transcorreu tranqüila. Poucas pessoas se postaram nas estreitas vielas, por onde o cortejo passaria. A maioria das pessoas havia sido dispersada pelos bastões dos arqueiros, no começo de tumulto que se verificara pela manhã, quando as sentenças haviam sido lidas. As que restaram nas ruas, á medida que o macabro cortejo ia avançando, em direção á praça da catedral, ia se juntando atrás da carroça, para acompanhá-la.
– Eles vão ser queimados, os Templários – diziam elas.
– Vamos, vamos lá para a Ilha dos Judeus – gritavam os meninos, sem poder conter o entusiasmo juvenil.
Pouco a pouco, a multidão ia engrossando. A notícia da vinda dos Templários para serem assados tinha chegado até a praça. Os vendedores ambulantes, que haviam rearmado as barracas desmontadas pela manhã, por causa do tumulto, trataram logo de desmontá-las, uns excitados pelo espetáculo que iriam assistir, outros aborrecidos pelo trabalho de ter que desmontar tudo de novo.
– Lá vêm eles – gritou um vendedor de frangos, que se esmerava em meter suas galinhas para dentro de um engradado. Entre as penas que voavam e o cacarejar das assustadiças aves, o alarido era geral na praça.
– Os Templários – gritaram todos. – Lá vêm eles. Vão ser assados!
 
A carroça, conduzindo os dois anciãos, vestidos agora apenas com uma camisola branca, que realçava de uma maneira fantasmagórica as esqueléticas silhuetas dos seus corpos, acabava de cruzar a ponte que levava á praça da catedral. Do outro lado do rio, separada por um estreito canal, estava a Ilha dos Judeus, onde a sinistra pilha de lenha aguardava, como uma sentinela impávida, os dois corpos que iria consumir. Bem no meio da enorme pilha, um grosso poste, de cerca de três metros de altura, com duas pequenas vigas pregadas horizontalmente, para suportar os corpos, sobressaia-se, altaneiro. Neles, os prisioneiros seriam amarrados, costas contra costas, para serem queimados.
Os jardins do palácio real ficavam de frente para a Ilha dos Judeus. Uma das torres do palácio, a chamada Torre da Água, tinha uma galeria que dava de frente para ela. Dali se obtinha uma bela vista da praça de Notre Dame e de todas cercanias da Ilha de La Cité. Dali, o rei, acompanhado dos seus conselheiros, poderia assistir á execução. Isso era o que ele esperava ter acontecido pela manhã e fora frustrado pela intempestiva reação do Grão-Mestre do Templo, com as suas retratações e acusações. Mas, agora, Filipe esperava que nenhuma surpresa mais viesse a ocorrer e todo aquele aborrecido assunto iria, afinal, ter o desfecho que já deveria ter tido há muito tempo.
Em pé, na galeria da Torre, Filipe, acompanhado de seus conselheiros, observava o cortejo que entrava na praça da Catedral. Percorreu com os olhos a massa que seguia a carroça que conduzia os prisioneiros e viu, com algum prazer, que o povo estava ao seu lado. Havia um entusiasmo espontâneo naqueles rostos que sorriam, gritavam e lançavam insultos e impropérios aos dois anciãos, em pé, em cima da carroça.
Uma prancha de madeira, á guisa de ponte, foi estendida entre a praça da catedral e a pequena ilha, onde a pilha de lenha fora erguida. Pouco mais de cinco metros de uma água escura e viscosa separava a praça de Notre Dame da Ilha dos Judeus. Há pouco mais de dez, do outro lado, estavam os jardins do palácio real. Uns vinte metros adiante, ficava a galeria da Torre da Água, onde o séquito de Filipe se ajuntara para ver o macabro espetáculo. Dali eles podiam ver e ouvir muito bem o que acontecia na praça e na ilha.
Os condenados foram guiados pela prancha até o terreno da pequena ilha. Por uma escada, foram levados até o topo da pilha de lenha, onde dois arqueiros os amarraram ao poste, com as mãos para trás, um de costas para o outro.
Os arqueiros que os havia amarrado desceram e logo em seguida subiu um padre.
– Vós fostes homens da Igreja e lutastes pela fé. Perdestes a fé e injuriastes a Igreja. Este é o momento de vos reconciliardes com Jesus Cristo, a quem negastes, e mostrar sincero arrependimento, para que vossas almas sejam salvas – disse o padre.
Os dois prisioneiros se conservaram em silêncio.
– Confessai os vossos pecados e dizei se estais sinceramente arrependidos, para que possais receber o perdão de Deus e os sacramentos da extrema-unção, sem a qual vossas almas não encontrarão repouso no outro mundo – insistiu o padre.
Os prisioneiros continuavam mudos. O padre balançou a cabeça, como quem reconhecia a inutilidade de tudo aquilo. Por fim, persignou-se e começou a descer a escada.
Do alto da galeria da Torre, Filipe e seus conselheiros observavam tudo. O gesto do padre, ao balançar a cabeça, desconsolado, não escapou a Nogaret.
– Até com a morte a fungar no cangote deles, esses malditos hereges não se entregam – disse ele.
– Eles são cavaleiros, messier Nogaret – disse Carlos de Valois.
A tirada não escapou a Filipe.
– Cavaleiros que perderam seus títulos, sua fé e sua honra – disse o rei. – São podres e queimarão como carne podre – completou com desprezo.
O silêncio sepulcral invadiu a praça, quando o padre terminou a sua ladainha mortuária, feita em latim. Alain de Parreiles fez um sinal a um arqueiro que portava um archote de estopa embebida em óleo. O archote foi aceso e no momento em que as chamas azuladas brilhavam na já quase noite que se inciava, um murmúrio se ergueu junto ao populacho que se aglomerava na praça, em frente á pequena ilha. A um sinal do capitão, o arqueiro começou a enfiar o archote no meio da pilha de lenha, qu começou a crepitar. Linguas de fogo começaram a surgir em meio á madeira seca e a fumaça começou a subir.
Não havia se passado dez minutos e a enorme pilha de madeira se transformara numa impressionante pira crepitante, de achas que estalavam, soltando infernais línguas de fogo, que começaram a lamber as esvoaçantes camisolas dos prisioneiros.
– Vejam – gritou um dos espectadores que estava na frente da multidão – eles começam a assar.
Para ele e para aquela turba que ali se aglomerava, aquele[1]era um espetáculo verdadeiramente atraente. Aquelas línguas de fogo, que dançavam como ninfas infernais, exerciam sobre a platéia um fascínio mórbido. Havia algo de sensual naquilo. As chamas refletiam nos olhos brilhantes da turba fascinada, como se fossem fogos de Santelmo, em noites de tempestade no mar.
– Vejam – gritavam os espectadores. – Eles não parecem tão arrogantes agora.
─ Assam como os porcos que são!
 
Foi então que ocorreu o fenômeno. De repente, uma rajada de vento soprou sobre a ilha e a fumaça se dissipou. A turba, fascinada, pode divisar bem os dois anciãos em meio ás chamas, que já começavam a se aproximar de seus corpos. Filipe e seus conselheiros também não puderam deixar de notar o inusitado da situação. A própria madeira parara de crepitar. Um silêncio fantamagórico se espalhou pela ilha. As pessoas esticaram os pescoços para ver e aguçavam os ouvidos para ouvir. O Grão-Mestre ia falar.
– Nekan, Adonai, Chol-begoal!” ─ gritou o ancião.
– O que ele disse? – perguntou Filipe.
– Ele clama a Deus – disse Enguerand.
– Devia ter feito isso antes – comentou Nogaret, com sarcasmo..– Deus não vai salvá-lo agora.
A observação impiedosa não escapou a Jean de Marigny, que conhecia bem a história de vida de Nogaret.
– Não devieis blasfemar, messier – disse Marigny.
Nogaret sorriu. Marigny, que tinha conhecimento de latim e hebraico pensou que o inflexível ministro de finanças do rei não teria sorrido se fosse judeu e soubesse o que queria dizer aquelas misteriosas palavras do ancião, cujas chamas já começavam a consumir as bordas da sua camisola.
Com efeito, Jacques de Molay clamava por vingança. Chamava pelo anjo vingador, o Elhoin da Vingança, conhecido pelos cabalistas pelo nome de El Nekan.
– Ele deve estar invocando algum demônio – disse Luís, o filho mais velho de Filipe, persignando-se.
– Seria próprio desses hereges – comentou Enguerrand.
– Nenhum demônio pode salvá-lo agora – disse o rei.
E foi então que as chamas começaram a queimar a queimar a camisola do velho ancião. A barba hirsuta se transformou  numa labareda azulada e um cheiro de carne queimada se espalhou pelos ares misteriosamente parados, para aquela hora e local. Então Tiago de Molay olhou para a balaustrada, onde Filipe, o Belo, seus filhos e seus conselheiros estavam presenciando a cena e gritou: 
–  Rei Filipe, papa Guilherme! Antes que se passe um ano estais convocados para comparecer perante o tribunal de Deus para serdes julgados por este crime! Malditos sós vois e a vossa descendência, até a décima terceira geração!
Então, como se uma mão tivesse desligado o tempo e os sons do mundo, e de repente os tivesse ligado de novo, o vento voltou a soprar sobre a ilha. As línguas de fogo subiam, aumentando de tamanho. Recomeçaram sua estranha e diabólica dança em volta dos corpos dos dois anciãos, que a essa altura já haviam perdido a consciência. A madeira, constantemente alimentada pelos arqueiros do rei, começou a crepitar novamente.
Os corpos dos dois altos dignatários da Ordem do Templo tinham se transformado em dois tições fumegantes. Não se podia mais distingui-los dos pedaços de madeira que ardiam. O cheiro de carne queimada era agora quase insuportável. As madeiras, transformadas em cinzas, começaram a desmoronar. Em poucos minutos, os dois torrões, nos quais tinham se tranformado os corpos de Tiago de Molay e Godofredo de Charney, afundaram no mar de cinzas, chamas e fumaça.
No alto da balautrada da Torre das Águas, Filipe olhava o dantesco espetáculo. Não pronunciara palavra quando o Mestre do Templo lançara a sua maldição sobre ele, sua família e o papa.
– Acabou, Majestade – disse Nogaret.
– É, acabou – respondeu o rei, maquinalmente.
– Pareceis preocupado, meu irmão – disse Carlos de Valois.
– Não estais levando a sério a maldição que o velho Mestre vos lançou, estais?
– Não essa maldição, meu irmão, não essa maldição – disse, pensativamente, o rei.
E, inconscientemente, olhou para o colosso maciço que era a Catedral de Notre Dame. Na luz do crepúsculo que se esvanecia, e no contraste com a fantasmagoria das chamas, que ainda saiam da fogueira, o reflexo que elas projetavam nas águas do Sena lhe trazia um estranho sentimento. Sem querer, seus olhos pousaram nas gárgulas, nos vampiros e nas estranhas figuram que ornavam o fronstispício do majestoso edifício.
– Nekan, Adonai – uma voz murmurou, nas suas costas. Filipe se admirou ao ver que alguém estivera seguindo seus pensamentos e pronunciara exatamente a palavra que seu cérebro acabara de formar.
O rei se virou maquinalmente, como se uma lâmina em brasa tivesse sido encostada nas suas costas. Mas só viu o seu ministro, Guilherme de Nogaret, olhando fixamente, como ele, no momento anterior, para as estranhas carrancas que os obreiros do bom Deus, os mestres da compagnonnage, haviam esculpido nas ameias de Notre Dame.  
─ O que será que significa Nekan, Adonai? ─ Perguntava, a si mesmo, o inflexível Ministro dos Selos Reais. 
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 notas históricas
[1] Segundo a tradição as palavras pronunciadas por de Molay teriam sido“Nekan, Adonai! Chol-begoal!”; palavras da cabala hebraica que significam “Vingança, Senhor! Abominação a todos.