A Boneca
Carmen tinha oito anos quando ganhou sua primeira boneca. De família pobre, aquele tinha sido seu presente mais valioso durante toda sua infância. Havia algo de surpreendente nisso, uma vez que seus pais mal tinham dinheiro para colocar comida na mesa.
A infância no campo tinha sido difícil. Carmem só começou a trabalhar aos 18 anos como supervisora de vendas de uma loja de calçados no centro da cidade de onde morava. O pai, ciente de que não haveria futuro para a filha na roça onde moravam, direcionou todos seus esforços nos estudos da garota, de forma que esta pudesse ter uma vida melhor do que a dele e de sua mulher.
Carmen ainda morava na pequena casa onde crescera. O trajeto até o trabalho era feito em sua motocicleta de 100 cilindradas. Sábado e domingo tinham os plantões de venda, de forma que Carmen folgava apenas uma vez por semana.
Seu pai, hoje com 59 anos trabalhava menos na lavoura. As condições de vida da família melhoraram modestamente graças ao emprego da filha a recente aposentadoria de seu João.
A jovem ainda tinha a primeira boneca que ganhara do pai anos atrás. Lucia, como era chamada, agora estava guardada em uma caixa de vidro adornada por fitas de cetim na estante do centro da sala. Amarelada pelo tempo, a boneca ostentava a beleza dos tempos de nova, sinal de todo o valor e zelo que Carmen tivera ao longo dos anos.
Desde que começara a trabalhar, Carmen não deixou sua paixão de lado. Talvez a dificuldade do pai em lhe conseguir aquele presente tornou o gosto por bonecas tão especial. Agora, Lucia era apenas a ponta do iceberg da coleção de mais de 150 bonecas que enfeitava a estante da sala e mais dava a impressão de uma loja de brinquedos que qualquer outra coisa.
Foi na noite de Natal que algo aconteceu. A loja de sapatos da cidade estava aberta e com todos os vendedores trabalhando. Em pleno dia 25 de dezembro o gerente fizera os pobres coitados trabalhar em horário reduzido. Não era para menos: aquela era a única loja de sapatos da cidade, e o dono dela não queria perder um centavo sequer.
A loja estava obviamente vazia.
Carmen conversava com seus companheiros, animada por faltar 05 minutos para três horas da tarde. Momento em que finalmente poderiam baixar as portas e ir para casa.
O dia estava abafado, e uma densa neblina pairava sobre as ruas do bairro. Mal se podia enxergar qualquer coisa. O horário de fechar finalmente chegou e os vendedores apressados se despediram e saíram apressados em direção a suas casas. Carmen ficou na loja para fazer o fechamento do caixa e ligar os alarmes. A porta do estabelecimento ainda estava aberta quando uma silhueta curva e pequena surgiu em meio à névoa.
Uma senhora de aparência humilde entrou na loja devagar. Parecia ter certa dificuldade em caminhar. Havia uma cicatriz em seu pescoço, suas mãos velhas seguravam uma bolsa negra e surrada. Seu casaco, não menos surrado que a bolsa, estava cheio de rasgos e a touca que usava sobre a cabeça estava encardida.
Não restavam dúvidas que ela era moradora de rua.
-Posso ajudar? - Carmen dirigiu o olhar delicadamente para aquela senhora.
-Desculpe incomodar. Está tudo fechado lá fora. A senhorita tem um copo de água?
Certamente aquela senhora não compraria nada da loja. Sua aparente condição dizia a Carmen que ela não tinha dinheiro, e o pedido da mulher parecia confirmar sua intuição.
-Claro - disse Carmen -. Espere aqui um momento que já vou buscar.
Sem demonstrar pressa, Carmen saiu e rapidamente retornou com um copo de água.
-Aqui está.
-Obrigado!
A senhora, que estava sentada em um banco de prova de calçados tomou a água e levantou-se com dificuldade. Caminhou em direção à saída da loja a passos lentos. Carmen, cordial acompanhou a idosa até a porta e antes que esta pudesse recusar, ofereceu um par de sapatos baratos a idosa.
-A Senhora deve calçar 36?
-Isso mesmo, minha filha.
-Então, um feliz Natal para a senhora. Tome, um presente meu.
A velha contemplou feliz os sapatos que ganhara e colocou a caixa debaixo dos braços. Carmen viu a senhora se afastar, falando sozinha, aparentemente com uma criança, pelo tom de sua voz.
Lamentando em seu interior a situação daquela senhora, Carmen ligou o alarme e apagou as luzes da loja. Trancou a porta e subiu em sua moto, quando percebeu os passos rápidos e desajeitados da senhora virem em sua direção.
- Espere querida! - Dizia a velha ofegante-. Quero dar algo a você também!
Embaraçada, Carmen contemplou a pobre mulher.
- Minha filha. Ela ficou muitos anos comigo. Eu não tenho ninguém a não ser ela. Mas ela disse que quer ir com você.
Confusa, Carmen olhou ao redor. Não havia ninguém. Apenas elas estavam na rua.
- Mas...
- Sim - interrompeu a velha -. Você acha que estou louca, mas é realmente minha filha. Não tenho como retribuir o favor que me fez, então espero que aceite ela como presente. Tenho ela desde que passei a morar na rua, mas estou velha, já idosa e não tenho com quem deixar minha companheira de anos. Aliás, eu não tinha. Sei que ela ficará melhor com você...
- Não posso aceitar senhora, a boneca é tudo que tem.
- É verdade - refletiu a velha -, mas sou tudo que ela tem também, e logo não estarei mais aqui. Não quero que minha filha vá parar em mãos estranhas. Você foi muito gentil comigo, e quero deixa-la com você.
Carmen assentiu, enquanto a velha abria a pequena bolsa.
- Essa boneca foi tudo que me restou. Minha vida não foi boa, mas espero que ela traga sorte a você. Você verá que essa boneca é única, e muito especial. Costumo chama-la de Linda. Tome. É sua agora.
- Obrigada, senhora...
- Marta. Me chamo Marta, e só tenho que agradecer a você.
Antes que Carmem se anunciasse, a velha virou e caminhou até sumir em meio à massa cinzenta da neblina. Carmen estava sozinha novamente quando guardou a boneca na bolsa e ligou sua moto, rumando para casa.
Parte II
O Natal transcorreu tranquilo e sem novidades. A família dos pais de Carmen ceou na casa do vizinho, na companhia de amigos e parentes mais próximos. A mesa estava farta e havia muita bebida. Carmen conversava animadamente com sua mãe e suas tias enquanto o pai cuidava da churrasqueira, entretido entre a carne e seu copo de cerveja. Os fogos estouraram a meia noite, e após uma ou duas horas as pessoas tomaram seus caminhos de volta.
A noite estava clara. O céu estrelado brilhava palidamente sob o luar. O som da água do rio passava tranquilo e discreto a metros da casa de Carmen. A noite recompensou a todos pelo dia tão feio que a antecedera.
A loja não abriria no dia seguinte. Não ao menos para Carmen, já que era sua folga. Se seu Sabino a promovesse como havia prometido, breve ele teria folga 04 vezes por mês ao invés de uma. Mas havia o sonho de sair da loja e arrumar um emprego melhor. Talvez ela não esperasse por uma promoção se arrumasse coisa melhor.
Passou pela sala e contemplou sua estante cheia de bonecas. Agora ela havia ganhado outra. Mais uma para sua crescente coleção. Essa, no entanto, era diferente das outras. Parecia... Nova.
Carmen sentou-se no sofá e observou com atenção. A boneca parecia saída de uma loja de brinquedos. Seu estado, sua conservação... Eram perfeitos. Aquilo não fora presente de uma moradora de rua? Como uma pessoa que vive ao ar livre poderia cuidar tão bem de algo a ponto de parecer novo?
Até mesmo a mais antiga boneca de Carmen estava amarelada pelo tempo. Se aquela senhora tivesse a boneca há tanto tempo assim certamente ela estaria em iguais condições. Estava pensando nisso quando seu pai entrou sala adentro.
- Filha, você trabalhou hoje. Não acha melhor ir dormir?
- Já vou, pai.
- E isso em suas mãos? Outra boneca?
- Ganhei de uma senhora da rua. Parece nova.
João sentou-se ao lado da filha e examinou a boneca. Seu rosto carregou uma expressão preocupada que logo tentou disfarçar. O rosto daquela boneca lhe era familiar, mas ele não se lembrava de quem...
- Esta deve ser bem antiga...
Carmen conhecia bem o tema e concordou com o pai. Aquela boneca devia ter pelo menos uns 20 anos, e ainda assim parecia nova.
- Sabe o que é isso, filha? Material de qualidade. Antigamente as coisas eram boas. Acho que pra essa você deveria dar um tratamento especial.
João levantou-se entregando o brinquedo nas mãos da filha novamente.
- Vou me deitar. Amanhã temos mais carne para comer!
Deu uma risada, girou nos calcanhares e deixou a filha a sós com a boneca.
Uma vez sozinha Carmen contemplou com admiração a boneca Linda. Era um tanto bonita e resolveu leva-la para o quarto. Assim teria tempo de admira-la mais um pouco antes de dormir.
Com a boneca nos braços, apagou a luz da sala e seguiu até o quarto onde sua cama arrumada a esperava.
Com sono, deitou-se sem trocar a roupa e adormeceu.
Acordou assustada 04h da manhã. A janela de seu quarto estava aberta e dava uma vista para o silencioso pasto iluminado sob o luar.
O gado jazia horrivelmente amontoado no canto da cerca. As vacas estavam com a cabeça cortada e os chifres fincados no solo, numa estranha e macabra espécie de ritual.
A vista era aterradora. Carmen levantou-se trêmula e fechou a janela pouco antes de um vulto negro correr do pasto até ela. Suando frio, fechou o trinco quando o ser, ou qualquer coisa do que pudesse ser chamado começou a chocar-se contra a madeira que separava seu quarto do lado de fora da casa.
Apavorada, instintivamente pegou a boneca e correu até o quarto dos pais. Sobre a cama, o vulto agora bem visível e arqueado contemplava o casal adormecido. Os olhos vermelhos, a face amarelada e o cheiro podre expunham a imagem de um demônio. Não poderia ser outra coisa.
O ser olhou para ela e fez sinal de silêncio. A última coisa que Carmen viu foram seus pais levitando e sendo arremessados violentamente contra a parede, quando um som característico e familiar a tirou dali.
O despertador tocava ruidosamente as seis em ponto quando ela acordou. Estava suada, mas aliviada por estar em sua cama. O galo cantava acompanhando os primeiros raios de sol e o gado pastava tranquilo, aproveitando a grama fresca da aurora.
Carmen tomou um banho focando seu pensamento nas tarefas de casa que faria em seu dia de folga. Planejava tomar um banho no riacho durante a tarde, e talvez levasse a boneca nova junto com ela. O verão no interior era mais quente que na cidade, o que levava os moradores daquele distrito a frequentar o riacho nos dias de calor.
A casa estava silenciosa. Os pais talvez estivessem ainda dormindo por causa da noite passada e Carmen preferiu não acorda-los. Apenas por precaução abriu a porta do quarto deles. A mãe dormia um sono tranquilo, enquanto o pai não estava ao seu lado. A julgar pelo horário, talvez estivesse tirando leite no pasto. Era comum seu João levantar antes da esposa, até mesmo depois de dias cansativos.
Na cozinha, a fumaça adocicada do café emanava do bule, e Carmen tomou um gole. A bebida desceu quente e revigorante, mas havia uma quantidade exagerada de açúcar. Seu pai não costumava exagerar assim. Já fazia um bom tempo que seu João não errava no café.
Saindo da cozinha e indo para a sala, Carmen encontrou seu pai sentado no sofá, os olhos ainda sonolentos contemplavam uma boneca que este segurava em suas mãos, sem desviar o olhar. A boneca era grande, de porcelana. Tinha um vestido preto e olhos pintados de azul. Não era uma das mais bonitas que a filha tinha, mas chamava a atenção de qualquer um.
-Desde quando o senhor pegou afeição por minhas bonecas pai?
Seu João, sem desviar o olhar de suas mãos não respondeu.
-Pai?
João não piscou. Seus olhos estavam vermelhos e lacrimosos. Seu rosto pálido tinha um tom branco, como o rosto da boneca que segurava. Ele por fim soltou o brinquedo que tinha nas mãos e encarou a filha.
- Carmen, quantas vezes na vida eu lhe disse pra não aceitar coisas de estranhos? Quantas vezes eu lhe disse?
Carmen se assustou como tom do pai, enquanto este ainda gesticulava.
- Eu te criei com tudo o que tinha! Tirei de mim pra dar educação pra você! Pra você não ter o mesmo caminho que eu... Filha, eu fui amaldiçoado e consegui. Consegui ter uma vida. Consegui a lágrimas, a suor e sangue de minhas mãos! Eu consegui educar você. Mas ela me disse que um dia ia voltar. Ela disse que ia voltar pra me matar. Disse que seria só você e ela...
- Mas, pai... - Carmen parecia não compreender. Seu pai, absorto a reação da filha continuou:
- Ela não é sua mãe. Não de sangue. Ela não deu a luz a você.
Carmen se sentiu enjoada e sentou-se. Sua cabeça começou a girar e seu estômago a doer. Contemplou o pai, que ainda sentado continuava a falar com lágrimas nos olhos. Não lágrimas de raiva, mas lágrimas de dor. De arrependimento. Como se há muito tempo ele carregasse isso consigo e agora a hora de acertar as contas tinha chegado.
- Eu matei sua mãe. Matei-a quando você era recém-nascida. Matei-a para ficar com ela. Com Maria.
Carmen tentou falar, mas sua garganta começou a arder. Sentiu sangue escorrer de dentro de seu esôfago em direção ao estômago. O café. Tinha algo no café que ela tomara minutos antes.
-Foi há muito tempo. A última vez em que vi sua avó. A vez em que a vi com um embrulho nas mãos. Seu primeiro presente. Sua primeira boneca! Eu mexi com a pessoa errada. Sua avó me amaldiçoou, e desde então passei a levar esta vida miserável. Mas não a você. Você não. Quando ela soube do que eu fiz, não teve tempo para reagir. Empurrei-a contra a parede e cortei sua garganta. Fugi sem olhar para trás. Deixei-a caída na cozinha de sua casa, enquanto sua Linda jazia no quarto. Nunca descobriram.
-Acharam que sua mãe tinha se matado. Mas sua avó. Sua avó tinha sumido. Sumiram com ela, só pode ter sido isso. Foi o que eu pensei a vida inteira. Mas a desgraçada me amaldiçoou. Disse que não morreria enquanto eu vivesse. Disse que apenas iria descansar quando voltasse pra você.
-Quantas... Quantas vezes eu disse pra você não aceitar coisas de estranhos?
Carmen compreendeu. Aquela velha da loja, aquela mendiga com a cicatriz. Ela era sua avó.
-Essa boneca! Essa boneca que ela te deu. Ela me fez matar Maria, ela me fez... Mas não vou deixar sua mãe ficar com você. Ela andou até meu quarto. Sua cabeça dava voltas enquanto eu podia ouvir dela a risada demoníaca emanando de seus lábios de plástico. Era a voz de Linda...
-Sua avó era uma bruxa. Sua avó nunca morre. Sua avó portou a morte, e na desgraça de ver sua filha morrer, ela simplesmente me amaldiçoou. Essa boneca que ela te deu. Ela é sua mãe!
Carmen estava tonta demais para falar qualquer coisa. Seus ouvidos começaram a sangrar junto com o nariz, e sua respiração foi se dificultando.
-Você Carmen, minha filha, me perdoe... - João puxou uma arma da calça e disparou. O corpo sem vida foi ao chão, rodeado de sangue e miolos. Carmen viu quando uma sombra negra puxou o corpo para baixo da terra e se desesperou.
Antes que seus olhos se fechassem e se entregassem a morte, a inocente boneca que ganhara uniu-se a ela. Suas mãos de plástico tocaram seu rosto, e em meio ao sangue e dor lancinantes, Carmen ouviu antes de partir:
-Enfim juntas, minha filha.