O PAPA QUE SE DANE
 
Clemente V não era homem para enfrentar Filipe o Belo, mas a sua carta ao rei, censurando-o por prender os Templários franceses sem a sua autorização, e pior ainda, de ter se apossado dos bens do Templo, que por direito pertenciam á Igreja, representava um ato de coragem. Isso fez ver a Filipe que o caso não seria resolvido assim, tão simplesmente, pela força da sua autoridade. Depois, os Templários não constituíam apenas uma Ordem monástica de caráter miltar, mas sim uma organização que tinha ramificações profundas em toda a sociedade medieval. Dentro da Ordem havia lavradores, pastores, moageiros, palafreneiros, ferreiros, carpinteiros, e principalmente pedreiros. Estes últimos, mais organizados, haviam escapado, em sua grande maioria, da prisão, mas os primeiros, gente comum, que não possuía a têmpera do soldado endurecido na batalha, nem os recursos intelectuais dos mestres pedreiros e alquimistas, certamente não resistiriam a dor da tortura física, nem á pressão da tortura moral, e logo confessariam o que quer que quisessem.
E depois, como o papa logo perceberia, o que saberiam aqueles pobres diabos acerca das complicadas teorias doutrinárias que estavam sendo discutidas na questão Templária? Se nem os próprios cavaleiros, em sua grande maioria, analfabetos, as compreendia, como esperar que aldeões ainda mais incultos, pudessem saber que estavam praticando heresia pelo simples fato de estarem ligados á Ordem do Templo pelos laços do direito feudal?
No entanto, a polícia de Filipe havia prendido indiscriminadamente todos os que foram encontrados nas preceptorias varejadas no território da França. E encarcerados em masmorras, estavam sendo torturados barbaramente. Mesmo sabendo que esses “homens dos Templários”, como era conhecida a imensa estrutura de mão de obra que apoiava a organização templária, não eram, por assim dizer, iniciados nos segredos rituais da Ordem, os carrascos de Guilherme de Paris não estavam poupando ninguém. Filipe, ao desancadear a sua operação contra o Templo, não deu qualquer instrução no sentido de poupá-los. Suas ordens foram para que fossem arrebanhados onde quer que se encontrassem, todos os que, de alguma forma, tivessem alguma ligação com o Templo.
A preocupação de Clemente não era sem razão. No mês de janeiro de 1308 ─  não havia se passado três meses da sinistra ação do dia 13 de outubro do ano anterior ─ e trinta e seis dos cento e trinta e quatro cavaleiros Templários presos no Templo em Paris já tinham admitido alguma veracidade nas acusações feitas á Ordem. Se os próprios cavaleiros, homens treinados e enrijecidos na forja da guerra, haviam sucumbido á tortura, ou á mera ameaça dela, o que dizer de um simples aldeão que mal resistia ás intempéries da vida?
 
Porém, até mesmo o papa ficou boquiaberto e sem ação quando soube que o próprio Tiago de Molay, Grão-Mestre da Ordem, havia confessado ter cometido os crimes que estavam sendo imputados à Ordem. Até aquele momento, ele havia duvidado que houvesse qualquer verdade naquelas acusações, mas as confissões dos maiores dignatários do Templo o deixou sem ação. E o pior disso tudo era a declaração dos acusados de que tudo o que haviam confessado era espontâneo e não lhes havia sido arrancado sob tortura. [1]
Foi então que Clemente V resolveu entrar na dança. Se Filipe o Belo, lhe apresentava um fait acompli, ele iria aproveitar esse fato consumado em seu próprio benefício. Não havia se passado ainda um mês da confissão de Tiago de Molay, e ele estava escrevendo a todos os reis cristãos da Europa, pedindo a eles que, discretamente e sem alarde, com muito cuidado, prendessem todos os Templários em seus respectivos reinos e mantivessem os bens deles sob custódia para a Igreja, até que os devidos processos fossem concluídos e uma destinação pudesse ser dada. Nesse mesmo documento, intitulado Pastoralis praeminetiae, ele elogiava o rei Filipe pela sua iniciativa, que correspondia á fé e ao zelo que um rei cristão deve ter, mas que o comando de tais procedimentos era de exclusiva competência da Igreja e não devia ser exercido pelo braço secular. O medo de Clemente V era óbvio. Não queria que nos demais reinos cristãos ocorresse a mesma coisa que em França, ou seja, que os bens da Ordem fossem engordar os tesouros reais.
 
Mas competia à Igreja apurar a verdade dos fatos. Clemente não podia deixar isso simplesmente ao braço secular, pois se o fizesse, o que aconteceu em França ocorreria no resto da Europa, e o Papado, que já enfrentava poblemas com a perda de poder na França e na Inglaterra, onde a guerra de Eduardo II contra os rebeldes escoceses o tinha exposto, gerando oposição  junto aos dois lados, enfrentaria sérios problemas.
Foi com essas preocupações em mente que Clemente enviou uma carta a Filipe, nomeando dois cardeais, Bérenger Fredol e Estevão de Suisy, incumbidos de submeter os Templários presos um a novo interrogatório. Mas nessa manobra do papa, Filipe o Belo, não estava disposto a se deixar enrolar. Escreveu de volta, repetindo todas as acusações e as confissões obtidas, e, numa velada ameaça, disse que “Deus detestava os mornos” e que todo atraso na repressão dos crimes dos Templários representaria conivência com eles. Lembrou ao atrapalhado pontífice que os inquisidores cumpriram uma obrigação e não se podia admitir que fossem contraditos no ministério que haviam recebidos de Deus.
Filipe não poderia ser mais claro. Com todas as palavras, estava dizendo ao papa que não aceitaria injunções de nenhuma ordem nesse caso. Pois, conforme disse, “era o defensor da fé, e não poderia tolerar tal injúria contra os inquisidores, pois se o fizesse estaria quebrando seu juramento”. Isso queria dizer, em alto e bom som, que o papa poderia fazer as investigações que quisesse, mas isso não mudaria nada do que foi feito. Em outras palavras, o papa que se danasse.
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Eram cento e quarenta os cavaleiros Templários presos no dia 13 de outubro de 1307 nas dependências do Templo em Paris. Em toda a França esse número subia a mais de dois mil. Todos haviam sido, de algum modo torturados, e após a tortura, submetidos ao interrogatório por parte de Guilherme de Paris, ou por delegados seus. Cento e trinta e seis deles confirmaram as declarações de seus dignatários, acusando ou confirmando que a Ordem do Templo era culpada das práticas das quais estavam sendo acusados. Guilherme de Nogaret, em nome de Filipe, mandou que os arautos do rei proclamassem por todo o reino as confissões dos Templários, causando na população uma grande comoção. A opinião pública se dividiu. Muita gente, que já não gostava dos Templários, pediu a fogueira e o cadafalso para os malditos hereges. Mas não foram poucos os que duvidaram da veracidade das declarações apregoadas pelos arautos. Não acreditaram que tais declarações fossem espontâneas, pois sabiam que os carrascos da Inquisição eram mestres no uso da tortura e costumavam arrancar dos pobres diabos que caiam em suas garras, qualquer declaração.
Filipe estava a cavaleiro da situação. Apenas quatro Templários foram suficientemente fortes para agüentar a tortura e negar as acusações. Seus nomes foram registrados para a memória dessa vilania. Chamavam-se Jean de Chateauvillars, Henry de Herçingy, Jean de Paris e Lambert de Toisy. Eram muito poucos para fazer frente ás declarações em contrário de 136 Irmãos, inclusive os próprios comandantes da Ordem, mas mesmo assim isso já preocupou Guilherme de Paris, que providenciou para que esses depoimentos fossem minimizados e não divulgados.[2]

 Não foi senão a custo de muita pressão que o papa, finalmente, conseguiu fazer com que Filipe transferisse uma parte dos Templários presos em Paris para Poitiers, para serem interrogados. Reservou, todavia, o direito de reter os bens da Ordem. Setenta e dois cavaleiros foram levados, sob escolta, para Poitiers, mas Filipe se recusou a liberar Tiago de Molay e os três outros dignatários da Ordem, os quais ficaram pelo meio do caminho, presos no Castelo de Chinon.
  
Perante o papa e o colégio de cardeais, os setenta e dois andrajosos cavaleiros retificaram suas declarações, justificando que o disseram em razão da tortura a que foram submetidos e das promessas de que, o fizessem, seriam perdoados. 
– Fomos privados das coisas mais necessárias, sendo alimentados somente de água e pão salitroso
– Fomos proibidos de assistir missa e recitar os ofícios.
– Fomos tratados como excomungados, sem direito a qualquer sacramento que se concede a um cristão.
– Prometeram que a nossa vida seria poupada se reconhecessemos espontaneamente as acusações que eram feitas á Ordem.
– Os inquidores nos disseram o que devíamos falar.
– Todo o interrogatório foi feito em latim e são poucos os que, entre nós, entende essa língua.
– Trinta e seis dos nossos Irmãos morreram em conseqüência das torturas, por terem se recusado a falar o que os inquisidores queriam...
 Enfim, eram várias as queixas dos cavaleiros, e pela unaminidade delas, os cardeais não tinham nenhuma dúvida de que o procedimento legal, naquele caso, tinha sido incorreto.
O papa já não tinha dúvidas que as acusações eram falsas. Reforçou ainda a sua convicção as respostas que os reis de Inglaterra, Aragão, Castela, Portugal e Sicília deram á sua carta, solicitando a prisão dos Templários em seus respectivos reinos. Nenhum deles acreditava nas acusações que eram feitas por Filipe e se recusavam a abrir processo contra o Templo, a não ser que o próprio papa o ordenasse por escrito.
Clemente V deve ter se sentido fortalecido com as posições adotadas pelo restante das autoridades seculares da cristandade. Tanto que, em fevereiro de 1308, sentiu-se com coragem suficiente para enfrentar o monarca francês e anulou os poderes dos Inquisidores, chamando o caso todo para sua própria autoridade.
 
Mas Filipe não se deu por vencido com essa súbita crise de autoridade do papa e buscou apoio junto aos doutores de teologia da Universidade de Paris. Perguntado se os teólogos aprovavam sua atitude e se o poder temporal poderia agir em caso de comprovada heresia, como era o presente caso dos Templários, os doutores responderam que o rei não tinha poder para abrir processo nesse caso, a menos que fosse requerido pela Igreja. Que o máximo que o rei poderia fazer, se comprovado realmente a existência de uma heresia perigosa para a fé cristã, era prender os acusados e os entregar á Santa Madre Igreja para julgamento. Em outras palavras, os doutores estavam dizendo a Filipe que ele não tinha poderes para dirigir a Inquisição.
Assim, claramente, toda a inteligência jurídica francesa concordava que os membros do Templo não estavam sujeitos á autoridade secular, o que tirava do rei o poder de julgá-los. Somente a Igreja podia decidir sobre a culpa deles e condená-los pelos crimes dos quais estavam sendo acusados.
Filipe até se conformaria com esse parecer dos juristas da Universidade de Paris, se no mesmo arrasoado eles não tivessem escrito que os bens da Ordem pertenciam á Igreja, pois eles foram dados aos Templários na qualidade de defensores da Terra Santa, e como tal deviam ser “fielmente administrados e conservados com vistas ao dito fim.”
Essa resposta, como se podia esperar, não agradou ao rei, que decidiu contra atacar. Guilherme Nogaret também era advogado e foi ele quem deu solução ao intrincado problema de jurisdição.
 
– Como podemos inverter essa situação? ─ perguntou o rei.
– Da mesma forma como tratamos a situação com o papa Bonifácio VIII, Majestade ─ respondeu Nogaret,
Filipe se lembrava bem do seu conflito com o velho e teimoso papa que havia desafiado a sua autoridade e queria sobrepor-se ao poder de todos os reis. Quanto á questão da opinião pública, Nogaret lembrou-lhe que ela também era hostil ao rei naquela ocasião.
– Naquela ocasião, Vossa Alteza convocou os pares do reino, as assembléias dos cidadãos e do clero, e expôs-lhes a situação com tanta clareza que ninguém objetou que enviássemos uma tropa armada a Agnani para pressionar o papa.[3]
 
O episódio do atentado de Agnani ainda estava bem presente na memória de Filipe. Naquela ocasião, a sua capacidade de persuasão fora bem empregada. Não custava ver se ainda tinha a mesma habilidade. Assim, o rei convocou para o dia 5 de maio de 1308 uma reunião de todos os pares do reino, aqueles que viriam, mais tarde a formar os Estados Gerais de França.  Dessas assembléias participavam os presidentes das câmaras setoriais e provinciais, almotacés, cônsules, os nobres e os representantes do clero. E para garantir que cada uma das organizações participantes dessas assembléias estivesse de acordo com suas pretensões, ele, de próprio punho, enviou uma carta aos seus representantes, explicitando as suas razões para “livrar a Santa Madre Igreja da abominável Ordem dos Templários.”
A assembléia realizou-se em Tours e se prolongou por três semanas. O inefável Pierre Dubois, advogado que anteriormente já servira ao rei com um ensaio jurídico justificando a fusão do Templo com o Hospital, reapareceu com um inflamado discurso contra a recusa do papa em dissolver a Ordem.
 
– O povo do reino da França – disse o advogado – que sempre foi e será, pela graça de Deus, obediente e devoto à Santa Madre Igreja, mais que qualquer outro, solicita que seu Senhor, o rei da França, faça ver ao nosso Santo Padre, o papa, que ele enfureceu demasiado os franceses e provocou grande escândalo entre povo, por que castiga apenas com palavras a heresia dos Templários.
E Dubois afirmava, em sua diatribe, que o papa estava sendo tolerante com os Templários porque a Ordem tinha dinheiro. E mais: que o papa se escudava no nepotismo para garantir suas posições, já que um bom número de bispos e cardeais pertenciam á sua família. E por fim exortava Clemente V a pedir desculpas aos nobres Inquisidores, perante os quais os hereses do Templo haviam confessado seus abomináveis crimes, que agora ele queria encobrir.
Dubois e outros advogados se sucederam na tribuna, todos assacando violentas críticas ao papa e apoiando o rei em sua ação contra o Templo. Advogaram a supressão da Ordem do Templo, mesmo á revelia da autoridade papal, com argumentos tão fortes, que a assembléia ali reunida não pode deixar de dar ao rei, mais uma vez, sua anuência para agir.
E assim, Filipe, o Belo, apoiado pelo povo de França, decidiu continuar com o processo, á revelia da própria Igreja.
Afinal de contas, pensava ele, Clemente V, nem de longe era um adversário á sua altura, como tinha sido, no passado, Bonifácio VIII. Se áquele velho turrão ele havia vencido sem muito esforço, a este papa covarde e submisso, então...
─ Tem razão ─ disse Filipe a Nogaret. ─ O papa que se dane!
 
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Notas históricas
 
[1] Os dignatários do Templo haviam sido convencidos por Guilherme de Paris de que o papa sabia de tudo e aprovava os métodos usados pelos in quisidores. A promessa de que os altos dignatários do Templo seriam tratados com a brandura e o respeito que se devia á sua posição se as confissões fossem espontâneas devem ter contribuído para que os Mestres do Templo fizessem tais confissões. Ver, a esse respeito, Os Grandes Julgamentos da História, citado. Barbara Frale, O Julgamento dos Templários, citado, também parece chegar a essa conclusão.
[2] Nomes constantes das atas do processo. A esse respeito ver Grandes Julgamentos da História, citado.
[3] O Atentado de Agnani marcou definitivamente a luta entre Filipe, o Belo e o papa Bonifácio VIII. Esse papa havia promulgado a bula "Unan Sanctam", em 1302, mediante a qual declarava que todos os poderes seculares ─  ou seja, todos os reis cristãos─  deviam obediência ao papa. Filipe se insurgiu contra essa determinação papal e acabou sendo excomungado, juntamente com seu novo chanceler Guilherme de Nogaret. Aconselhado por Nogaret, Felipe reuniu em Lyon um concilio de bispos franceses com o objetivo de julgar o papa, que o rei considerava imoral, indigno e apóstata. Ao saber da iminente publicação da bula de excomunhão, Guilherme de Nogaret entrou em acordo com os Gibelinos, grupos de bispos italianos comandados pelo cardeal Sciarra Colonna, ferrenho opositor de Bonifácio VIII e tramou um golpe para fins de depor o papa. A frente de uma tropa de 600 soldados franceses e 1500 partidários gibelinos, Nogaret invadiu a pequena cidade de Agnani, onde ficava a residência de verão do papa e o fizeram prisioneiro. A finalidade era obter a sua renúncia, porém Bonifácio VIII resistiu, dizendo que preferia morrer do que ceder á tão indigna ação. ─ "Eis a minha cabeça, eis a minha tiara: morrerei, é certo, mas morrerei papa", disse o velho e indignado pontífice. Em resposta, Colonna esbofeteou o papa, dirigindo-lhe os piores impropérios. O papa ficou prisioneiros dos golpistas durante três dias. Só foi libertado depois que a população de Anagni conseguiu organizar uma tropa armada que invadiu o palácio e obrigou os invasores a fugir. O papa Bonifácio VIII, entretanto, nunca conseguiu se recuperar dessa violência e acabou morrendo logo depois.
 
O PAPA QUE SE DANE