Vampiro

John Gray deixava a sala de seu chefe com passos pesados, bufando, estava possesso. Tinha sido enviado, uma vez mais, para um buraco distante da civilização, coisa que abominava. Detestava seu trabalho, seu chefe, sua vida, e jurava ficar rico e dar um jeito em tudo aquilo, mostrar para aquele homem detestável, aquele pedante, quem era ele, afinal. Mas não conseguia planejar nada que o levasse a isso, imperava apenas o desejo irado de esmagar aquele chefete, de mostrar para ele!

Enquanto dirigia para casa, seu ânimo amainava, pensava na viagem que faria; tinha decorado o nome do lugar: Méruan Rao, no Brazil, grafado daquela estranha maneira: Maranhão.

Trabalhava para uma empresa de televisão, fazia documentários. Para muitos aquele seria um maravilhoso emprego, viajando o mundo em busca de aventuras e documentando o que via; para Mr Gray, no entanto, era coisa para cowboys, ele merecia luxo. Detestava o emprego, e os documentários que era obrigado a fazer, quase todos no meio do mato, entre selvagens. Tinha chegado da África uma semana antes, lugar execrável; agora era mandado para outro buraco: Méruan Rao.

Arrumou-se rapidamente para a viagem; costumava deixar tudo já semipronto para isso; tinha que sair o mais rápido possível, ou a preguiça talvez o amarrasse e complicasse sua vida; não podia perder aquele emprego desgraçado, não arranjaria outro melhor. Sabia não ter grande apreço do chefe, temia a demissão, tinha que evitar ficar dando seguidos pretextos para tal. Seus últimos trabalhos tinham sido todos ruins; também, só lhe davam temas insípidos, desagradáveis, em locais selvagens... .

Podia dar centenas de motivos para justificar o baixo nível de suas produções, toda a culpa era daquele chefe incompetente que só o mandava fazer documentários idiotas. Mesmo assim se preocupava, sabia ter a obrigação de fazer algo que prestasse; não permaneceria indefinidamente no emprego apresentando apenas imagens banais, e textos que precisassem ser reinventados, preenchidos por ficção para dar algum interesse aos vídeos. Sentia-se sob pressão, e foi nesse estado que aprontou suas malas e se dirigiu ao aeroporto. Comprou passagem para o Rio de Janeiro, passaria um ou dois dias na cidade, se aclimatando e planejando o roteiro, antes de se encaminhar a seu destino.

As duas noites na estranha cidade o animaram, apesar do convívio próximo de tantos negros, mas se deleitou com a manhã na praia, em frente ao hotel, e até com os passeios pela estranha cidade. Também lhe agradou a permanência no hotel, mesmo tendo reclamado enfática e seguidamente dos serviços oferecidos ali. Mas era mesmo um homem irascível, e apesar da sensação agradável em que se via imerso, sentia-se compelido a esbravejar com os serviçais nativos. O contato com tais criaturas era-lhe sempre irritante.

Comprou passagem para São Luís, Maranhão, ou Méruan Rao, local impronunciável.

Já esperava detestar o local, e sua pobreza nauseante. Uma criança suja o interpelou, segurou sua perna para pedir algo, provavelmente. Sentiu a mesma repugnância que teria se uma barata subisse por sua perna. Seguiu direto para a rodoviária; tentava evitar o contato com as pessoas, a iminência de esbarrões com aquelas pessoas o desagradava imensamente. Encontrou o guichê correto seguindo as instruções de sua empresa; mostrou ao vendedor um papel com o nome da localidade impronunciável escrito e conseguiu comprar uma passagem. O calor o irritava tanto quanto a presença dos nativos à sua volta. Por telefone, contactou o guia já contratado pela empresa, e acertou para que fosse recebê-lo.

Ao ver o ônibus, temeu não chegar ao destino, mas embarcou com os outros passageiros em uma viagem sacolejante e quente. Insistiu com o motorista para que ele o alertasse quando chegasse ao destino, e torceu para que o imbecil tivesse compreendido o que desejava. Ao desembarcar, seu guia, sorridente, já o aguardava; deduziu, de imediato, tratar-se do homem a quem esperava. Falava um inglês péssimo, quase incompreensível, mal conseguia entender o que era dito, exceto com palavreado muito usual e pronunciado cuidadosamente. Mas, ao menos, se mostrava submisso e prestativo; ai dele se descuidasse dessa parte.

O mau humor do gringo contrastava fortemente com a afabilidade do guia. A um deles tudo incomodava, especialmente o calor, pretexto que o lembrava constantemente de sua condição reles, das injustiças do mundo e de seus chefes, desterrando-o para buracos como aquele.

O gringo bufava e esbravejava constantemente, chegando ao ápice da irritação quando um inseto zumbidor o escolheu para banquete, entre tantos presentes. Parecia adivinhar a condição de estrangeiro oferecendo, por isso, a recepção incômoda e absurda; o bicho zunia em torno de si sem que ele conseguisse se livrar do intrometido, nem mesmo se misturando aos passantes, imiscuindo-se entre eles, nesse momento, de bom grado. O maldito inseto, no entanto, parecia tê-lo eleito, e o perseguia, incessantemente, mesmo em meio ao povo inútil, que agora preferia se afastar dele, isolando-o com a companhia indesejada.

Enquanto isso, o guia mantinha o bom-humor e os olhos sobre o gringo. Quando o estrangeiro retornou de sua incursão pelo meio do povo local, o guia observou que ele havia trocado a mutuca por uma nuvem de mosquitos. Teve que se esforçar para não rir da situação absurda. Dirigiram-se para uma camionete estacionada à sombra de uma árvore mirrada; o pequeno guia carregava as malas, o gringo enxugava o suor e resmungava acompanhado pela nuvem de mosquitos; o motorista também os acompanhou até o carro. Entraram todos.

O mau-humor do gringo era proporcional à distância até a civilização, de modo que ia crescendo durante a viagem. O guia, muito atencioso, tentava puxar conversa com ele; raramente tinha a oportunidade de exercitar seus conhecimentos linguísticos, além de gostar de exibi-los. Era naturalmente afável, teria estabelecido longa prosa com o outro, não fosse sua rispidez constante que o fez direcionar a conversa para o motorista, embora mantendo a atenção sobre o estrngeiro.

A chegada ao destino, um vilarejo quente e miserável no meio do mata, atiçou ainda mais o mau-humor do homem. Entrou bufando na casa das pessoas que o iriam acolher.

Os anfitriões gostariam de ser gentis, mas não compreendiam nem as palavras, nem os desejos do estranho, e desistiram de tentar, conseguindo apenas disfarçar a curiosidade por ele, exceto as crianças que o encaravam despudoradamente.

Era a residência menos miserável do lugarejo, mesmo assim muito rústica. O hóspede mal tentava esconder o desagrado inspecionando a casa com impudicícia. Sabia que os anfitriões seriam bem pagos e confiava nesse álibi.

Depois de brevemente apresentado aos anfitriões, deixou sua bagagem no quarto reservado para ele, avaliado satisfatoriamente pelo guia/intérprete e retornou para os últimos acertos com o guia, já na porta do carro: sairiam pela manhã em busca dos vampiros.

O restante do dia foi desagradável, como já esperava, entre mosquitos e insetos em geral que o faziam antever a noite e as incursões pela periferia. Comeu uma comida estranha, com aparência repugnante que lhe foi oferecida com grande distinção e expectativa, causando enorme surpresa o insucesso de tão magníficos manjares, desgosto para a cozinheira, mas alegria para as crianças que se deliciariam com as sobras. A noite quente na cama desconfortável, entre mosquitos, não favoreceu o seu humor. Teve ainda a sensação de ter sido atacado por insetos inexistentes; temia a eventual presença de barbeiros e inspecionava toda a casa em busca de tais criaturas, encontrando uma multiplicidade de seres sinistros. Depois da noite de sono entrecortado acordou com o alarido matinal de residência e a voz do intérprete a conversar com o dono da casa.

Quando saiu do quarto encontrou lauta refeição já preparada; o mesmo tipo de comida estranha da véspera, salvo por umas frutas de má aparência mas sabor agradável; gostou de algumas delas.

Embalaram umas comidas e saíram na camionete; o guia já havia se informado sobre os melhores destinos para a busca dos vampiros. Pegaram uma trilha péssima, muito pior, ainda que o caminho da vinda. A camionete sacolejava imensamente e se deslocava em baixíssima velocidade. Apesar disso, o motorista a considerava boa, dado que seca; sabia que as chuvas torrenciais e frequentes da região a deixaria intransitável.

A primeira parada distava pouco mais de 30 km, não sabiam quantas milhas, mas percorrida em mais de uma hora, entre chacoalhadas desgastantes. O destino era uma palhoça paupérrima no meio de uma clareira rodeada por mata alta. A chegada da camionete causou excitação no local, tratava-se de evento notável. Ao descerem do carro, ouviram o relinchar de um cavalo, fato alentador.

O guia se apresentou ao dono da casa, rodeado por toda a família surpresa com a chegada de estranhos; causavam extrema curiosidade, alegria, e apreensão, especialmente o gringo, enorme e surpreendentemente claro, tipo talvez nunca visto na região.

Depois de apresentações e rodeios o guia expôs o motivo da vinda do trio: buscavam vampiros. Perguntou se tinham informações sobre o assunto. O homem disse que sim, que estava tendo problemas com aquelas pestes, e os levou para a cocheira, onde encontraram dois cavalos magros e cansados. O gringo avaliou que os cavalinhos raquíticos e de aparência enfastiada não suportariam o seu peso. Observou com atenção as feridas nas patas dos cavalos, evidência dos morcegos, razão do estado doentio dos animais. Talvez esperassem que os forasteiros trouxessem alguma solução para o problema.

Pela primeira vez na viagem o estrangeiro revelou sinais de contentamento. Não acreditava nos tais vampiros, supunha ter sido enviado para tal buraco apenas como punição, mas a iminência de filmar vampiros o alegrava, nunca havia visto nada parecido na televisão. Vislumbrava a possibilidade de fazer um documentário sensacional, finalmente, e logo se viu envolto em fama e luxo. Seria finalmente reconhecido, ganharia prêmios, dinheiro, notoriedade. A expectativa da fama gerou um forte brilho em seu olhar, tornou-o loquaz e ativo, mostrando vivo interesse nos fatos.

Colheu inúmeras informações sobre os bichos, prontificando-se a filmá-los. Depois de rápidas confabulações decidiram voltar para a hospedagem e se preparar para o retorno de madrugada. Acertaram com o dono da casa a volta pela meia-noite; o desagrado gerado por tal sugestão foi resolvido com imensa diplomacia e alguns trocados oferecidos ao caboclo que se alegrou imensamente com o recebimento de R$ 10,00 pelo serviço de mostrar os morcegos ao visitante longínquo.

A viagem de volta à base pareceu muito mais curta que a vinda, transcorrendo em clima alegre, com o gringo, finalmente, bem humorado. O plano consistia em dormir o mais possível durante a tarde para permanecer de tocaia, à espreita dos vampiros, durante a madrugada.

De noite retornaram à palhoça, chegaram pouco antes da meia-noite. O dono da casa se juntou a eles e os levou para o estábulo, onde permaneceram apenas ele e o gringo à espera dos morcegos; uma garrafa de cachaça ajudaria a passar o tempo. Não demorou para que as criaturas horrendas aparecessem, uns bichinhos repugnantes. A câmera filmadora amplificava a pouquíssima luz que penetrava o local, revelando claramente os mistérios ocultos pelas trevas. O dono da casa já havia sinalizado a presença dos bichos, reveladas por seus zunidos agudos. Dois morcegos circundaram o local, inspecionando os cavalos e as pessoas à espreita, e desceram até as patas dos cavalos, agarrando-se nelas levemente, e descendo até quase ao chão, confiados na proteção da escuridão.

Cada um dos morcegos reabriu uma ferida na perna dos cavalos para lamber com avidez o sangue gotejante do animal que parecia insensível ao ataque. O dono da casa assistia às imagens no visor da câmera com curiosidade ainda maior que a do grigo, que registrava todos os detalhes da cena bizarra.

O banquete dos vampiros durou perto de meia hora, e as criaturas ainda permaneceram igual período brincando satisfeitas pelo chão, ou enroscando-se no pelo dos cavalos, só então partiram.

Tendo feito a gravação, retornaram ao encontro do guia e do motorista que cochilavam no carro. O gringo estava pocesso. Informou ao guia a razão de sua ira: os vampiros eram umas criaturinhas minúsculas, insignificantes. Tinha imaginado algum ser amedrontador, mas os serezinhos eram do tamanho de passarinhos, dos pequenos! Como fazer um documentário interessante sobre monstreguinhos tão reles? Quem teria interesse em criaturinhas tão pouco apavorantes? Eram horrendas, isso havia percebido, nojentinhas também, mas, como seduzir expectadores para assistir seres nojentinhos?

Sentia-se enganado, ameaçado. Seu trabalho seria mais um fiasco, impossível conseguir acrescentar interesse a imagens tão inespressivas. Estava irado.

Fez circular a cachaça entre os quatro enquanto buscava mais informações sobre os vampiros. Se ao menos tivesse imagens das criaturas chupando sangue humano. Perguntou ao dono da casa sobre possíveis ataques a pessoas. O homem respondeu que isso era muito raro; informou que os morcegos transmitiam doença; que mesmo os cavalos, bichos resistentes, padeciam enormemente com isso. Um homem teria sucumbido muito antes que um animal como esses estivesse assim, tão enfraquecido. Elucubrou que um homem morreria após poucos ataques, de modo que seria dificílimo encontrar alguém nessa condição, para conseguir uma gravação.

Confabularam sobre a possibilidade de ataques a humanos. O dono da casa considerou que uma pessoa dormindo ao lado dos cavalos poderia ser atacada, o gringo sugeriu que a presença de sangue no pescoço atiçaria os vampiros, todos consideraram que uma oferenda assim teria grandes chances de seduzir as criaturas. O gringo abriu e fez circular outra garrafa de cachaça na roda, antes de puxar uma nota de R$ 100,00 para que o dono da casa se oferecesse aos morcegos.

O caboclo nunca tinha visto uma daquelas notas. Não havia o menor sentido em se oferecer como banquete a morcegos, mas, ao mesmo tempo, a visão da nota estimulava a imaginação; viu-se rico; poderia comprar um cavalo para subtituir sua parelha doentia; também compraria um vestido para sua mulher e até presentes para as crianças. Enquanto tomava mais um gole de cachaça sua mente vagava entre sonhos de riqueza embalados pelas sugestões do gringo e do guia.

Conversaram ainda por meia hora, após o término da garrafa; um plano já se definia muito claramente na mente do gringo: filmar os vampiros sugando sangue humano. Combinou retornar na noite seguinte.

A viagem de volta foi desagradabilíssima, os humores do gringo oscilavam fortemente deixando os outros dois meio desnorteados, sem saber o que esperar: a confirmação da existência de vampiros tinha alegrado imensamente o sujeito, a visão das minúsculas criaturas, no entanto, tinha-no deixado

irado. Alheios às expectativas do homem, os outros dois viam-se à mercê das flutuações de seu temperamento. Não compreendiam bem as causas, mas percebiam nitidamente a diferença de humor entre a ida e a vinda.

Na noite seguinte retornaram à palhoça um pouco mais cedo que na véspera; levavam cãmera e cachaça. Quando o efeito do álcool já era evidente, a conversa foi dirigida para a eventualidade de ataque de vampiros a pessoas. O dono da casa desconsiderou tal possibilidade, os morcegos atacavam os animais, restringiam-se às baias. Mas talvez se interessassem por algum maluco que passasse a noite com os animais, mas quem faria uma tolice dessas. Discutiram tal possibilidade; será que os morcegos atentariam para uma pessoa dormindo com os bichos? Havia dúvida sobre isso. O caboclo achava que, mesmo assim, os morcegos prefeririam os cavalos. Aventaram então o reforço de uma incisão no corpo da pessoa fazendo jorrar umas gotas desangue tentador para as criaturas. O estrangeiro, então, a propôs R$ 100,00 para quem passasse a noite com os cavalos em tal situação, e levou a conversa para devaneios sobre o que fazer com tamanha quantia. O gringo se deleitava em ver o idiota tentado por tão míseros trocados, vistos por ele como como fortuna inalcançável.

Instado a dizer o que faria com tal quantia, embalado pela bebida, o caboclo repetiu o desejo expresso na véspera, sendo levado a imaginar a mulher feliz e bela no vestido novo. Ao percebê-lo tentado pelo ganho, o gringo dobrou o valor, mostrando as notas, induzindo o outro a aceitar a oferta final. Uma certa pressão dos outros dois fez com que o caboclo aceitasse o dinheiro. Passaria a noite deitado ao lado do animais, dormiria ali, com uma pequena incisão provocada no tornozêlo para atiçar o desejo das criaturas.Receberia R$ 100,00 apenas por isso; a quantia seria dobrada em caso de ataque.

Perceberam estar quase na hora da chegada dos bichos, cronometrada na véspera. O caboclo buscou em casa um colchão de palha e se acomodou ao lado dos cavalos, tendo permitido que lhe fizessem pequenino corte no pé. Deitou, tinha sono.

O gringo acompanhava toda a cena pelo visor da câmera, mas ouviu os zunidos das criaturas antes de os ver. Filmou a chegada, a curiosidade dos bichos, o ligeiro receio, e a descida em círculos. Acompanhou com enorme entusiasmo a inspeção do local feita pelos morcegos, incluindo o homem deitado em seu local de alimentação, notou quando perceberam e se interessaram pela ferida do homem. Então um dos morcegos decidiu iniciar seu banquete na perna do cavalo, enquanto o outro, mais curioso, preferiu degustar do novo cardápio; pareceu provar o novo quitute, aprovando a nova iguaria. Após uma primeira lambida, abriu a incisão ao seu modo, bebeu umas gotas, e foi terminar seu jantar no cavalo. Dando mostras de saciedade, a outra criatura foi conferir o novo repasto apenas por curiosidade, aplicando na ferida do homem umas lambidinhas para provar o novo sabor.

O estrangeiro filmou tudo com satisfação e curiosidade. Não chegou a ficar exultante, mas sabia ter conseguido boas imagens; teria um documentário interessante, e já podia voltar para casa, livrando-se imediatamente dos incômodos mosquitos e de toda a selvageria local.

Houve percalços irritantes durante o retorno até o povoado. Chegaram com o primeiro clarão do dia. O gringo tratou então de recolher suas coisas e partir direto para São Luís, pegaria o primeiro voo para casa.

Os dias seguintes foram passados com satisfação; estava em casa e isso o agradava, apesar do vizinho bêbado e irritante, das desavenças no emprego e de outros tantos desprazeres naturais decorrentes de sua condição financeira; era essa condição, fundamentalmente, que o exasperava. Mas a expectativa de apresentar um documentário empolgante o alegrava. Tinha imagens inauditas, surpreendentes, bizarras, ingredientes certos para um sucesso avassalador; tal expectativa o excitava.

Suas imagens vinham causando certa sensação na emissora, gerando muitos comentários, embora houvese certo atraso na produção do programa. Pouco mais de um mês havia transcorrido quando foi obrigado a mudar seus planos; embora escalado para filmagens na África, foi intimado a retornar ao Brasil: uma surpreendente onda de ataques de vampiros ocorria exatamente na região visitada por ele; tinha estado exatamente no foco do evento, era o grande especialista no assunto. Foi enviado ao local com ares de estrela.

O novo status o tornava ainda mais irascível, extravasando o seu descontentamento mais prontamente que na vinda anterior. Deveria averiguar os tais ataques.

Encontrou o povoado em condições lamentáveis, muito piores do que havia deixado. A miséria local o havia surpreendido desde o início, mas, anteriormente, tinha havida certa ordem, contrastada fortemente pelos sinais de abandono evidenciados pelo reinado dos animais sobre todos os espaços.

Janelas e portas de todas as casas permaneciam fechadas. Galinhas chocavam seus ovos nas varandas, onde os porcos também circulavam livremente. Percorreu, com o guia, todo o lugarejo, encontrando apenas um casal de velhos doentes em uma das casas mais miseráveis dali. O homem, acamado, parecia nas últimas; a mulher ainda tinha forças para se levantar. Informou ter havido violentíssima peste no local: ataque de vampiros.

Primeiro um morador de uma chácara distante havia contraído a doença, foi levado à cidade pela mulher para consultar um médico, não voltando de lá. As crianças, seus filhos, tinham sido trazidas para o povoado, para os cuidados de uma tia. Sua casa foi a primeira a sofrer os ataques das criaturas. Quando a mãe das crianças retornou, após a morte do pai, percebeu nelas, e em si mesma, sinais da mesma doença, e tratou de levá-las imediatamente para a cidade. Os moradores da casa também já demonstravam os sintomas, todos os que tinham a marca no tornozelo, um ligeiro corte.

Também eles partiram quando os sinais da peste se espalharam por todo o povoado. Os que puderam partiram de imediato do lugarejo amaldiçoado; os que se deixaram ficar, o fizeram por falta de opção, não por falta de medo, mas quando se arrependeram de ter permanecido a falta de disposição impediu a última tentativa de fuga. Havia sobrado, exclusivamente, o casal de velhos.

Informaram também que uma equipe do governo tinha vindo ao local, retornando algumas vezes para cuidar do caso. O gringo considerou então não haver o que fazer ali; contactaria o órgão público na capital, queria se manter distante daquela bizarria. Decidiu voltar para São Luís imediatamente.

O guia sugeriu levar os velhos para um hospital na cidade; o estrangeiro objetou não haver lugar no carro; o velho não teria condições de viajar sentado, melhor chamar uma ambulância para buscar os dois. O guia argumentou que a ambulância não viria, e que ambos morreriam ali sem auxílio. O estrangeiro desconversou, disse para o guia comunicar às autoridades médicas a presença dos doentes naquelas paragens.

Retornaram a São Luís, onde o guia foi incumbido de contactar os órgãos encarregados do caso. Foi marcada uma entrevista com biólogos da equipe de controle de zoonoses. De acordo com eles, os morcegos costumam se alimentar de determinadas vítimas, voltando todas as noites para o mesmo animal, a mesma vítima, como se ordenhassse sua vaca. As comunidades de morcegos costumavam eleger uma espécie como alimento, os cavalos vinham sendo usados havia séculos. Eventualmente algum indivíduo descobria uma nova fonte de alimento, uma nova espécie, e revelava o fato para seus familiares, espalhando assim o novo hábito alimentar. Por alguma vissicitude singularmente bizarra, um morcego veio a provar sangue humano, difundindo o hábito entre os seus.

Os morcegos transmitem uma enorme variedade de doenças devido ao contato direto com o sangue das vítimas, transmitindo de um indivíduo para o outro uma ampla gama de males. Informaram também a grande debilidade desses bichos: costumam compartilhar o mesmo alimento entre eles como maneira de fortalecer seus laços sociais; alguns indivíduos, após se alimentar fartamente, retornam para o grupo e regurgitam para outros parte do sangue ingerido. Esse hábito os torna vulneráveis ao envenenamento coletivo, estratégia escolhida para exterminar o grupo transgressor, que ousara se alimentar de pessoas. A demora no extermínio dessa população poderia permitir o alastramento do hábito por outras populações de morcegos, acarretando um flagelo sem precedentes, com a espécie passando a atacar o vasto contingente humano por toda a sua área de ocorrência.

O estrangeiro gravou várias entrevistas e acertou acompanhar a equipe até o povoado fantasma, o mesmo onde estivera antes, e já então abandonado. Filmou a captura dos morcegos em redes estendidas entre as casas do povoado, mostrou em detalhes a face horrenda dos pequeninos monstrengos, o envenenamento e a soltura das bizarras criaturas. Tendo conseguido tais imagens, voltou para casa o mais rápido que pode, mantendo-se em contato telefônico com a equipe de biólogos, aguardando informações sobre os resultados da estratégia de extermínio.

Voltou para casa exultante; possuía as únicas imagens das abomináveis criaturas sugando sangue humano. Tinha havido muitas vítimas fatais, o abandono de um povoado inteiro, terror sobre vasta região ameaçada. tinharealizado a única cobertura efetuada durante o evento; seu documentário faria sucesso, ele se tornaria uma estrela.

Durante a viagem de volta sonhou com a riqueza, o sucesso, planejou o pedido imediato de aumento de salário.

Planejou também uma nova viagem à África; reavivava uma antiga ideia surgida durante um documentário anterior. Iria para as savanas da África do Sul para os pontos de entrada dos imigrantes ilegais que se arriscam entre os leões. Bastaria acompanhar de camionete um desses grupos, e iluminar os desgraçados quando as feras estivessem por perto, conseguiria as imagens mais emocionantes já vistas! Finalmente começava a sentir prazer em seu ofício.