CAPÍTULO X- O FILHO DA HERESIA
Guilherme de Nogaret era um personagem carismático e, ao mesmo tempo, misterioso. Sua origem era pouco conhecida e seus laços de família bastante obscuros. O pouco que se sabia sobre ele era que tinha vindo de uma pequena vila chamada Saint-Félix de Caraman, no condado de Toulouse. Em 1302, ele, já bastante conhecido como advogado, foi indicado para assumir o posto de Ministro do Selo Real, devido á morte do seu antecessor, Pierre Flote. O Ministro Guarda-Selos, na prática, era um verdadeiro primeiro-ministro do reino de França.
Na verdade, Guilherme de Nogaret tinha muitos motivos para esconder o seu passado. Vários antepassados dele haviam sido queimados nas fogueiras da Inquisição por heresia. Afinal, eles viviam na terra dos cátaros, e não eram infensos á in-fluência da heresia albigense.[1]
Por isso ele odiava a Igreja Católica, o seu clero corrupto, como ele o definia, e seu chefe, o Papa. Ela transformara em cinzas a sua ascendência, manchara de heresia a sua herança, e apusera em sua testa a marca de Cain.
Por isso, desde cedo, sua vida fora dedicada ao estudo das leis, com especialização no direito canônico, pois, segundo pensava, “o inimigo deve ser destruído pelo seu próprio ve-neno.”
Á noite, depois de ler as respostas de Tiago de Molay e Godofredo de Charney, ele confabulou com Guilherme de Paris e Nicolau d’ Ennezat:
– O que os senhores acham das respostas do Grão-Mestre e do preceptor da Normandia? – perguntou ele.
– Normais. Não esperávamos que eles confessassem tudo espontâneamente – respondeu Guilherme de Paris.
– Não. Mas eles parecem bem seguros do que dizem – respondeu d’Ennezat. – Suas posturas físicas e suas respostas não são de quem tem a consciência pesada.
– Talvez eles apenas saibam mentir muito bem – disse Nogaret.
– É possível – respondeu Guilherme de Paris. De qualquer modo, temos muito tempo para fazer esses malditos hereges confessarem seus horrendos crimes. E também há muita gente para ser esticada no cavalete e levantada na estrapada. Eu quero ver se esses sodomitas desgraçados vão continuar com essa arrogância quando os pés deles forem untados com gordura e assados no fogo.
– Vamos submeter os dignatários do Templo a tais suplicios? – perguntou, um tanto preocupado, o monge d’Ennezat.
– Se for preciso, não devemos ter constrangimento em fazê-lo – respondeu Guilherme, com firmeza.
– Será que o Papa aprovará tais medidas? – perguntou d’Ennezat.
– Ele não estará em Paris para ver o que estamos fazendo – respondeu Guilherme de Paris. – E depois que extrairmos as confissões desses degenerados, ele não terá como censurar-nos.
Guilherme de Nogaret concordou com um aceno de cabeça. – E depois – disse ele,– pouco importa se ele concorda ou não. Se ele nos incomodar, faremos com ele a mesma coisa que fizemos com o velho Bonifácio VIII ─ interviu Nogaret.[2]
– Clemente V deve sua mitra ao rei Filipe – completou Guilherme de Nogaret. – Não creio que ele crie muitos obstáculos. Mas – ponderou o Lorde Guarda-Selos –, para evitar quaisquer surpresas, vamos manter no maior segredo possível qualquer procedimento de força que tivermos que tomar contra esses malditos hereges.
– Certamente que faremos tudo será feito no maior sigilo, obedecendo a todos os procedimentos legais – disse Guilherme de Paris. ─ Não queremos transformá-los em mártires.
Guilherme de Nogaret sorriu. Ali estava um aliado ideal. Ele também, ao que parecia, odiava os templários. Não poderia ter escolhido alguém melhor para levar adiante o seu plano.
– Bem. Continuem com o interrogatório e usem todos os elementos de persuasão possíveis. Não tenham piedade para com esses miseráveis – finalizou Nogaret.
A d’ Ennezat é que a coisa não parecia muito bem. Afinal, ele era um membro profissional do clero. Estava a serviço de Guilherme de Paris porque realmente acreditava na utilidade da Inquisição. Pensava, de fato, que a heresia era um cancro no seio da cristandade e precisava ser extirpada sem dó nem piedade. As acusações de heresia, bruxaria, sodomia, idolatria, impiedade, era algo que realmente o horrorisava. Tinham que ser apuradas com rigor e seriedade. Mas deviam obedecer ao devido processo legal.
Sua consciência se acalmou quando ouviu o Grande Inquisidor dizer que este seria obedecido. Mas ele não gostara da forma como Nogaret falara do Papa. Afinal, Sua Santidade era o chefe da Igreja e merecia respeito. Não teria nenhum prazer em ver os membros da Irmandade do Templo torturados somente para satisfazer o desejo de vingança de Nogaret e o ódio de Guilherme de Paris. Ele queria que a justiça fosse feita.
– Amanhã ouviremos o Visitador da França, cavaleiro Hugo de Perráud. Devemos prosseguir com a mesma estratégia, dando-lhes ciência das acusações e deixando que ele as confirme ou não? – perguntou d”Ennezat.
– É a lei processual, não é?– respondeu Guilherme. – Temos que dar a esses patifes a oportunidade de confessar, por si mesmos, antes de extrair-lhes, á força, a verdade. Por mim, eu os poria, de cara, no cavalete, pois acho que eles são culpados como o diabo. Toda essa lenga-lenga processual é pura perda de tempo. No fim, teremos que submetê-los mesmo ao súplicio.
– Então por que não poupar tempo e ouvir também o cavaleiro Godofredo de Gonneville, preceptor de Aquitânia e Poitou? Sabemos que a resposta deles será a mesma – sugeriu d’ Ennezat. “Para que ficar prolongando a tortura moral?” pensou o monge.
– É melhor não atropelar o rito processual – disse Guilherme. – Os defensores desses miseráveis poderão usar isso em sua de-fesa. – Depois –, completou, com um simulacro de sorrisso – não existe ferro que não se conforme com o bater do martelo do ferreiro. As nossas masmorras são excelentes bigornas e os nossos carrascos magníficos ferreiros.
“ Bom. Pelo menos isso,” pensou d’Ennezat. O devido processo legal iria ser obedecido.
─ Quanto a Hugo de Perráud, creio que não teremos problemas com ele. Ele é nosso ─ interviu Nogaret, quando ouviu o nome do Visitador da França.
─ Como assim? ─ perguntou d’Ennezat, que não tinha entendido a última parte da fala de Nogaret.
─ Ele tem suas razões para colaborar conosco. Vão devagar com ele ─ respondeu Nogaret, com um sorriso enigmático.
A perspectiva de torturar os quatro grandes dignatários do Templo era uma idéia que excitava o Lorde Guarda–Selos Guilherme Nogaret. Afinal, seu ódio pela Igreja iria ter um magnífico canal de escape. Não lhe bastava ter sido um dos principais articuladores da humilhação e morte do Papa Bonifácio VIII, quando, na companhia dos Irmãos Colonna e seus partidários armados, invadira o Castelo de Agnani e fizera o Papa prisioneiro. Nessa ocasião, permitira que Pierre Colonna, sobrinho do Cardeal Collona esbofeteasse o Sumo Pontífice no rosto, causando um dos maiores escândalos de todos os temos. Ele, tanto quanto os Irmãos Sciarra, Pierre, o capitão, e Jacques, o Cardeal, foram excomungados pelo Papa Bonifácio VIII, mas seriam depois perdoados e reconduzidos ao seio da Santa Madre Igreja por Clemente V, por influência de Filipe o Belo.
Guilherme de Nogaret recordava essa aventura, que lhe tinha dado um grande prazer, mas também lhe trouxera não poucas preocupações.[3]
Filipe o Belo, tinha entrado em rota de colisão com o Papa, Bonifácio VIII. O conflito evoluíra de tal maneira que o Papa ameaçara de excomunhão o monarca francês. Este, em resposta mandou á Roma uma expedição armada com a finalidade de prender o Papa e trazê-lo para ser julgado perante a corte do rei. A expedição armada contra o Vaticano foi comandada por ele, Nogaret, pessoalmente. Seu sucesso se devera principalmente ao apoio que lhe foi dado em Roma pelos inimigos declarados do Papa, a família Colonna, comandada pelo sinistro Sciarra Colonna, sobrinho do Cardeal excomungado Jacques Colonna. Pierre Colona era o chefe do partido dos gibelinos, inimigos figadais de Bonifácio VIII. O Papa, abandonado pelos seus aliados, refugiou-se no Castelo de Anagni, onde foi capturado e preso pelos soldados franceses. Nessa ocasião, Sciarra Colonna aproveitou para destilar todo seu ódio contra Bonifácio VIII, agredindo-o fisicamente com um tapa no rosto, ao qual o velho Pontífice respondeu, que “ entregava a tiara papal e a própria cabeça, mas nunca sua dignidade, pois Papa era e morreria Papa”
Entrementes, a população de Anagni, ao saber do atentado contra o Papa, armou-se e assaltou o castelo para libertá-lo. Nogaret, os gibelinos de Sciarra e os soldados franceses, em menor número, fugiram. O Papa foi libertado, mas já não era o mesmo. O episódio havia comprometido de vez a sua saúde física e mental. Em conseqüência o velho e combativo Pontífice morreria no mês seguinte. Seria sucedido por Bento XI, que não obstante ter realizado uma trégua com o rei francês, não cedeu, como era desejo deste, ás suas maquinações. Em conse-qüência, morreria envenenado dois anos depois, supostamente a mando de Filipe, o Belo. Para o seu lugar foi eleito o inefável Clemente V. Filipe e Nogaret venceram, pois Clemente V, menos que um Papa, era um refém de Filipe o Belo, que o obrigara, inclusive a mudar a corte Papal para Avignon, em território francês.
Nogaret queria agora minar a Igreja naquela que era a sua mais poderosa organização: a Ordem do Templo. Afinal, o Templo possuía mais de quinze mil cavaleiros em armas so-mente no território francês. Era um poderoso braço armado do Papa. Se um dia o Papa Clemente V, ou outro Papa que to-masse o seu lugar, tivesse a coragem de enfrentar Filipe o Belo, os templários seriam uma arma preciosa para a Igreja. E com a riqueza que eles possuíam, poderiam comprar aliados, equipar um exército, enfim, eles seriam um peso fatal na balança contra qualquer inimigo da Igreja. E agora que as cruzadas já não faziam mais sentido, os templários não tinham mais utilidade como milícia de Cristo. O que impediria que se tornassem a milícia do Papa?
Assim pensando, Guilherme de Nogaret engajara-se de corpo e alma na campanha de Filipe para destruir a Ordem do Templo. Nem entrara nos seus cálculos as insinuações de que os templários, estariam, na verdade, ressuscitando a heresia cátara, pela qual seus seus antepassados foram queimados na fogueira da Inquisição. Primeiro, porque ele mesmo não acre-ditava nisso, depois porque, sendo ele tão anticlerical, a menor de suas preocupações era a defesa da fé cristã. As questões religiosas não tinham a menor importância para ele. Ele era todo político, seu hálito rescendia a política, sua alma respirava política.
Filipe queria destruir o Templo por cobiça. Também tinha medo que os templários pudessem ser usados como arma contra ele. Os motivos de Nogaret eram outros. Era vingança contra as pessoas que haviam chacinados os seus ancestrais, pois fora uma brigada de cruzados, usando aquela maldita cruz vermelha, que havia perpetrado o cruel genocídio a que foram submetidos os seus antepassados; tinha desprezo pelos templários e ódio pela instituição que os sustentava, a Igreja de Roma. Os templários, pensava ele, eram uma derivação do exército cruzado. Aqueles cavaleiros de mantos brancos, com a cruz vermelha no peito, lembravam os malditos soldados de Simão de Montfort, que meio século atrás haviam chacinado seus ancestrais e destruído a herança da sua família.
“ Agora, é o veneno deles sendo usado contra eles mesmos”, murmurou o descendente dos cátaros, pensando que seria a própria Inquisição que daria arremate á sua vingança contra a Igreja. O filho da heresia iria usar a própria heresia para se vingar.[4]
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NOTAS HISTÓRICAS
Guilherme de Nogaret era um personagem carismático e, ao mesmo tempo, misterioso. Sua origem era pouco conhecida e seus laços de família bastante obscuros. O pouco que se sabia sobre ele era que tinha vindo de uma pequena vila chamada Saint-Félix de Caraman, no condado de Toulouse. Em 1302, ele, já bastante conhecido como advogado, foi indicado para assumir o posto de Ministro do Selo Real, devido á morte do seu antecessor, Pierre Flote. O Ministro Guarda-Selos, na prática, era um verdadeiro primeiro-ministro do reino de França.
Na verdade, Guilherme de Nogaret tinha muitos motivos para esconder o seu passado. Vários antepassados dele haviam sido queimados nas fogueiras da Inquisição por heresia. Afinal, eles viviam na terra dos cátaros, e não eram infensos á in-fluência da heresia albigense.[1]
Por isso ele odiava a Igreja Católica, o seu clero corrupto, como ele o definia, e seu chefe, o Papa. Ela transformara em cinzas a sua ascendência, manchara de heresia a sua herança, e apusera em sua testa a marca de Cain.
Por isso, desde cedo, sua vida fora dedicada ao estudo das leis, com especialização no direito canônico, pois, segundo pensava, “o inimigo deve ser destruído pelo seu próprio ve-neno.”
Á noite, depois de ler as respostas de Tiago de Molay e Godofredo de Charney, ele confabulou com Guilherme de Paris e Nicolau d’ Ennezat:
– O que os senhores acham das respostas do Grão-Mestre e do preceptor da Normandia? – perguntou ele.
– Normais. Não esperávamos que eles confessassem tudo espontâneamente – respondeu Guilherme de Paris.
– Não. Mas eles parecem bem seguros do que dizem – respondeu d’Ennezat. – Suas posturas físicas e suas respostas não são de quem tem a consciência pesada.
– Talvez eles apenas saibam mentir muito bem – disse Nogaret.
– É possível – respondeu Guilherme de Paris. De qualquer modo, temos muito tempo para fazer esses malditos hereges confessarem seus horrendos crimes. E também há muita gente para ser esticada no cavalete e levantada na estrapada. Eu quero ver se esses sodomitas desgraçados vão continuar com essa arrogância quando os pés deles forem untados com gordura e assados no fogo.
– Vamos submeter os dignatários do Templo a tais suplicios? – perguntou, um tanto preocupado, o monge d’Ennezat.
– Se for preciso, não devemos ter constrangimento em fazê-lo – respondeu Guilherme, com firmeza.
– Será que o Papa aprovará tais medidas? – perguntou d’Ennezat.
– Ele não estará em Paris para ver o que estamos fazendo – respondeu Guilherme de Paris. – E depois que extrairmos as confissões desses degenerados, ele não terá como censurar-nos.
Guilherme de Nogaret concordou com um aceno de cabeça. – E depois – disse ele,– pouco importa se ele concorda ou não. Se ele nos incomodar, faremos com ele a mesma coisa que fizemos com o velho Bonifácio VIII ─ interviu Nogaret.[2]
– Clemente V deve sua mitra ao rei Filipe – completou Guilherme de Nogaret. – Não creio que ele crie muitos obstáculos. Mas – ponderou o Lorde Guarda-Selos –, para evitar quaisquer surpresas, vamos manter no maior segredo possível qualquer procedimento de força que tivermos que tomar contra esses malditos hereges.
– Certamente que faremos tudo será feito no maior sigilo, obedecendo a todos os procedimentos legais – disse Guilherme de Paris. ─ Não queremos transformá-los em mártires.
Guilherme de Nogaret sorriu. Ali estava um aliado ideal. Ele também, ao que parecia, odiava os templários. Não poderia ter escolhido alguém melhor para levar adiante o seu plano.
– Bem. Continuem com o interrogatório e usem todos os elementos de persuasão possíveis. Não tenham piedade para com esses miseráveis – finalizou Nogaret.
A d’ Ennezat é que a coisa não parecia muito bem. Afinal, ele era um membro profissional do clero. Estava a serviço de Guilherme de Paris porque realmente acreditava na utilidade da Inquisição. Pensava, de fato, que a heresia era um cancro no seio da cristandade e precisava ser extirpada sem dó nem piedade. As acusações de heresia, bruxaria, sodomia, idolatria, impiedade, era algo que realmente o horrorisava. Tinham que ser apuradas com rigor e seriedade. Mas deviam obedecer ao devido processo legal.
Sua consciência se acalmou quando ouviu o Grande Inquisidor dizer que este seria obedecido. Mas ele não gostara da forma como Nogaret falara do Papa. Afinal, Sua Santidade era o chefe da Igreja e merecia respeito. Não teria nenhum prazer em ver os membros da Irmandade do Templo torturados somente para satisfazer o desejo de vingança de Nogaret e o ódio de Guilherme de Paris. Ele queria que a justiça fosse feita.
– Amanhã ouviremos o Visitador da França, cavaleiro Hugo de Perráud. Devemos prosseguir com a mesma estratégia, dando-lhes ciência das acusações e deixando que ele as confirme ou não? – perguntou d”Ennezat.
– É a lei processual, não é?– respondeu Guilherme. – Temos que dar a esses patifes a oportunidade de confessar, por si mesmos, antes de extrair-lhes, á força, a verdade. Por mim, eu os poria, de cara, no cavalete, pois acho que eles são culpados como o diabo. Toda essa lenga-lenga processual é pura perda de tempo. No fim, teremos que submetê-los mesmo ao súplicio.
– Então por que não poupar tempo e ouvir também o cavaleiro Godofredo de Gonneville, preceptor de Aquitânia e Poitou? Sabemos que a resposta deles será a mesma – sugeriu d’ Ennezat. “Para que ficar prolongando a tortura moral?” pensou o monge.
– É melhor não atropelar o rito processual – disse Guilherme. – Os defensores desses miseráveis poderão usar isso em sua de-fesa. – Depois –, completou, com um simulacro de sorrisso – não existe ferro que não se conforme com o bater do martelo do ferreiro. As nossas masmorras são excelentes bigornas e os nossos carrascos magníficos ferreiros.
“ Bom. Pelo menos isso,” pensou d’Ennezat. O devido processo legal iria ser obedecido.
─ Quanto a Hugo de Perráud, creio que não teremos problemas com ele. Ele é nosso ─ interviu Nogaret, quando ouviu o nome do Visitador da França.
─ Como assim? ─ perguntou d’Ennezat, que não tinha entendido a última parte da fala de Nogaret.
─ Ele tem suas razões para colaborar conosco. Vão devagar com ele ─ respondeu Nogaret, com um sorriso enigmático.
A perspectiva de torturar os quatro grandes dignatários do Templo era uma idéia que excitava o Lorde Guarda–Selos Guilherme Nogaret. Afinal, seu ódio pela Igreja iria ter um magnífico canal de escape. Não lhe bastava ter sido um dos principais articuladores da humilhação e morte do Papa Bonifácio VIII, quando, na companhia dos Irmãos Colonna e seus partidários armados, invadira o Castelo de Agnani e fizera o Papa prisioneiro. Nessa ocasião, permitira que Pierre Colonna, sobrinho do Cardeal Collona esbofeteasse o Sumo Pontífice no rosto, causando um dos maiores escândalos de todos os temos. Ele, tanto quanto os Irmãos Sciarra, Pierre, o capitão, e Jacques, o Cardeal, foram excomungados pelo Papa Bonifácio VIII, mas seriam depois perdoados e reconduzidos ao seio da Santa Madre Igreja por Clemente V, por influência de Filipe o Belo.
Guilherme de Nogaret recordava essa aventura, que lhe tinha dado um grande prazer, mas também lhe trouxera não poucas preocupações.[3]
Filipe o Belo, tinha entrado em rota de colisão com o Papa, Bonifácio VIII. O conflito evoluíra de tal maneira que o Papa ameaçara de excomunhão o monarca francês. Este, em resposta mandou á Roma uma expedição armada com a finalidade de prender o Papa e trazê-lo para ser julgado perante a corte do rei. A expedição armada contra o Vaticano foi comandada por ele, Nogaret, pessoalmente. Seu sucesso se devera principalmente ao apoio que lhe foi dado em Roma pelos inimigos declarados do Papa, a família Colonna, comandada pelo sinistro Sciarra Colonna, sobrinho do Cardeal excomungado Jacques Colonna. Pierre Colona era o chefe do partido dos gibelinos, inimigos figadais de Bonifácio VIII. O Papa, abandonado pelos seus aliados, refugiou-se no Castelo de Anagni, onde foi capturado e preso pelos soldados franceses. Nessa ocasião, Sciarra Colonna aproveitou para destilar todo seu ódio contra Bonifácio VIII, agredindo-o fisicamente com um tapa no rosto, ao qual o velho Pontífice respondeu, que “ entregava a tiara papal e a própria cabeça, mas nunca sua dignidade, pois Papa era e morreria Papa”
Entrementes, a população de Anagni, ao saber do atentado contra o Papa, armou-se e assaltou o castelo para libertá-lo. Nogaret, os gibelinos de Sciarra e os soldados franceses, em menor número, fugiram. O Papa foi libertado, mas já não era o mesmo. O episódio havia comprometido de vez a sua saúde física e mental. Em conseqüência o velho e combativo Pontífice morreria no mês seguinte. Seria sucedido por Bento XI, que não obstante ter realizado uma trégua com o rei francês, não cedeu, como era desejo deste, ás suas maquinações. Em conse-qüência, morreria envenenado dois anos depois, supostamente a mando de Filipe, o Belo. Para o seu lugar foi eleito o inefável Clemente V. Filipe e Nogaret venceram, pois Clemente V, menos que um Papa, era um refém de Filipe o Belo, que o obrigara, inclusive a mudar a corte Papal para Avignon, em território francês.
Nogaret queria agora minar a Igreja naquela que era a sua mais poderosa organização: a Ordem do Templo. Afinal, o Templo possuía mais de quinze mil cavaleiros em armas so-mente no território francês. Era um poderoso braço armado do Papa. Se um dia o Papa Clemente V, ou outro Papa que to-masse o seu lugar, tivesse a coragem de enfrentar Filipe o Belo, os templários seriam uma arma preciosa para a Igreja. E com a riqueza que eles possuíam, poderiam comprar aliados, equipar um exército, enfim, eles seriam um peso fatal na balança contra qualquer inimigo da Igreja. E agora que as cruzadas já não faziam mais sentido, os templários não tinham mais utilidade como milícia de Cristo. O que impediria que se tornassem a milícia do Papa?
Assim pensando, Guilherme de Nogaret engajara-se de corpo e alma na campanha de Filipe para destruir a Ordem do Templo. Nem entrara nos seus cálculos as insinuações de que os templários, estariam, na verdade, ressuscitando a heresia cátara, pela qual seus seus antepassados foram queimados na fogueira da Inquisição. Primeiro, porque ele mesmo não acre-ditava nisso, depois porque, sendo ele tão anticlerical, a menor de suas preocupações era a defesa da fé cristã. As questões religiosas não tinham a menor importância para ele. Ele era todo político, seu hálito rescendia a política, sua alma respirava política.
Filipe queria destruir o Templo por cobiça. Também tinha medo que os templários pudessem ser usados como arma contra ele. Os motivos de Nogaret eram outros. Era vingança contra as pessoas que haviam chacinados os seus ancestrais, pois fora uma brigada de cruzados, usando aquela maldita cruz vermelha, que havia perpetrado o cruel genocídio a que foram submetidos os seus antepassados; tinha desprezo pelos templários e ódio pela instituição que os sustentava, a Igreja de Roma. Os templários, pensava ele, eram uma derivação do exército cruzado. Aqueles cavaleiros de mantos brancos, com a cruz vermelha no peito, lembravam os malditos soldados de Simão de Montfort, que meio século atrás haviam chacinado seus ancestrais e destruído a herança da sua família.
“ Agora, é o veneno deles sendo usado contra eles mesmos”, murmurou o descendente dos cátaros, pensando que seria a própria Inquisição que daria arremate á sua vingança contra a Igreja. O filho da heresia iria usar a própria heresia para se vingar.[4]
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NOTAS HISTÓRICAS
[1] Cf vários cronistas, especialmente Reznikov ( Cathares et Templiers ,pg. 21, e Ives Dossat, (Guilherme de Nogaret, petit-fils d’herétiques, Annales du Midi nº 212- Toulouse, 1941), sustentam que os pais de Nogaret teriam sido queimados na fogueira por sua adesão ao catarismo. Fonte citada por Piers Paulo Ried- Os Templários op citado.
[2] Nogaret se refere ao episódio conhecido como Atentado de Agnani, quando o Papa Bonifácio VIII foi feito prisioneiro em seu castelo, na cidade do mesmo nome, por um grupo armado comandado por Nogaret e pelos Irmãos Collona, antigos inimigos do Papa. Esse episódio acabou contribuindo para a morte daquele Papa, poucos dias depois do ocorrido.
[3] Vide nota 52.
[4]Durante a cruzada albigense, em que o exército cruzado praticamente dizimou a metade da população do Languedoc, os templários permanesceram neutros, embora fizessem parte da Igreja e tenham sido convocados para o Papa para prestar apoio logístico e mesmo bélico aos cruzados. Mas muitos cronistas dizem que, na verdade, os templários prestaram mais ajuda aos cátaros do que aos exércitos do Papa. Eles deram abrigo a muitos “pefeits” que procuraram asilo em suas fortalezas. Isso não deve ter passado despercebido aos observadores eclesiásticos e seria usado no processo contra os cavaleiros do Templo. Ver a esse respeito The Holy Blood and The Holy Grail, op citado.