A VITÓRIA DO REI
Filipe, o Belo, e seu fiel ministro Guilherme de Nogaret, haviam obtido o que queriam. O Templo, em meados de 1308, já estava virtualmente destruído. Com todos os bens móveis e imóveis, direitos, créditos, haveres e praticamente tudo que tivesse valor, sob sua guarda, o rei podia deixar agora, a cargo da Igreja, a condução do inquérito. Nada que fosse feito dali para diante ─ não importava mais o que fosse apurado ─ mudaria o destino da Ordem, nem alteraria o que tinha sido feito, pensava o rei.
Clemente V tinha aplacado sua consciência com o depoimento dos setenta e um Templários, que com poucas defecções, haviam admitido a prática de alguns comportamentos pecaminosos no interior da Ordem, especialmente por ocasião da recepção dos noviços. Não era suficiente para condenar os templários por heresia, sodomia, idolatria e outros crimes capitais, como Filipe, o Belo, pretendia, mas justificava a abertura do processo contra eles. Por enquanto isso seria suficiente. Aplacaria a sanha do rei e salvaguardaria a sua posição no caso, que ainda era recalcitrante.
Podia, agora, posar como juiz imparcial e ordenar a condução de um inquérito verdadeiro, de acordo com o devido processo legal. Assim, os interrogatórios e os atos processuais continuariam, a intervalos, até o dia 18 de março de 1313, quando os altos dignatários do Templo receberiam a sentença final.
Todavia, entre 17 de agosto de 1308 e 18 de março de 1313, muita água ainda rolaria sobre essa ponte, e muitas idas e vindas no processo dos Templários ocorreria. O Papa havia instruído seus cardeais a tentar convencer os altos dignatários do Templo que uma confissão espontânea seria mais conveniente para eles, pois teriam suas vidas poupadas e suas almas salvas por meio do sacramento e da expiação. Mandou ressaltar que de nada adiantaria negar coisas que já estavam sobejamente provadas, já que havia muitas provas para dar aos julgadores suficientes elementos de convicção. Em outras palavras, o caso já estava praticamente julgado, e o que restava agora, para os acusados, era a alternativa de que eles se tornassem convictos e apelassem para a única defesa que lhes restava, ou seja, o reconhecimento das faltas, o arrependimento e o pedido de clemência.
– A Igreja não deseja o mal para seus filhos – disse o bispo Estevão de Suisy, aos recalcitrantrantes prisioneiros, que ainda se obstinavam a negar todas as acusações. – Todos os homens são passíveis de cometer pecado, e serem desviados dos caminhos de Deus. O que não se perdoa é o fato de eles permanescerem no pecado quando se lhes mostram o caminho correto.
– Os desvios de conduta praticados pelos Irmãos do Templo já foram suficientemente verificados e comprovados, e ossenhores mesmos já os confessaram, embora depois tenham se retratado – continuou o bispo. – Cabe, agora, aos senhores, pronunciar os atos de contrição e mediante sincero arrependimento, voltar ao seio da Santa Madre Igreja. Com isso – enfatizou o bispo – também suas vidas serão poupadas e os senhores não sofrerão mais os constrangimentos a que foram submetidos até agora.
Tiago de Molay era um sujeito analfabeto e bronco, mas tinha uma aguda percepção da realidade. Por isso não deixou de observar a mudança de estratégia que se operara depois das oitivas de Chinon. Até então os inquisidores tinham mostrado uma boa disposição com eles, pois os trataram com brandura e comiseração, dando a entender que os pecados cometidos pela Ordem não eram tão graves e poderiam ser perdoados, sem maiores consequências para os Irmãos. Haviam até questionado a legalidade do ato do rei e mostraram-se indignados contra o uso da tortura. Mas agora era a própria Igreja que pedia a colaboração deles no sentido de dar a esse inquérito uma aparência de legalidade.
– Os senhores agora, estão nas mãos da Igreja, e suas vidas e bens estarão salvaguardados. Poderão, portanto, falar livremente e sem constrangimentos. Suas declarações serão dadas na presença de notários públicos e vários outros homens de bem, para que não se pairem nenhuma dúvida sobre o que foi dito e registrado ─ informou Estevão de Suisy.
O porquê de tudo isso é que de Molay não compreendia. Já não dissera, ele e seus comandados, tudo que a Igreja queria que dissessem? Que mais a Igreja esperava que ele e seus Irmãos confessassem? Os inquisidores do papa, diferente de Guilherme de Paris e os esbirros de Filipe, não perguntaram pelo tesouro do Templo. Nem fizeram insinuações sobre o suposto desejo dos Templários de se desligarem da Igreja e fundar um estado independente, semelhante aos que os cavaleiros teutônicos haviam feito nos Balcãs. Sequer questionaram sobre as estranhas doutrinas que diziam ser professadas pelos Templários. A questão da negação de Cristo e as cuspidelas na cruz, que podiam ser consideradas como atos de desrespeito e até marcados como heréticos, foram explicadas pelos altos dignatários do Templo como sendo uma espécie de prova pelas quais os candidatos a Irmãos do Templo passavam.
─ Quando alguns Irmãos foram capturados pelos sarracenos ─ disse de Molay aos inquisidores ─ eles foram submetidos á tortura e sofrimentos, com seus carrascos sempre incitando-os a que negassem sua fé. Prometiam que, se negassem Cristo, e desprezassem a cruz, suas vidas seriam poupadas. Vários Irmãos o fizeram. Foi por isso que o Irmão Blanchefort, quando se tornou Grão-Mestre da Ordem, instituiu essa prova na recepção dos noviços. Aqueles que o fazem sem contestar ─ completou de Molay ─ demonstram não estar seguros na sua fé. Assim, embora possam ser recepcionados na Ordem, jamais atingirão cargos de importância dentro dela.
A explicação deve ter sido considerada plausível pelos inquisidores de Chinon, porquanto eles não insistiram no assunto, parecendo dar-se por satisfeitos com a justificativa. Era uma espécie de prova, portanto, a exigência de que o noviço negasse Cristo e cuspisse na cruz. Estranha forma de demonstrar uma profissão de fé, mas no todo, se era isso mesmo, não era coisa tão grave que não pudesse ser corrigida com arrependimento e penitência, coisa que os altos dignatários do Templo se mostraram dispostos a fazer.
Molay sentia uma mudança de disposição nos inquisidores. Como dissera Estavão de Suisy, eles teriam que repetir suas declarações perante notários públicos e homens de bem. Seria também aberta a possibilidade para que qualquer Irmão Templário que tivesse qualquer coisa a dizer em defesa da Ordem, que se apresentasse, sem o perido de ser preso.
Para que tudo isso, pensou de Molay. Não estava tudo esclarecido? Não. O que os inquisidores estavam lhe dizendo é que a Ordem iria mesmo ser submetida a uma investigação formal e que tudo deveria obedecer ao devido processo legal. Para isso seria feito um inquérito, depois uma acusação formal, com o devido direito á defesa, e finalmente um julgamento, onde seria emitida uma sentença.
─ Meu Deus ─ murmurou de Molay ao saber que continuaria preso e seria interrogado, e talvez torturado de novo: ─ Dai-me forças para suportar tudo isso.
Os homens de bem, que o bispo Estevão se referira, incluiam, naturalmente, Guilherme de Nogaret e Guilherme de Paris, além de vários prelados, advogados e autoridades civis e eclesiáticas. Foram esses dois cavalheiros que levaram, com indisfarçavel alegria, a Filipe o Belo, que o papa decidira submeter a Ordem do Templo e seus membros ao julgamento eclesiástico.
– A sorte do Templo está selada – disse Nogaret a Filipe.─ Vossa Mejestade venceu mais uma vez.
─ A verdadeira fé sempre vence, Senhor de Nogaret ─ respondeu Filipe, com certo sarcasmo.
Na verdade, tratavase de uma vitória do do rei.
Na maioria desses reinos, entretanto, o destino desses famosos cavaleiros, que durante mais de dois séculos despertaram inveja, amor, ódio, cobiça e os mais intrigantes mistérios e especulações, não foi o mesmo que Filipe esperava. Em Chipre, onde havia uma concentração importante de Templários, hs houve uma pequena resistência da guarnição, mas foi prontamente abafada pelas forças do rei daquela ilha. Oitenta e três cavaleiros e cinco sargentos foram presos e colocados sobre prisão domiciliar. Não há registro de que tivessem sido torturados ou submetidos a qualquer constrangimento físico ou moral. Todos negaram as acusações. O relatório dos inquisidores, com respeito aos Templários de Chipre não deve ter agradado ao papa, pois ele ordenou um novo inquérito, desta vez com o uso de todos os recursos disponíveis, o que significava o uso da tortura. Isso mostrava o quanto o papa mudara de ideia em relação ao destino da Ordem e á sorte de seus membros.
Em outros reinos, o processo correu de acordo com as disposições políticas das autoridades envolvidas. Em Nápoles, onde a presença templária era importante, o rei Carlos II, primo de Filipe, o Belo, seguiu a risca as orientações de seu parente. Torturou os acusados e obteve confissões importantes para o objetivo desejado por seu primo. Nos estados controlados pela Igreja, a tortura também foi usada indiscriminadamente pelos inquisidores. Foi nos feudos pontifícios que se obtiveram as confissões mais completas dos pecados supostamente cometidos pelos Templários. Mas em muitos outros estados, onde a presença templária era importante, houve luta e até principes, bispos e outras autoridades que se pronunciaram em defesa do Templo. As coisas não correram da maneira como Filipe, o Belo, e agora, o amolecido papa Clemente V desejavam. Em Aragão, onde os Templários se constituíam numa força militar importante na luta contra os mouros, o Rei Jaime II teve muitas dificuldades para cumprir a bula papal. Os Templários resistiram e apelaram para as armas. O conflito durou até fins de 1309, quando a última fortaleza templária em terras aragonesas foi finalmente tomada. Todavia, como no reino de Aragão a tortura era proibida, nenhuma confissão importante foi obtida pelos inquisidores. No resto dos reinos ibéricos o resultado foi semelhante, e mesmo com o uso da tortura, a Inquisição não conseguiu encontrar nenhuma prova da heresia templária. A mesma coisa aconteceu nas Ilhas Britânicas, onde a Ordem do Templo desempenhava um papel de grande importância na vida administrativa e econômica nos reinos existentes naquela ilha. O próprio Grão-Mestre inglês, Guilherme de La More fora conselheiro do Rei Eduardo I. Eduardo II, que a reinava na ocasião em que o papa emitiu a sua bula ordenando a prisão dos Templários, cumpriu as disposições papais, mas como n Espanha e outros locais onde não se admitia tortura para obter confissões, os inquisidores nada obtiveram. Na Escócia e na Irlanda, os processo contra os Templários também não teve o resultado que Filipe e o pala esperavam. Como não se encontrasse nada que incriminasse, de forma definitiva os Templários nas Ilhas Britânicas, foi realizado um Concílio na cidade de York, no qual se propôs a todo Templário que quisesse dar fim ao processo, que fizesse uma declaração pública, que conhecia as acusações e, não podendo provar que era inocente ou culpado delas, submetia-se, de bom grado, á Graça Divina e ás decisões do Concílio. Os que aceitaram a fórmula, prevista no direito consuetudinário inglês, e aceita pelo direito canônico, considerava-se que todos eles estavam reconciliados com a Igreja e podiam ser enviados para viver em instituições monásticas de sua escolha. Em consequência, a maioria dos Templários ingleses, escoceses e irlandeses foram libertados e se tornaram monges de outras Ordens. [2]
Mas de qualquer forma, a Ordem do Templo, embora ainda não oficialmente extinta naquele momento, era uma organização morta. O inquérito prosseguiria, entretanto, com a oitiva de testemunhas, em todas as dioceses da França e dos demais reinos onde havia preceptorias templárias, e no ultramar.[3]
Foi declarado, por todo o mundo cristão, que todo aquele que tivesse alguma informação que pudesse ser útil na defesa da Ordem que a apresentasse. Dos quatro grandes dignatários da Ordem, somente Tiago de Molay se mostrou disposto a fazê-lo.
– Eminências – disse o idoso e agora alquebrado Grão-Mestre – é inconcebível que uma Ordem como a nossa esteja em semelhante situação e que a Igreja queira destruí-la depois de ela ter prestado tantos serviços á causa da Igreja e da cristandade. – Eu seria um ser vil e miserável se não o fizesse, e por todos asssim considerado, depois de ter sido tão distinguido e honrado por ela.
– Entretanto – disse o venerando ancião, com lágrimas nos olhos – devo confessar-vos a minha incompetência nessas matérias, pois como todos vós sabeis, não tenho letras suficientes para dizer á vossas Iminências o que me passa no coração. – Reconheço – continuou o Grão-Mestre – que a nossa Ordem pecou em não contratar jurisconsultos e advogados, como fez o Hospital, para aconselhar-nos nos assuntos legais e canônicos. Se o tivéssemos feito – lamentou – certamente não estaríamos nesta situação, respondendo por crimes, que aos nossos olhos parecem uma vilania.[4]
Era, como deve ter parecido aos prelados ali reunidos, uma tardia declaração de reconhecimento da obsolecência da Ordem e da incompetência administrativa de seus dirigentes. Em nada ajudava na defesa da organização aquela confissão. Ao contrário só reforçava a ideia de que ela se tornara obsoleta e inútil para os propósitos para os quais fora fundada. Era uma situação que caia bem aos objetivos e propósitos de Filipe e eles não perderam a oportunidade. Ao terminar o ano de 1308, a sorte dos Templários estava selada. Mas, para a história, era preciso salvaguardar as aparências. Assim, o processo se arrastaria por mais quatro anos até que Clemente V desse uma decisão final sobre o destino da Ordem. E depois, cerca de mais dois anos de sofrimento para os seus comandantes, até que, para eles, tudo se consumasse.
Filipe, o Belo, e seu fiel ministro Guilherme de Nogaret, haviam obtido o que queriam. O Templo, em meados de 1308, já estava virtualmente destruído. Com todos os bens móveis e imóveis, direitos, créditos, haveres e praticamente tudo que tivesse valor, sob sua guarda, o rei podia deixar agora, a cargo da Igreja, a condução do inquérito. Nada que fosse feito dali para diante ─ não importava mais o que fosse apurado ─ mudaria o destino da Ordem, nem alteraria o que tinha sido feito, pensava o rei.
Clemente V tinha aplacado sua consciência com o depoimento dos setenta e um Templários, que com poucas defecções, haviam admitido a prática de alguns comportamentos pecaminosos no interior da Ordem, especialmente por ocasião da recepção dos noviços. Não era suficiente para condenar os templários por heresia, sodomia, idolatria e outros crimes capitais, como Filipe, o Belo, pretendia, mas justificava a abertura do processo contra eles. Por enquanto isso seria suficiente. Aplacaria a sanha do rei e salvaguardaria a sua posição no caso, que ainda era recalcitrante.
Podia, agora, posar como juiz imparcial e ordenar a condução de um inquérito verdadeiro, de acordo com o devido processo legal. Assim, os interrogatórios e os atos processuais continuariam, a intervalos, até o dia 18 de março de 1313, quando os altos dignatários do Templo receberiam a sentença final.
Todavia, entre 17 de agosto de 1308 e 18 de março de 1313, muita água ainda rolaria sobre essa ponte, e muitas idas e vindas no processo dos Templários ocorreria. O Papa havia instruído seus cardeais a tentar convencer os altos dignatários do Templo que uma confissão espontânea seria mais conveniente para eles, pois teriam suas vidas poupadas e suas almas salvas por meio do sacramento e da expiação. Mandou ressaltar que de nada adiantaria negar coisas que já estavam sobejamente provadas, já que havia muitas provas para dar aos julgadores suficientes elementos de convicção. Em outras palavras, o caso já estava praticamente julgado, e o que restava agora, para os acusados, era a alternativa de que eles se tornassem convictos e apelassem para a única defesa que lhes restava, ou seja, o reconhecimento das faltas, o arrependimento e o pedido de clemência.
– A Igreja não deseja o mal para seus filhos – disse o bispo Estevão de Suisy, aos recalcitrantrantes prisioneiros, que ainda se obstinavam a negar todas as acusações. – Todos os homens são passíveis de cometer pecado, e serem desviados dos caminhos de Deus. O que não se perdoa é o fato de eles permanescerem no pecado quando se lhes mostram o caminho correto.
– Os desvios de conduta praticados pelos Irmãos do Templo já foram suficientemente verificados e comprovados, e ossenhores mesmos já os confessaram, embora depois tenham se retratado – continuou o bispo. – Cabe, agora, aos senhores, pronunciar os atos de contrição e mediante sincero arrependimento, voltar ao seio da Santa Madre Igreja. Com isso – enfatizou o bispo – também suas vidas serão poupadas e os senhores não sofrerão mais os constrangimentos a que foram submetidos até agora.
Tiago de Molay era um sujeito analfabeto e bronco, mas tinha uma aguda percepção da realidade. Por isso não deixou de observar a mudança de estratégia que se operara depois das oitivas de Chinon. Até então os inquisidores tinham mostrado uma boa disposição com eles, pois os trataram com brandura e comiseração, dando a entender que os pecados cometidos pela Ordem não eram tão graves e poderiam ser perdoados, sem maiores consequências para os Irmãos. Haviam até questionado a legalidade do ato do rei e mostraram-se indignados contra o uso da tortura. Mas agora era a própria Igreja que pedia a colaboração deles no sentido de dar a esse inquérito uma aparência de legalidade.
– Os senhores agora, estão nas mãos da Igreja, e suas vidas e bens estarão salvaguardados. Poderão, portanto, falar livremente e sem constrangimentos. Suas declarações serão dadas na presença de notários públicos e vários outros homens de bem, para que não se pairem nenhuma dúvida sobre o que foi dito e registrado ─ informou Estevão de Suisy.
O porquê de tudo isso é que de Molay não compreendia. Já não dissera, ele e seus comandados, tudo que a Igreja queria que dissessem? Que mais a Igreja esperava que ele e seus Irmãos confessassem? Os inquisidores do papa, diferente de Guilherme de Paris e os esbirros de Filipe, não perguntaram pelo tesouro do Templo. Nem fizeram insinuações sobre o suposto desejo dos Templários de se desligarem da Igreja e fundar um estado independente, semelhante aos que os cavaleiros teutônicos haviam feito nos Balcãs. Sequer questionaram sobre as estranhas doutrinas que diziam ser professadas pelos Templários. A questão da negação de Cristo e as cuspidelas na cruz, que podiam ser consideradas como atos de desrespeito e até marcados como heréticos, foram explicadas pelos altos dignatários do Templo como sendo uma espécie de prova pelas quais os candidatos a Irmãos do Templo passavam.
─ Quando alguns Irmãos foram capturados pelos sarracenos ─ disse de Molay aos inquisidores ─ eles foram submetidos á tortura e sofrimentos, com seus carrascos sempre incitando-os a que negassem sua fé. Prometiam que, se negassem Cristo, e desprezassem a cruz, suas vidas seriam poupadas. Vários Irmãos o fizeram. Foi por isso que o Irmão Blanchefort, quando se tornou Grão-Mestre da Ordem, instituiu essa prova na recepção dos noviços. Aqueles que o fazem sem contestar ─ completou de Molay ─ demonstram não estar seguros na sua fé. Assim, embora possam ser recepcionados na Ordem, jamais atingirão cargos de importância dentro dela.
A explicação deve ter sido considerada plausível pelos inquisidores de Chinon, porquanto eles não insistiram no assunto, parecendo dar-se por satisfeitos com a justificativa. Era uma espécie de prova, portanto, a exigência de que o noviço negasse Cristo e cuspisse na cruz. Estranha forma de demonstrar uma profissão de fé, mas no todo, se era isso mesmo, não era coisa tão grave que não pudesse ser corrigida com arrependimento e penitência, coisa que os altos dignatários do Templo se mostraram dispostos a fazer.
Molay sentia uma mudança de disposição nos inquisidores. Como dissera Estavão de Suisy, eles teriam que repetir suas declarações perante notários públicos e homens de bem. Seria também aberta a possibilidade para que qualquer Irmão Templário que tivesse qualquer coisa a dizer em defesa da Ordem, que se apresentasse, sem o perido de ser preso.
Para que tudo isso, pensou de Molay. Não estava tudo esclarecido? Não. O que os inquisidores estavam lhe dizendo é que a Ordem iria mesmo ser submetida a uma investigação formal e que tudo deveria obedecer ao devido processo legal. Para isso seria feito um inquérito, depois uma acusação formal, com o devido direito á defesa, e finalmente um julgamento, onde seria emitida uma sentença.
─ Meu Deus ─ murmurou de Molay ao saber que continuaria preso e seria interrogado, e talvez torturado de novo: ─ Dai-me forças para suportar tudo isso.
Os homens de bem, que o bispo Estevão se referira, incluiam, naturalmente, Guilherme de Nogaret e Guilherme de Paris, além de vários prelados, advogados e autoridades civis e eclesiáticas. Foram esses dois cavalheiros que levaram, com indisfarçavel alegria, a Filipe o Belo, que o papa decidira submeter a Ordem do Templo e seus membros ao julgamento eclesiástico.
– A sorte do Templo está selada – disse Nogaret a Filipe.─ Vossa Mejestade venceu mais uma vez.
─ A verdadeira fé sempre vence, Senhor de Nogaret ─ respondeu Filipe, com certo sarcasmo.
Na verdade, tratavase de uma vitória do do rei.
∆
Filipe havia escrito a todos os reis cristãos para que seguissem seus passos e suprimissem a Ordem em seus respectivos reinos. O Papa havia feito o mesmo em sua bula de 22 de novembro de 1307. Assim, em toda a cristandade, os Templários estavam, agora, na ilegalidade.[1]Na maioria desses reinos, entretanto, o destino desses famosos cavaleiros, que durante mais de dois séculos despertaram inveja, amor, ódio, cobiça e os mais intrigantes mistérios e especulações, não foi o mesmo que Filipe esperava. Em Chipre, onde havia uma concentração importante de Templários, hs houve uma pequena resistência da guarnição, mas foi prontamente abafada pelas forças do rei daquela ilha. Oitenta e três cavaleiros e cinco sargentos foram presos e colocados sobre prisão domiciliar. Não há registro de que tivessem sido torturados ou submetidos a qualquer constrangimento físico ou moral. Todos negaram as acusações. O relatório dos inquisidores, com respeito aos Templários de Chipre não deve ter agradado ao papa, pois ele ordenou um novo inquérito, desta vez com o uso de todos os recursos disponíveis, o que significava o uso da tortura. Isso mostrava o quanto o papa mudara de ideia em relação ao destino da Ordem e á sorte de seus membros.
Em outros reinos, o processo correu de acordo com as disposições políticas das autoridades envolvidas. Em Nápoles, onde a presença templária era importante, o rei Carlos II, primo de Filipe, o Belo, seguiu a risca as orientações de seu parente. Torturou os acusados e obteve confissões importantes para o objetivo desejado por seu primo. Nos estados controlados pela Igreja, a tortura também foi usada indiscriminadamente pelos inquisidores. Foi nos feudos pontifícios que se obtiveram as confissões mais completas dos pecados supostamente cometidos pelos Templários. Mas em muitos outros estados, onde a presença templária era importante, houve luta e até principes, bispos e outras autoridades que se pronunciaram em defesa do Templo. As coisas não correram da maneira como Filipe, o Belo, e agora, o amolecido papa Clemente V desejavam. Em Aragão, onde os Templários se constituíam numa força militar importante na luta contra os mouros, o Rei Jaime II teve muitas dificuldades para cumprir a bula papal. Os Templários resistiram e apelaram para as armas. O conflito durou até fins de 1309, quando a última fortaleza templária em terras aragonesas foi finalmente tomada. Todavia, como no reino de Aragão a tortura era proibida, nenhuma confissão importante foi obtida pelos inquisidores. No resto dos reinos ibéricos o resultado foi semelhante, e mesmo com o uso da tortura, a Inquisição não conseguiu encontrar nenhuma prova da heresia templária. A mesma coisa aconteceu nas Ilhas Britânicas, onde a Ordem do Templo desempenhava um papel de grande importância na vida administrativa e econômica nos reinos existentes naquela ilha. O próprio Grão-Mestre inglês, Guilherme de La More fora conselheiro do Rei Eduardo I. Eduardo II, que a reinava na ocasião em que o papa emitiu a sua bula ordenando a prisão dos Templários, cumpriu as disposições papais, mas como n Espanha e outros locais onde não se admitia tortura para obter confissões, os inquisidores nada obtiveram. Na Escócia e na Irlanda, os processo contra os Templários também não teve o resultado que Filipe e o pala esperavam. Como não se encontrasse nada que incriminasse, de forma definitiva os Templários nas Ilhas Britânicas, foi realizado um Concílio na cidade de York, no qual se propôs a todo Templário que quisesse dar fim ao processo, que fizesse uma declaração pública, que conhecia as acusações e, não podendo provar que era inocente ou culpado delas, submetia-se, de bom grado, á Graça Divina e ás decisões do Concílio. Os que aceitaram a fórmula, prevista no direito consuetudinário inglês, e aceita pelo direito canônico, considerava-se que todos eles estavam reconciliados com a Igreja e podiam ser enviados para viver em instituições monásticas de sua escolha. Em consequência, a maioria dos Templários ingleses, escoceses e irlandeses foram libertados e se tornaram monges de outras Ordens. [2]
Mas de qualquer forma, a Ordem do Templo, embora ainda não oficialmente extinta naquele momento, era uma organização morta. O inquérito prosseguiria, entretanto, com a oitiva de testemunhas, em todas as dioceses da França e dos demais reinos onde havia preceptorias templárias, e no ultramar.[3]
Foi declarado, por todo o mundo cristão, que todo aquele que tivesse alguma informação que pudesse ser útil na defesa da Ordem que a apresentasse. Dos quatro grandes dignatários da Ordem, somente Tiago de Molay se mostrou disposto a fazê-lo.
– Eminências – disse o idoso e agora alquebrado Grão-Mestre – é inconcebível que uma Ordem como a nossa esteja em semelhante situação e que a Igreja queira destruí-la depois de ela ter prestado tantos serviços á causa da Igreja e da cristandade. – Eu seria um ser vil e miserável se não o fizesse, e por todos asssim considerado, depois de ter sido tão distinguido e honrado por ela.
– Entretanto – disse o venerando ancião, com lágrimas nos olhos – devo confessar-vos a minha incompetência nessas matérias, pois como todos vós sabeis, não tenho letras suficientes para dizer á vossas Iminências o que me passa no coração. – Reconheço – continuou o Grão-Mestre – que a nossa Ordem pecou em não contratar jurisconsultos e advogados, como fez o Hospital, para aconselhar-nos nos assuntos legais e canônicos. Se o tivéssemos feito – lamentou – certamente não estaríamos nesta situação, respondendo por crimes, que aos nossos olhos parecem uma vilania.[4]
Era, como deve ter parecido aos prelados ali reunidos, uma tardia declaração de reconhecimento da obsolecência da Ordem e da incompetência administrativa de seus dirigentes. Em nada ajudava na defesa da organização aquela confissão. Ao contrário só reforçava a ideia de que ela se tornara obsoleta e inútil para os propósitos para os quais fora fundada. Era uma situação que caia bem aos objetivos e propósitos de Filipe e eles não perderam a oportunidade. Ao terminar o ano de 1308, a sorte dos Templários estava selada. Mas, para a história, era preciso salvaguardar as aparências. Assim, o processo se arrastaria por mais quatro anos até que Clemente V desse uma decisão final sobre o destino da Ordem. E depois, cerca de mais dois anos de sofrimento para os seus comandantes, até que, para eles, tudo se consumasse.
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notas históricas
notas históricas
[1] A bula, chamada Pastorallis praeminentiae, ordenava a todos os reis cristãos da Europa e ultramar, que prendessem os Templários e confiscasem seus bens, colocando-os sobre a guarda da Igreja.
[2] O rei Jaime II de Aragão devia muitos favores aos Templários. Foram eles que o ajudaram a recuperar muitos territórios conquistados aos mouros na península espanhola. Mas, como Filipe, o Belo, ele cobiçava os bens do Templo existentes no território aragonês e aproveitou a oportunidade para confiscá-los. O mesmo ocorreu na Inglaterra e Alemanha, onde os Templários foram presos e processados. A maioria foi inocentada, como nas Ilhas Britânicas, mas seus bens, em sua grande maioria, acabaram sendo confiscados pelos respectivos reis. O que os reis não conseguiram tomar acabou sendo adjudicado á Ordem cruzada sobrevivente, que era o Hospital de São João. Se alguém realmente perdeu com esse processo foi a Igreja. É de registrar, também, que uma boa parte dos cavaleiros templários, que conseguiu escapar, continuaram ativos. E principalmnte nas Ilhas Britânicas, a grande maioria não se internou em conventos, como previam as decisões tomadas no Concílio de York. Eles se filiaram á outras Ordens de cavalaria e viriam ainda a participar de fatos decisivos da história europeia. A esse respeito ver Piers Paul Ried- Os Templários, citado, pg. 308 a 312.
[3] O ultramar eram os terrítórios foram do continente europeu onde o Templo mantinha preceptorias e fortalezas. Apesar de ter perdido todas as posições que mantinha na Terra Santa e no Oriente Médio, as Ordens do Templo e do Hospital ainda retinham importantes possessões em Rhodes e Chipre, Malta e em localidades da costa onde hoje se situa a Turquia.
[4] O Grão-Mestre do Templo foi pintado por Malcon Barber (O Julgamento dos Templários, citado), como sendo um sujeito rústico e completamente despreparado para enfrentar questionamentos mais profundos sobre assuntos como aqueles que a Ordem estava sendo confrontada. No entanto, a descoberta do Pergaminho de Chinon e as novas análises feitas pelos pesquisadores modernos, como a Dra. Bárbara Frale (Os Templários e o Pergaminho de Chinon), citado, mostram Tiago de Molay sobre uma ótica diferente. Ele aparece nessas análises como um administrador competente e probo, embora conservador, que foi envolvido em manobras políticas e acabou se rendendo a uma necessidade estratégica com a qual o papa Clemente V foi confrontado: acabar com a Ordem do Templo ou enfrentar um cisma dentro da própria Igreja.