Com as mãos sujas de miolos (Fragmento Absurdo de Uma Existência Futura n°1)
Fumando mais um cigarro, sentado na merda da minha cozinha, recordo-me, em indiferença, indiferença pura e simples (que tem sido a tônica da minha vida), os tempos em que eu assaltava bancos com alguns amigos. Bons tempos. Agora devem estar todos mortos. Eles, meus familiares e aquelas mulheres, poucas, bem poucas, que amei. Ou quase isso. Na verdade, nem sei se estão mortos ou não. Nunca mais soube deles. Nem tenho como saber, por mais que eu deseje. E também, agora, já nem desejo tanto assim. De que adiantaria? Mas devem estar mortos, é o lógico, dadas as circunstâncias. E em breve eu também estarei morto, é só uma questão de tempo. Sinto-me realmente doente. Não sei de qual doença se trata, é tudo tão confuso, uma reunião de sintomas de que nunca ouvi falar, sobre os quais nunca li, mesmo com os razoáveis conhecimentos de medicina que possuo.
É como se minha pela ardesse e coçasse, saindo pequenas feridas purulentas em várias partes do corpo. Meus olhos ardem e estão sempre vermelhos. Às vezes, tenho pequenos sangramentos do nariz, dos olhos, das feridas da pele. Meu catarro grosso e amarelado volta e meia está manchado de sangue. Seguidamente, tenho febre. Por vezes, alta. Minha cabeça dói. Tenho tonturas, vertigens. De vez em quando, algum tipo de alucinação. Além de outros sintomas menores. Deve ser alguma doença oriunda da água contaminada ou da comida apodrecida. Ou, talvez, levando-se em conta os problemas de pele, pode ser efeito da radioatividade. Afinal, ela deve estar muito alta nessa região. E não só aqui, obviamente. Mas talvez aqui onde vivo a concentração radioativa seja particularmente alta, levando-se em conta que, além da guerra que afetou a todos, uma usina relativamente próxima à minha casa explodiu.
Aliás, a doença não deve ser A doença, mas o mais provável é que seja AS doenças. Devo estar com um monte de merda em meu corpo. Só sei, ou acho que sei, que não é aquele vírus que dizimou a cidade, porque o principal sintoma da epidemia era a diarreia, e isso, pelo menos, eu não tenho. Ou também pode ser uma mutação do vírus, como ocorreu com várias outras doenças agora mortais, sei lá. Mas enfim, e agora, o que é que isso tudo importa? Como sei que não há forma de me curar, ainda que eu soubesse do que se trata, aguardo a morte, resignado e indiferente. E mesmo que eu pudesse me curar, viveria pra quê? Lembro que naqueles tempos passados, dizia-se que o homem não seria tão louco, ou doente ou estúpido para cometer determinados absurdos. No entanto, cometeu. Se eu pudesse viajar no tempo, para o passado, com a intenção de alterar o futuro, se isso fosse possível, deixaria este meu relato como um terrível alerta. E na verdade, nem sei por que escrevo isso. Talvez, inconscientemente, com algum tipo absurdo de esperança de que realmente ele sirva de advertência. Além de doente, devo estar louco.
Bom, saindo de meus devaneios, devo dizer que a doença não me tirou o apetite. Tenho fome. E muita. Agora mesmo, estou pensando no que vou comer. Há meses, eu e alguns vizinhos, que já estão mortos, saqueamos todos os supermercados da cidade. Eu e meus vizinhos fomos os únicos que sobrevivemos após a epidemia do vírus desconhecido. O vírus havia contaminado a rede de água da cidade, mas nunca bebíamos água da torneira. Bebíamos de um grande poço artesiano que mantínhamos em conjunto. Quando a população inteira foi morrendo rapidamente, defecando sangue e pedaços de órgãos, isolamo-nos em nossas casas, bebendo água somente do poço e nos alimentando de nossos estoques. Mas, quando os estoques acabaram, tivemos que sair para procurar comida.
Nas ruas, cadáveres e mais cadáveres, todos mortos, todos. O fedor era insuportável. É interessante notar como a necessidade imperativa, imediata, de alimentos parece debochar daquilo que chamamos de “humanitarismo”, “compaixão” “amor ao próximo”. Pisando por entre cadáveres, sofríamos com a morte de outros seres humanos, havia vários conhecidos meus, mas isso não impedia que corrêssemos por entre eles esmagando seus crânios ou afundando os pés na sua carne apodrecida, ou chutando seus corpos para abrir caminho o mais rápido possível, sem nada daquilo que chamaríamos “respeito pelos mortos”. E quanto aos meus vizinhos, em nenhum momento eu pensei em auxiliá-los na busca por alimentos, ou em dividir parte do que eu tinha conseguido saquear. Faria algum sentido ser solidário naqueles momentos? Não. Muito pelo contrário, era cada um por si, e o que conseguíamos pegar antes que algum outro pegasse era comemorado como uma gloriosa vitória. Era natural, natural ao extremo, que brigas existissem, e violentas. Eu mesmo tive que matar dois de meus vizinhos. Quando digo que tive de matar, era porque a questão era simples: ou eles ou eu. O primeiro, matei com um espeto que estava ao meu alcance em um supermercado, pois disputávamos os últimos pedaços de carne fresca. Ou quase fresca. O segundo, estourei os miolos com minha pistola, para poder ficar com um imenso estoque de frutas secas que ele tinha roubado.
De modo que agora, logo ao acabar de fumar meu cigarro, comerei algumas nozes. É curioso notar a forte semelhança do formato interno das nozes com o cérebro humano. Mais interessante ainda é o fato de eu ter obtido essas nozes estourando o cérebro de um vizinho que era tido por todos como inteligentíssimo. O cara até era meu amigo. Ah, foda-se! Remorso? O que significaria agora o remorso? Se um dia ocorrer o impossível de alguém ler este relato num tempo passado, sei que eu serei compreendido e perdoado. Não que o perdão me importa. Eu nem sei o que me importa, se é que algo me importa... Bom, agora me importam as nozes. Fiz o que deveria ter feito. E isso é tudo. Quem teria agido diferente no meu lugar?... Valeu a pena pelas nozes que comerei agora. Com as mãos sujas de sangue e miolos.
www.artedofim.blogspot.com