AS COLUNAS ABATIDAS
Resolvida a questão de quem ficaria com os bens do Templo, agora que a Ordem estava praticamente destruída, restava decidir o destino daqueles que a dirigiam. Principalmente Tiago de Molay e seus quatro principais dignatários, que ainda estavam nas masmorras, aguardando o que seria feito com eles.
A Ordem deixara de existir formalmente em 22 de março de 1312, dia em que fora publicada a bula Vox In Excelso. Até então, uma boa parte dos cavaleiros presos desde a fatídica manhã da sexta-feira, 13 de outubro de 1307, já havia morrido na prisão. Alguns tinham sido libertados para viver em conventos, outros simplesmente inocentados e liberados para voltar a vida profana, e um expressivo contingente deles tinha se filiado aos Hospitalários, e um expressivo número deles se filiaram a outras Ordens de cavalearia fundadas por reis para abrigar os Templários proscritos, mas principalmente para abocanhar parte de seus bens.[1]
Mas muitos Templários, em diversas cidades francesas, foram queimados em fogueiras, pois a comissão de Inquisição havia liberado os tribunais locais para prolatar sentenças contra aqueles que se tornassem renitentes e não se confessassem arrependidos de seus infames pecados.
Assim, em muitos dos tribunais provinciais não se julgou necessária uma completa tramitação do devido processo legal. Bastou a pura e simples confissão do acusado, não importando a forma como tivesse sido extraída, para justificar a imposição da pena capital. Os espetáculos das fogueiras, erguidas para queimar os hereges Templários, por toda a França, foram os mais concorridos espetáculos naqueles gloriosos anos do início do século XIV, quando Filipe, o Belo, governou a França.
Mas na prisão do próprio castelo do Templo, em Paris, para onde haviam sido removidos, depois de amargarem quatro anos nas masmorras do Castelo de Chinon, Tiago de Molay, Godofredo de Charney, Godofredo de Gonneville e Hugo de Perráud, ainda não sabiam o que seria feito deles. De certo que foram informados da decisão papal de de 13 de outubro de 1312, na qual a Ordem do Templo tinha sido dissolvida. E também que muitos cavaleiros, em todo o território francês tinham sido queimados, e uma boa parte deles havia morrido nas masmorras em consequência das torturas.
Mas o Grão-Mestre do Templo e seus altos dignatários conservavam ainda a esperança de que suas vidas fossem poupadas. Afinal, tinham uma história que não podia simplesmente ser apagada daquela maneira. O papa, pensava de Molay, “não poderia ser tão insensível a um passado de lutas pela fé, como aquele que os dignatários do Templo possuiam.” Fosse como fosse, suas folhas de serviço falaria mais alto no momento da decisão.
Pobre Tiago de Molay! Da janela da sua cela, no edifício do Templo, ele podia ouvir os sinos repicando nas igrejas próximas. Saint- Martin, Saint- Germain-l’Auxerrois, e na catedral de Notre Dame, dominando, imponente, a ilha de La Citê, com os braços do seu novo transepto, construído pelo mestre Pierre de Montreil, chamando os parisienses para a missa. Missa que ele nunca mais assistira, mesmo tendo rogado ao papa que lhe concedesse esse privilégio. Essa era uma das coisas que mais lhe fazia falta. Lembrava, com prazer, as missas rezadas na capela do Templo. Como era linda a liturgia daquelas cerimonias! Mas essa lembrança também vinha contaminada de mágua. Como podiam acusar a ele, que era tão rigoroso e estrito observador dos ritos prescritos pela Santa Madre Igreja, de ser impenitente, idólatra, herege? Ele, que sempre fora tão religioso!
Desde que voltara de Chinon, não vira mais os seus companheiros de infortúnio, embora soubesse que eles também eram prisioneiros no mesmo edifício. Tinham sido encarcerados em celas separadas. Seus algozes ainda temiam uma conspiração.
Foi só em 22 de dezembro de 1313 que ele recebeu a visita de três cardeais enviados por Clemente V, acompanhados por um grupo de prelados, para fazer um novo interrogatório. Eram eles os bispos Arnaud de Farges, sobrinho de Clemente V, Arnaud de Novelli, bispo de Citeaux e Nicolas de Freauville, um padre que já atuara como confessor de Filipe, o Belo.[2]
Molay e seus companheiros, com as marcas das torturas visivelmente expostas em seus corpos mutilados, apresentaram-se frente aos inquisidores, agora cheios de esperança. O processo enfim, seria encerrado. A Ordem já não mais existia. Qual a vantagem de se manter na prisão os comandantes de uma organização que já não mais existia? Não tinham os seus Irmãos, nos outros reinos, e em algumas preceptorias da França, sido absolvidos e autorizados a viver como monges em outras Ordens? Por que não poderia a eles, que tantos serviços prestaram á cristandade, ser deferido o mesmo privilégio? Mais do que a qualquer outro, eles o mereciam.
– Faço saber que vossas vidas serão poupadas se ratificardes as confissões feitas em Chinon, por ocasião do vosso primeiro interrogatório – disse Arnaud de Farges, nomeado presidente da comissão.
Essa proposta foi feita em separado, aos quatro prisioneiros, para que nenhum deles soubesse o que o outro respondeu. As confissões a que o bispo Arnaud se referia eram aquelas que haviam sido feitas a Guilherme de Paris, por ocasião do primeiro interrogatório, quando eles haviam reconhecido a prática dos crimes que lhe haviam sido imputados.
Mais de seis anos de masmorra e torturas haviam destruído os corpos daqueles outrora valentes e bravos cavaleiros. Tiago de Molay, especialmente, era agora um alquebrado ancião de setenta anos, cujo vulto esguio parecia um caniço, encimado por uma cabeça barbada, solto dentro de uma puída camisola branca. Nada do que fora o altivo Grão-Mestre da mais poderosa Ordem de cavalaria do mundo ocidental restava nele. Apenas a vida, que ele tinha a esperança de conservar. Foi por isso que ele, e também os seus Irmãos, confirmaram as confissões feitas em Chinon.
A sentença final saiu a 18 de março de 1314. Ela foi lida publicamente, em cima de um tablado, erguido em frente á praça da Catedral de Notre Dame. Esse tablado era usado normalmente como cadafalso onde se montava o cepo para decapitar os condenados á pena capital.
Perante uma platéia de centenas de curiosos parisienses, que usualmente costumavam se aglomerar ali para ouvir as sentenças do Tribunal de Inquisição e as proclamações reais, Tiago de Molay e seus Irmãos, principais oficiais da Ordem do Templo, acorrentados uns aos outros por correntes presas em seus tornozelos, se postaram em pé, em cima do tablado. Pareciam quatro espectros, egressos de um túmulo, com suas hirsutas barbas encanecidas que caim até o peito. Nas faces encovadas, os olhos mortiços não revelavam mais nenhum brilho. Os corpos macilentos pareciam fazer um último esforço para sustentar as esvoaçantes camisolas, sujas e rotas, que bailavam ao vento.
Não foram poucas as vozes que se levantaram da platéia.
– Idolatras! Usurários! Assassinos! Sodomitas!
– Morte aos hereges!
– Á fogueira com eles!
O bispo Arnaud fez um sinal de silêncio para a turba. Ele ia ler a sentença.
– Estes quatro homens – apontou o bispo Arnaud para os vultos fantasmagóricos que estavam perfilados atrás dele – confessaram pública e abertamente ter cometido os pecados capitais de que foram acusados e nunca mostraram, durante o tempo em que ficaram na prisão, estar arrependidos deles. Por isso, são condenados á prisão perpétua e severa, pelo resto de suas vidas.
A reação da turba oscilava entre o regosijo e a decepção.
– É isso mesmo. Que apodreçam nas masmorras esses hereges malditos! – gritaram aqueles a quem a sentença agradou.
– Não, não! – vociferaram os decepcionados.– Queremos vê-los arder na fogueira.
Hugo de Pairaud e Geoffroy de Gonneville ajoelharam-se no tablado. Deram graças a Deus e louvaram o papa pela sentença que não exigia o preço de suas vidas. Conformavam-se em viver o que restava de suas miseráveis existências na prisão. Pelo menos estarriam vivos e não seriam mais torturados. O pesadelo acabara.
Mas isso não satisfez Tiago de Molay, o Grão- Mestre do Templo, nem Godofredo de Charney, grande Visitador da França. Nesse momento crucial, quando todas suas esperanças se desvaneciam, eles pareciam recuperar o antigo orgulho e a velha coragem que os fizera temíveis nos campos de batalha da Palestina. A camisola rota e encardida que vestiam nem de longe lembrava o garboso manto branco, com a cruz vermelha no peito. Mas nesse momento é como se eles tivessem vestido o glorioso uniforme que os distinguira e voltado aos seus dias de maior glória, quando cavalgavam ao lado de reis, comungavam com os grandes da Igreja e recebiam, submissos, os barões e nobres de todo mundo, que a eles procuravam para pedir favores.
Não. Sete anos de sofrimento, prisão, torturas, não seriam suficientes para purgar os únicos erros de que eles realmente eram culpados? Sim. A teimosia e o orgulho eram os únicos pecados que Tiago de Molay e Godofredo de Charney reconheciam ter, de fato, cometido. Talvez, pensou de Molay, se não ele não tivesse sido tão teimoso, e não deixasse o orgulho falar mais alto, poderia ter aceito a sugestão do papa, de fundir o Templo com o Hospital. Desse modo, teria salvo a Ordem e a vida, dele, e de todos os seus Irmãos. Mas a arrogância da sua posição, o seu orgulho como Mestre do Templo, falara alto. E agora, concluia o velho Mestre com um suspiro, com setenta anos de idade, que podia mais esperar da vida. Seria, então, a morte lenta e dolorosa, na prisão? Não. Era melhor acabar com tudo, imediatamente.
Tiago de Molay olhou para seus dois Irmãos de Ordem, Hugo de Perráud e Godofredo de Gonneville ajoelhados no tablado e fez uma careta de escárnio e desprezo.“Covardes”, murmurou, entre dentes. Ele sabia que uma boa parte da desgraça do Templo se devia aquele Irmão, Hugo de Perraud, que nem agora, na iminência de viver o resto da sua miserável vida como um rato, trancado numa masmorra, ainda assim não era capaz de um gesto de coragem, desafiando o rei que o traiu e o papa que o deserdara.[3]
Depois, olhou para o Irmão Godofredo de Charney e viu nos olhos dele a mesma determinação de dar um fim naquela farsa. Sentiu, naquele momento, fortalecidas as convicções pelas quais se afastara daquela Igreja, pela qual ele dera parte da sua vida. Ela pregava, de fato uma fé falsa. O Cristo que ela pregava era, de fato, um falso deus. Porque o Crsito de Roma não era o mesmo que havia vivido, pregado e morrido na Palestina em nome de um reino de justiça, tolerância, piedade e amor. O Cristo de Roma era apenas um nome pelo qual as pessoas lutavam e morriam, não pela fé que nele tinham, mas pelos lucros que adquiriam com as matanças, as pilhagens, as defraudações, os roubos e as invasões de terras alheias. O Vaticano, Roma, jamais seria o reino com que Jesus sonhou. E o reino dos Templários, governado quiçá, pelos descendentes consanguínios do proprio Jesus, talvez pudesse realizar esse sonho. Mas esse reino, como aquele que o próprio Jesus quis fundar um dia, também morreria antes de nascer. E os verdadeiros cristãos, uma vez Filhos da Viúva, ficariam órfãos novamente. O Templo de Jerusalém teria suas colunas abatidas outra vez. Mas como em todas as vezes anteriores, ele se reergueria.[4]
Esses pensamentos lhe fizeram levantar a cabeça e encher o peito com o antigo orgulho. Foi então que avançou dois passos e encarou a multidão. Godofredo de Charney, ao ver a sua atitude, acompanhou o pensamento do velho amigo e Irmão e também se adiantou. De Molay olhou para ele com ternura e fez-lhe um sinal de agradecimento com a cabeça. E com toda firmeza que ainda lhe restava na voz, gritou para a comissão de bispos que se enfileiravam na frente do tablado :
– Tudo o que disseram aqui é falso! O que confessamos nesses interrogatórios não refletem a verdade dos fatos. Fizemos essas confissões porque fomos persuadidos pelo papa e pelos emissários do rei. Eles nos prometeram indulgências se o fizéssemos. Somos inocentes de tudo quanto nos acusam. Protestamos contra os cardeais e contra o arcebispo de Sens! [5]
As pessoas que estavam mais próximas do tablado ouviram o protesto e começaram a murmurar. Transmitem aos que estão mais longe o lamento dos acusados. De boca em boca começa a correr a informação.
– Eles dizem que são inocentes.
– Estão acusando o papa e o rei de tê-los enganado.
– Dizem que confessaram porque o papa lhes prometeu indulgência.
A multidão se dividiu.
– Soltem os templários!– gritaram alguns.
– Não creiam neles. São hereges – gritaram outros.
– Vamos assar esses malditos – berraram outro tanto de exaltados cidadãos.
─ Não sei, não. Acho que deviam apurar melhor esse negócio ─ murmuraram outros tantos.
Os bispos parecem ficar assustados. Algumas pedras começaram a cair sobre o tablado. Ninguém sabe se elas são dirigidas aos quatro andrajosos condenados, ou ao vistoso séquito de prelados que se movimentava em busca de abrigo. O preboste de Paris, temendo um tumulto que possa por em perigo a vida dos prisioneiros e dos prelados, chamou os soldados. Estes fizeram uma espécie de parede com seus escudos em volta dos prisioneiros e dos membros da comissão. A parede móvel abriu caminho, a golpes de pique, pelo meio da turba irriquieta. Já livres da turba, os prisioneiros foram entregues ao preboste de Paris, que os fez subir na carroça que os trouxera até a praça. Foram levados de volta ás suas celas.
Os bispos entraram na Igreja de Notre Dame para confabular. Depois de duas horas de discussão, decidiram que os prisioneiros deveriam ser ouvidos novamente e a sentença que havia sido prolatada pelo arcebispo de Sens, na qualidade de presidente da Comissão de Inquisição, deveria ser revogada. Imediatamente, a notícia foi levada ao rei.
– Isso não acontecerá! – vociferou Filipe, dando um murro no tampo da imensa mesa de carvalho do seu gabinete de trabalho. – Chame os senhores Nogaret, Valois e Enguerrand– ordenou ao secretário.
– Que dizem dessa notícia? – perguntou o rei aos seus conselheiros. – Esses malditos Templários voltaram atrás em suas confissões novamente e os cardeais estão querendo reabrir todo o processo.
– O papa poderá concordar com eles, agora que os bens do Templo já foram destinados – disse Enguerrand.– Como sabemos, ele sempre foi reticente em condenar essa gente.
– Sire, não podeis deixar que isso aconteça – disse Nogaret. – Perdereis vossa autoridade se isso acontecer.
– Que diz o meu caro irmão, messier de Valois? – perguntou Filipe, olhando para Carlos de Valois, que até então se conservara pensativo e mudo.
– É preciso por um fim nisso, Sire – disse Carlos de Valois. – Talvez fosse melhor libertá-los – Afinal, eles não representam mais nenhum perigo para o reino – completou.
Valois sabia que Filipe, Nogaret e Engerrand jamais concordariam com isso. Falara apenas para contrariar os dois outros conselheiros, de quem tinha ciúme e inveja por causa da influência que detinham junto ao rei. Estes, por sua vez, também tinham consciência de que o irmão do rei nunca fora a favor daquele processo contra os Templários. Ele sempre criticara essa ação, que para ele, era um atentado contra a instituição da cavalaria.
Mas Valois sabia que sua voz, naquele caso, era letra morta.
– Os Templários são hereges. Isso está mais do que provado – insistiu Nogaret.
– Devem ser queimados – completou Enguerand
– Além disso – completou Nogaret, olhando para Valois, – todos os Templários que insistiram em sua inocência foram queimados. Não tem sentido poupar seus comandantes. O povo não vai entender essa justiça, Majestade.
Valois lembrou que somente Tiago de Molay e Godofredo de Charney protestaram contra a sentença. Os outros dois haviam concordado com ela.
– Dareis todos eles como lenha para a vossa fogueira? ─ Perguntou Valois, com sarcasmo, para Nogaret.
Todos olharam para o rei.
– Que sejam ambos queimados, e os outros dois cumpram a prisão perpétua, como foi determinado – disse, finalmente, Filipe, o Belo.
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notas históricas
Resolvida a questão de quem ficaria com os bens do Templo, agora que a Ordem estava praticamente destruída, restava decidir o destino daqueles que a dirigiam. Principalmente Tiago de Molay e seus quatro principais dignatários, que ainda estavam nas masmorras, aguardando o que seria feito com eles.
A Ordem deixara de existir formalmente em 22 de março de 1312, dia em que fora publicada a bula Vox In Excelso. Até então, uma boa parte dos cavaleiros presos desde a fatídica manhã da sexta-feira, 13 de outubro de 1307, já havia morrido na prisão. Alguns tinham sido libertados para viver em conventos, outros simplesmente inocentados e liberados para voltar a vida profana, e um expressivo contingente deles tinha se filiado aos Hospitalários, e um expressivo número deles se filiaram a outras Ordens de cavalearia fundadas por reis para abrigar os Templários proscritos, mas principalmente para abocanhar parte de seus bens.[1]
Mas muitos Templários, em diversas cidades francesas, foram queimados em fogueiras, pois a comissão de Inquisição havia liberado os tribunais locais para prolatar sentenças contra aqueles que se tornassem renitentes e não se confessassem arrependidos de seus infames pecados.
Assim, em muitos dos tribunais provinciais não se julgou necessária uma completa tramitação do devido processo legal. Bastou a pura e simples confissão do acusado, não importando a forma como tivesse sido extraída, para justificar a imposição da pena capital. Os espetáculos das fogueiras, erguidas para queimar os hereges Templários, por toda a França, foram os mais concorridos espetáculos naqueles gloriosos anos do início do século XIV, quando Filipe, o Belo, governou a França.
Mas na prisão do próprio castelo do Templo, em Paris, para onde haviam sido removidos, depois de amargarem quatro anos nas masmorras do Castelo de Chinon, Tiago de Molay, Godofredo de Charney, Godofredo de Gonneville e Hugo de Perráud, ainda não sabiam o que seria feito deles. De certo que foram informados da decisão papal de de 13 de outubro de 1312, na qual a Ordem do Templo tinha sido dissolvida. E também que muitos cavaleiros, em todo o território francês tinham sido queimados, e uma boa parte deles havia morrido nas masmorras em consequência das torturas.
Mas o Grão-Mestre do Templo e seus altos dignatários conservavam ainda a esperança de que suas vidas fossem poupadas. Afinal, tinham uma história que não podia simplesmente ser apagada daquela maneira. O papa, pensava de Molay, “não poderia ser tão insensível a um passado de lutas pela fé, como aquele que os dignatários do Templo possuiam.” Fosse como fosse, suas folhas de serviço falaria mais alto no momento da decisão.
Pobre Tiago de Molay! Da janela da sua cela, no edifício do Templo, ele podia ouvir os sinos repicando nas igrejas próximas. Saint- Martin, Saint- Germain-l’Auxerrois, e na catedral de Notre Dame, dominando, imponente, a ilha de La Citê, com os braços do seu novo transepto, construído pelo mestre Pierre de Montreil, chamando os parisienses para a missa. Missa que ele nunca mais assistira, mesmo tendo rogado ao papa que lhe concedesse esse privilégio. Essa era uma das coisas que mais lhe fazia falta. Lembrava, com prazer, as missas rezadas na capela do Templo. Como era linda a liturgia daquelas cerimonias! Mas essa lembrança também vinha contaminada de mágua. Como podiam acusar a ele, que era tão rigoroso e estrito observador dos ritos prescritos pela Santa Madre Igreja, de ser impenitente, idólatra, herege? Ele, que sempre fora tão religioso!
Desde que voltara de Chinon, não vira mais os seus companheiros de infortúnio, embora soubesse que eles também eram prisioneiros no mesmo edifício. Tinham sido encarcerados em celas separadas. Seus algozes ainda temiam uma conspiração.
Foi só em 22 de dezembro de 1313 que ele recebeu a visita de três cardeais enviados por Clemente V, acompanhados por um grupo de prelados, para fazer um novo interrogatório. Eram eles os bispos Arnaud de Farges, sobrinho de Clemente V, Arnaud de Novelli, bispo de Citeaux e Nicolas de Freauville, um padre que já atuara como confessor de Filipe, o Belo.[2]
Molay e seus companheiros, com as marcas das torturas visivelmente expostas em seus corpos mutilados, apresentaram-se frente aos inquisidores, agora cheios de esperança. O processo enfim, seria encerrado. A Ordem já não mais existia. Qual a vantagem de se manter na prisão os comandantes de uma organização que já não mais existia? Não tinham os seus Irmãos, nos outros reinos, e em algumas preceptorias da França, sido absolvidos e autorizados a viver como monges em outras Ordens? Por que não poderia a eles, que tantos serviços prestaram á cristandade, ser deferido o mesmo privilégio? Mais do que a qualquer outro, eles o mereciam.
– Faço saber que vossas vidas serão poupadas se ratificardes as confissões feitas em Chinon, por ocasião do vosso primeiro interrogatório – disse Arnaud de Farges, nomeado presidente da comissão.
Essa proposta foi feita em separado, aos quatro prisioneiros, para que nenhum deles soubesse o que o outro respondeu. As confissões a que o bispo Arnaud se referia eram aquelas que haviam sido feitas a Guilherme de Paris, por ocasião do primeiro interrogatório, quando eles haviam reconhecido a prática dos crimes que lhe haviam sido imputados.
Mais de seis anos de masmorra e torturas haviam destruído os corpos daqueles outrora valentes e bravos cavaleiros. Tiago de Molay, especialmente, era agora um alquebrado ancião de setenta anos, cujo vulto esguio parecia um caniço, encimado por uma cabeça barbada, solto dentro de uma puída camisola branca. Nada do que fora o altivo Grão-Mestre da mais poderosa Ordem de cavalaria do mundo ocidental restava nele. Apenas a vida, que ele tinha a esperança de conservar. Foi por isso que ele, e também os seus Irmãos, confirmaram as confissões feitas em Chinon.
A sentença final saiu a 18 de março de 1314. Ela foi lida publicamente, em cima de um tablado, erguido em frente á praça da Catedral de Notre Dame. Esse tablado era usado normalmente como cadafalso onde se montava o cepo para decapitar os condenados á pena capital.
Perante uma platéia de centenas de curiosos parisienses, que usualmente costumavam se aglomerar ali para ouvir as sentenças do Tribunal de Inquisição e as proclamações reais, Tiago de Molay e seus Irmãos, principais oficiais da Ordem do Templo, acorrentados uns aos outros por correntes presas em seus tornozelos, se postaram em pé, em cima do tablado. Pareciam quatro espectros, egressos de um túmulo, com suas hirsutas barbas encanecidas que caim até o peito. Nas faces encovadas, os olhos mortiços não revelavam mais nenhum brilho. Os corpos macilentos pareciam fazer um último esforço para sustentar as esvoaçantes camisolas, sujas e rotas, que bailavam ao vento.
Não foram poucas as vozes que se levantaram da platéia.
– Idolatras! Usurários! Assassinos! Sodomitas!
– Morte aos hereges!
– Á fogueira com eles!
O bispo Arnaud fez um sinal de silêncio para a turba. Ele ia ler a sentença.
– Estes quatro homens – apontou o bispo Arnaud para os vultos fantasmagóricos que estavam perfilados atrás dele – confessaram pública e abertamente ter cometido os pecados capitais de que foram acusados e nunca mostraram, durante o tempo em que ficaram na prisão, estar arrependidos deles. Por isso, são condenados á prisão perpétua e severa, pelo resto de suas vidas.
A reação da turba oscilava entre o regosijo e a decepção.
– É isso mesmo. Que apodreçam nas masmorras esses hereges malditos! – gritaram aqueles a quem a sentença agradou.
– Não, não! – vociferaram os decepcionados.– Queremos vê-los arder na fogueira.
Hugo de Pairaud e Geoffroy de Gonneville ajoelharam-se no tablado. Deram graças a Deus e louvaram o papa pela sentença que não exigia o preço de suas vidas. Conformavam-se em viver o que restava de suas miseráveis existências na prisão. Pelo menos estarriam vivos e não seriam mais torturados. O pesadelo acabara.
Mas isso não satisfez Tiago de Molay, o Grão- Mestre do Templo, nem Godofredo de Charney, grande Visitador da França. Nesse momento crucial, quando todas suas esperanças se desvaneciam, eles pareciam recuperar o antigo orgulho e a velha coragem que os fizera temíveis nos campos de batalha da Palestina. A camisola rota e encardida que vestiam nem de longe lembrava o garboso manto branco, com a cruz vermelha no peito. Mas nesse momento é como se eles tivessem vestido o glorioso uniforme que os distinguira e voltado aos seus dias de maior glória, quando cavalgavam ao lado de reis, comungavam com os grandes da Igreja e recebiam, submissos, os barões e nobres de todo mundo, que a eles procuravam para pedir favores.
Não. Sete anos de sofrimento, prisão, torturas, não seriam suficientes para purgar os únicos erros de que eles realmente eram culpados? Sim. A teimosia e o orgulho eram os únicos pecados que Tiago de Molay e Godofredo de Charney reconheciam ter, de fato, cometido. Talvez, pensou de Molay, se não ele não tivesse sido tão teimoso, e não deixasse o orgulho falar mais alto, poderia ter aceito a sugestão do papa, de fundir o Templo com o Hospital. Desse modo, teria salvo a Ordem e a vida, dele, e de todos os seus Irmãos. Mas a arrogância da sua posição, o seu orgulho como Mestre do Templo, falara alto. E agora, concluia o velho Mestre com um suspiro, com setenta anos de idade, que podia mais esperar da vida. Seria, então, a morte lenta e dolorosa, na prisão? Não. Era melhor acabar com tudo, imediatamente.
Tiago de Molay olhou para seus dois Irmãos de Ordem, Hugo de Perráud e Godofredo de Gonneville ajoelhados no tablado e fez uma careta de escárnio e desprezo.“Covardes”, murmurou, entre dentes. Ele sabia que uma boa parte da desgraça do Templo se devia aquele Irmão, Hugo de Perraud, que nem agora, na iminência de viver o resto da sua miserável vida como um rato, trancado numa masmorra, ainda assim não era capaz de um gesto de coragem, desafiando o rei que o traiu e o papa que o deserdara.[3]
Depois, olhou para o Irmão Godofredo de Charney e viu nos olhos dele a mesma determinação de dar um fim naquela farsa. Sentiu, naquele momento, fortalecidas as convicções pelas quais se afastara daquela Igreja, pela qual ele dera parte da sua vida. Ela pregava, de fato uma fé falsa. O Cristo que ela pregava era, de fato, um falso deus. Porque o Crsito de Roma não era o mesmo que havia vivido, pregado e morrido na Palestina em nome de um reino de justiça, tolerância, piedade e amor. O Cristo de Roma era apenas um nome pelo qual as pessoas lutavam e morriam, não pela fé que nele tinham, mas pelos lucros que adquiriam com as matanças, as pilhagens, as defraudações, os roubos e as invasões de terras alheias. O Vaticano, Roma, jamais seria o reino com que Jesus sonhou. E o reino dos Templários, governado quiçá, pelos descendentes consanguínios do proprio Jesus, talvez pudesse realizar esse sonho. Mas esse reino, como aquele que o próprio Jesus quis fundar um dia, também morreria antes de nascer. E os verdadeiros cristãos, uma vez Filhos da Viúva, ficariam órfãos novamente. O Templo de Jerusalém teria suas colunas abatidas outra vez. Mas como em todas as vezes anteriores, ele se reergueria.[4]
Esses pensamentos lhe fizeram levantar a cabeça e encher o peito com o antigo orgulho. Foi então que avançou dois passos e encarou a multidão. Godofredo de Charney, ao ver a sua atitude, acompanhou o pensamento do velho amigo e Irmão e também se adiantou. De Molay olhou para ele com ternura e fez-lhe um sinal de agradecimento com a cabeça. E com toda firmeza que ainda lhe restava na voz, gritou para a comissão de bispos que se enfileiravam na frente do tablado :
– Tudo o que disseram aqui é falso! O que confessamos nesses interrogatórios não refletem a verdade dos fatos. Fizemos essas confissões porque fomos persuadidos pelo papa e pelos emissários do rei. Eles nos prometeram indulgências se o fizéssemos. Somos inocentes de tudo quanto nos acusam. Protestamos contra os cardeais e contra o arcebispo de Sens! [5]
As pessoas que estavam mais próximas do tablado ouviram o protesto e começaram a murmurar. Transmitem aos que estão mais longe o lamento dos acusados. De boca em boca começa a correr a informação.
– Eles dizem que são inocentes.
– Estão acusando o papa e o rei de tê-los enganado.
– Dizem que confessaram porque o papa lhes prometeu indulgência.
A multidão se dividiu.
– Soltem os templários!– gritaram alguns.
– Não creiam neles. São hereges – gritaram outros.
– Vamos assar esses malditos – berraram outro tanto de exaltados cidadãos.
─ Não sei, não. Acho que deviam apurar melhor esse negócio ─ murmuraram outros tantos.
Os bispos parecem ficar assustados. Algumas pedras começaram a cair sobre o tablado. Ninguém sabe se elas são dirigidas aos quatro andrajosos condenados, ou ao vistoso séquito de prelados que se movimentava em busca de abrigo. O preboste de Paris, temendo um tumulto que possa por em perigo a vida dos prisioneiros e dos prelados, chamou os soldados. Estes fizeram uma espécie de parede com seus escudos em volta dos prisioneiros e dos membros da comissão. A parede móvel abriu caminho, a golpes de pique, pelo meio da turba irriquieta. Já livres da turba, os prisioneiros foram entregues ao preboste de Paris, que os fez subir na carroça que os trouxera até a praça. Foram levados de volta ás suas celas.
Os bispos entraram na Igreja de Notre Dame para confabular. Depois de duas horas de discussão, decidiram que os prisioneiros deveriam ser ouvidos novamente e a sentença que havia sido prolatada pelo arcebispo de Sens, na qualidade de presidente da Comissão de Inquisição, deveria ser revogada. Imediatamente, a notícia foi levada ao rei.
– Isso não acontecerá! – vociferou Filipe, dando um murro no tampo da imensa mesa de carvalho do seu gabinete de trabalho. – Chame os senhores Nogaret, Valois e Enguerrand– ordenou ao secretário.
– Que dizem dessa notícia? – perguntou o rei aos seus conselheiros. – Esses malditos Templários voltaram atrás em suas confissões novamente e os cardeais estão querendo reabrir todo o processo.
– O papa poderá concordar com eles, agora que os bens do Templo já foram destinados – disse Enguerrand.– Como sabemos, ele sempre foi reticente em condenar essa gente.
– Sire, não podeis deixar que isso aconteça – disse Nogaret. – Perdereis vossa autoridade se isso acontecer.
– Que diz o meu caro irmão, messier de Valois? – perguntou Filipe, olhando para Carlos de Valois, que até então se conservara pensativo e mudo.
– É preciso por um fim nisso, Sire – disse Carlos de Valois. – Talvez fosse melhor libertá-los – Afinal, eles não representam mais nenhum perigo para o reino – completou.
Valois sabia que Filipe, Nogaret e Engerrand jamais concordariam com isso. Falara apenas para contrariar os dois outros conselheiros, de quem tinha ciúme e inveja por causa da influência que detinham junto ao rei. Estes, por sua vez, também tinham consciência de que o irmão do rei nunca fora a favor daquele processo contra os Templários. Ele sempre criticara essa ação, que para ele, era um atentado contra a instituição da cavalaria.
Mas Valois sabia que sua voz, naquele caso, era letra morta.
– Os Templários são hereges. Isso está mais do que provado – insistiu Nogaret.
– Devem ser queimados – completou Enguerand
– Além disso – completou Nogaret, olhando para Valois, – todos os Templários que insistiram em sua inocência foram queimados. Não tem sentido poupar seus comandantes. O povo não vai entender essa justiça, Majestade.
Valois lembrou que somente Tiago de Molay e Godofredo de Charney protestaram contra a sentença. Os outros dois haviam concordado com ela.
– Dareis todos eles como lenha para a vossa fogueira? ─ Perguntou Valois, com sarcasmo, para Nogaret.
Todos olharam para o rei.
– Que sejam ambos queimados, e os outros dois cumpram a prisão perpétua, como foi determinado – disse, finalmente, Filipe, o Belo.
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notas históricas
[1 Na Inglaterra, por exemplo, Eduardo II já havia, nessa altura, se apropriado da maioria das propriedades templárias e arrendado a vários nobres. Um conflito desse rei com a Igreja e os Hospitalários estendeu-se até 1336, quando as partes assinaram um acordo. Em Aragão, onde os Templários possuíam muitas propriedades, o conflito entre a coroa aragonesa, a Igreja e o Hospital, pela posse dos bens do Templo, só foi resolvido pela criação, por parte do rei Jaime, de uma nova Ordem de monges cavaleiros, a Ordem de Calatrava. EmPortugal, onde a presença templária era importante, o rei Don Dinis criou uma nova Ordem de cavalaria para abrigar os Templários proscritos. Foi a Ordem dos Cavaleiros de Cristo, que na prática, eram os Templários com outro nome. A par das ações militares, para livrar Portugal da presença dos mouros, os Templários se dedicaram ao desenvolvimento da navegação e do comércio. Foi baseado no conhecimento desses monges cavaleiros que os portugueses desenvolveram a sua formidável aptidão para a navegação e para as conquistas além-mar. Portugal é, por excelência, um país templário. Na Escócia, o rebelde rei escocês Robert Bruce estava em guerra com a Inglaterra de Eduardo II e acolheu os Templarios proscritos com muita amabilidade. Algumas tradições informam até que um contingente de cavaleiros Templários lutou ao seu lado na na decisiva batalha de Bannockburn, na qual os escoceses, em menor número, impuseram uma grande derrota aos ingleses. Para abrigar os cavaleiros do Templo Bruce fundou uma Ordem de Cavalaria, a chamada Ordem de Santo André do Cardo, que na prática deu continuidade ás tradições do Templo em terras escocesas.
[2] Piers Paul Read- op citado, pg. 318
[3] Ver no capítulo II, a razão da dissenção entre Tiago de Molay e Hugo de Perraud.
[4] Sobre o apelido “Filhos da Viúva”, aplicado aos Templários, Ver nota 57, capítulo XI. Quanto á destruição e reconstrução do Templo de Jerusalém, essa metáfora é de grande utilização entre os maçons, supostos herdeiros dos Templários, para quem o Templo de Salomão é o arquétipo da própria humanidade autêntica, que é constantemente erguida pelos “obreiros da Arte Real” e destruída pela ação dos bárbaros ignorantes. Construir e reconstruir Jerusalém, tantas vezes quanto necessário, é a tarefa da maçonaria. Historicamente, o Templo de Salomão foi destruído pelos caldeus e reconstruido por Zorobabel. Depois foi derrubado pelas legiões romanas de Tito e reconstruído por Herodes, o Grande. Na guerra de 66-70 entre judeus e romanos, ele foi destruído novamente pelos romanos e nunca mais foi reconstruído. No lugar dele, hoje, ergue-se a famosa Mesquita da Cúpula Dourada. Simbolicamente, a fundação da Ordem do Templo, com sede nas ruínas do antigo Templo reconstruído por Herodes, tem o significado de uma reconstrução. Por isso De Molay considera a extinção da Ordem do Templo uma nova destruição do Templo de Jerusalém.
[5] Ou seja, Guilherme de Marigny, irmão de Engerrand de Marigny e cardeal responsável pela diocese de Sens, sob cuja administração estava a Igreja de Paris. O Arcebispo de Sens era a autoridade eclesiástica responsável pela assinatura da sentença final de todos os condenado pela Inquisição naquela diocese.