O Presente de Natal

Marcos voltava triste para casa depois de mais um terrível dia de aula. Sofrera nas mãos dos colegas de classe, maiores e mais fortes. Ele, um gordinho de estatura mediana, de cabeça pelada e o rosto coberto de sardas, nada podia fazer para conter os ataques. Começavam com apelidos dos mais criativos e ofensivos e terminavam com socos e pontapés debaixo de ruidosas risadas. Sabia que não adiantava queixar-se com a diretora. O roteiro era sempre o mesmo: chamavam os pais para uma conversa, cada garoto recebia seu castigo e no dia seguinte os ataques pioravam. Pediu ajuda a mãe, mas ela, fechada em seu mundo de superficialidade, limitava-se a apoiá-lo moralmente.

Lentamente caminhava pela calçada, olhando aqueles carros barulhentos seguindo a corrida frenética do dia-dia. Queria ser como eles, adultos alucinados em busca de dinheiro para bancar seus vícios. Teria preocupações, bem verdade, mas saberia lidar com mais facilidade. Não seria um saco de pancadas, alvo de piadas ou um brinquedo para os outros. Sonhava com uma forma de se vingar dos garotos que o perturbavam. Fantasiava planos sangrentos de tortura, sentindo-se saciado com cada detalhe. Seus olhos brilhavam com a possibilidade de pô-los em prática, mas quando acordava para a realidade, sofria com uma repentina depressão.

Mesmo com todos os problemas, Marcos ainda tinha tempo para as lembranças do pai. Havia morrido há pouco mais de um ano, de causas ainda misteriosas, pelo menos para ele. Foi numa tarde de sábado quando, ao chegar a casa, viu o pai largado na cadeira, com o pescoço pendendo para o lado, e sua mãe feita uma barata tonta com aquele maldito cigarro na boca tentando ligar para alguém. Ela arregalou os olhos quando o viu. Ficou tão pálida que seu rosto se perdeu em meio às paredes brancas da cozinha.

- Papai? O senhor está bem – perguntou Marcos, receoso.

Nunca obteve resposta. Sentia calafrios só de lembrar do momento em que encarou a face do pai, ausente de cor e de vida, sem um fio de sangue correndo pelas veias. Aqueles olhos abertos encarando o teto, e a boca meio torta de lábios arroxeados jamais saíram de sua mente. Depois disso havia uma lacuna imprecisa até a lembrança do funeral. Seu tio Alberto, acompanhado do seu primo Carlos, ajudavam a carregar o caixão. Marcos não sabia o significado da perda até aquele dia. Quando o caixão foi baixado, foi como se um pedaço dele estivesse sendo enterrado junto. Sua mãe evitava encara-lo. De alguma forma ela era culpada, não por matá-lo, apesar de não descartar essa possibilidade, mas por não ter feito o suficiente para salvá-lo. Tinha apenas onze anos, mas maturidade suficiente para abarcar tais suposições.

Faltava uma semana para o Natal. Os garotos de sua idade desejavam aquele videogame do momento, uma bicicleta nova e os melhores brinquedos, mas ele trocaria tudo isso por um único presente: ter o pai de volta. Era a solução para acabar com o seu sofrimento. Juntos, resolveriam todos os problemas. Dariam uma lição nos encrenqueiros. Seria interessante se os eliminassem definitivamente, cortassem seus corpos em pedaços e jogassem aos cães, mas uma simples tortura, como arrancar lentamente a pele deles, já seria suficiente.

Além da saudade que sentia do pai, havia outro motivo para Marcos desejar a sua volta. Desde a sua morte, sonhava que o pai ainda estava vivo, socando o caixão e pedindo socorro. Certa vez sonhou que ele o chamava, mas a voz era terrivelmente abafada. Ele desceu as escadas, seguindo-a. Percebeu que ficava cada vez mais nítida. Atravessou a rua e seguiu para o cemitério. No meio do caminho surgiu um velho, de barba amarelada e cabelo cumprido, usando uma camisa de seda branca rasgada. Fitou-o como se o conhecesse de algum lugar. O velho, exprimindo seriedade, apontou para o portão do cemitério e disse, em tom grave:

- Entre logo, pois em pouco tempo ele não mais acordará...

Seguindo a voz de seu pai, encontrou o túmulo cercado de rosas e uma fumaça branca cobrindo-o tenebrosamente.

- Ajude-me, filho. Estou ficando sem ar...

Marcos ficou desesperado. Não tinha como abrir aquele túmulo sozinho. Estava muito bem lacrado. Enquanto isso a voz do pai soava cada vez mais desesperadora, como um choro agonizante. O garoto começou a cavar nas laterais. A terra estava bastante molhada, e parecia muito fácil retira-la. Em pouco tempo encontrou o fundo. Ouviu algo socando o caixão. Tum... Tum... Tum... Ficava mais forte a cada momento. Podia ver a madeira cedendo e dedos querendo fugir. Seu pai estava vivo!

Começou a socar também, com sua pequenina mão. Fez uma extensa rachadura no caixão. De repente um braço salta e segura sua mão. O caixão se desmancha, como se tivesse sido feito de serragem. Das sombras surge um corpo coberto de vermes e o crânio exposto com parte do cérebro sendo devorado.

- Chegou tarde demais, meu filho! – disse o pai, deixando cair larvas pela boca.

Parou abruptamente ao som da buzina de uma moto. Estava atravessando a rua sem ao menos olhar para os lados. Seu pai sempre o advertia sobre sua falta de atenção, mas não o suficiente para corrigi-la. O motoqueiro parou a moto no acostamento para encará-lo, mas desistiu ao perceber que Marcos nem dava atenção. Na verdade o garoto encarava um velho que estava na porta de uma loja de chapéus. Conheceria aquele rosto em qualquer lugar. Aquela barba era inconfundível. O mesmo olhar sério e as mesmas roupas.

- Que surpresa encontrá-lo aqui – disse o velho, forçando um sorriso.

- Desculpe-me, mas eu te conheço? – questionou Marcos, tentando disfarçar.

- Evidente que não, mas eu o conheço muito bem. Conhecia seu pai também. Era um bom homem, que Deus o tenha...

- Que estranho... Não sei se deveria dizer isso, mas...

- Mas o que? Sonhou comigo?

- Como sabia disso?

- Apenas um palpite. Você não seria louco de se aproximar de um estranho dessa forma, se não fosse por um bom motivo, é claro.

- Não queria incomodá-lo. É que estou tendo alguns pesadelos muito reais, e o senhor aparece em quase todos. Qual a explicação para isso?

- Você procura respostas, e eu as tenho, simplesmente. Apenas pergunte. Esta é a sua chance.

- Que perguntas? Eu apenas queria que esses pesadelos acabassem. Não agüento mais!

- Acabarão no momento em que suas dúvidas se dissiparem. Apenas seja sincero e pergunte agora a primeira coisa que lhe vier à cabeça. Fique tranqüilo, pode ser qualquer coisa.

Marcos ficou pensativo. Lembrou-se do exato momento em que o caixão do pai chegou para o velório. Sua mãe estava na porta conversando com a irmã. Houve muita movimentação e certa comoção dos que ali estavam. O Tio Júlio ajudou a retira-lo, enquanto sua mãe pediu para que abrissem caminho. Lembrou-se da angústia que sentiu ao se dar conta de que não mais teria seu pai de volta. Olhou para o velho e percebeu que seus lábios vibravam inconscientemente.

- Como posso trazer meu pai de volta?! – ficou assustado com a própria pergunta, como se tivesse saído da boca de outra pessoa.

- Viu como não foi difícil? Agora as coisas estão melhorando. Essa sempre foi uma grande questão para você, meu jovem...

- Desculpe-me – interrompeu Marcos – Não foi isso que eu quis perguntar. Que bobagem... Não tem como trazer meu pai de volta.

- Você não me deixou terminar. Vou responder a sua pergunta. Para trazer o seu pai de volta, precisa colocar o corpo de outra pessoa, porém morta pelas suas próprias mãos, debaixo da sua cama na noite de Natal.

- Isso só pode ser uma brincadeira! – protestou. Esse foi o maior absurdo que já ouvi na vida. E mesmo se fosse verdade, não seria capaz de matar alguém. Sou apenas um garoto.

- Um garoto que não sabe a capacidade que tem. Ignora esses sonhos como se fossem normais de um menino assustado que não soube assimilar a morte do pai. Deseja ser um medroso pelo resto da vida, virar saco de pancada até a morte?

- Claro que não! É que... Tenho dúvidas se isso é mesmo verdade.

- Então faça! Só assim vai ter a prova do que estou dizendo. Agora eu preciso ir...

- Espere! E como meu pai vai voltar? Preciso ir ao cemitério desenterra-lo?

O velho apenas olhou para ele e sorriu. Tirou o chapéu debaixo do braço e seguiu até a esquina por onde desapareceu misteriosamente. Marcos voltou para casa e foi direto para o quarto. Pensou na conversa que teve com o velho e na possibilidade de trazer seu pai de volta à vida. Sabia exatamente quem precisaria matar. Sempre sofrera nas mãos de vários garotos da escola, mas um em especial lhe tirava o sossego. Um garoto magrelo, porém mais alto, que lhe agraciara com dezenas de apelidos dos mais maldosos possíveis, além de umas boas surras na hora do recreio. Nem precisava pensar num plano, pois já colecionava dezenas deles em sua mente, várias formas diferentes de arrancar-lhe a vida. Teria a oportunidade perfeita para isso. Na véspera de natal seria o seu aniversário. Apesar das rixas entre garotos, nenhum deles dispensava uma festa com bastantes doces e salgados. Seria a ocasião perfeita para se vingar e ao mesmo tempo conseguir um corpo.

Estavam todos lá, com suas asinhas de anjo escondendo suas verdadeiras identidades, verdadeiros demônios esperando apenas o melhor momento para praticar suas maldades. Como ele desejava matar todos, trancar todas as portas e janelas e por fogo na casa para sufocá-los e queima-los lentamente. Mas só precisava de um, o seu maior pesadelo, para o verdadeiro teste. Chamou-o para o seu quarto para mostrar sua coleção de HQs. Seu desafeto não recusou, nem ao menos estranhou o convite. Como um inocente indefeso entrou no cômodo repleto de quadrinhos. Seus olhos de demônio brilhavam a cada número. Raridades do Homem-Aranha, Hulk, Lanterna Verde... Não sabia por onde começar. Nunca havia visto tamanha coleção. Marcos, com a respiração tímida, lentamente fechou a porta. Olhou bem para a sua vítima, um garoto de corpo normal, apenas mais alto e astucioso. Seus olhos encontraram o bastão de beisebol que seu pai havia lhe dado há dois natais passados. Segurou firme, com as duas mãos, sentindo-as queimar tamanha a força que o comprimia. A respiração lenta logo se tornou confusa, desregular, descompassada. Estava atrás dele, a pouco menos de um metro, sua sombra se projetando sobre a cama, deformada, demoníaca. Com a porta fechada, apenas ouve-se um estalo seco, o som do bastão afundando o crânio do garoto. Em seguida, o som quase inaudível de um corpo pequeno tombando sobre o carpete.

Estava feito. Sua mãe não estava em casa graças aos protestos de um garoto que não queria ser envergonhado. Longe disso, estava então satisfeito. Puxou o corpo para debaixo da cama, trocou o carpete manchado de sangue e voltou para a festa como se nada tivesse acontecido.

Sua mãe queria levá-lo para passar o Natal na casa da tia, mas ele fingiu estar doente para ficar sozinho em casa. A noite caiu depressa. Os vizinhos festejavam felizes, soltando fogos. O barulho era infernal. Mal conseguia dormir. Imaginava mil coisas. Pensava no corpo que escondia debaixo da cama. Podia até sentir o cheiro do sangue escorrendo do crânio. Assustava-se com qualquer barulho, latas caindo, copos quebrados, os fogos...

- Será que vai dar certo? – disse, para si mesmo.

Ao badalar da meia noite, uma chuva de fogos manchou o céu noturno. O som era insuportável, era como se os fogos estourassem dentro do seu ouvido. Tudo parecia normal, nenhuma movimentação estranha lá fora. Esperou cinco, dez, vinte minutos e nada aconteceu. Correu para a janela e viu um grupo de jovens bêbados abusando de uma garota na praça. Deveria estar bêbada também, pois não esboçava qualquer reação, apenas respondia com gargalhadas. Sentiu ódio do velho. Fez exatamente o que ele havia dito, e a única coisa que ganhou foi um corpo debaixo de sua cama. Por causa dele estava perdido. Quando a mãe do garoto descobrir o que aconteceu, vai mandar prende-lo na hora, isso se não encomendar a sua morte.

Voltou para cama preocupado. E quando sua mãe descobrir? Difícil imaginar qual seria a reação dela. De qualquer forma não havia como escapar de uma punição. Poderia fugir, mas com o pouco dinheiro que possuía, mal dava para atravessar a cidade. Quando acabaram-se os fogos, o silêncio foi total. Marcos já estava resignado quando escutou algo vindo debaixo da cama. Parecia um grunhido de um animal. Assustado, abaixou-se para ver. Viu uma possa de sangue se formando ao redor do corpo, mas havia outra coisa lá, algo se mexendo. Estava muito escuro. Ele se afastou, com repulsa. Pegou uma lanterna, e de longe, apontou para o corpo. Soltou um grito ao perceber que o corpo estava todo despedaçado e que uma coisa estranha, que em nada se parecia com um animal, estava comendo a carne. Tinha uma cabeça humana, apenas um braço e não tinha pernas. Arrastou-se em sua direção, com um dos olhos vazando da órbita, deixando um rastro pútrido de decomposição.

- Filho, meu querido filho. Atendendo ao seu pedido, eu voltei.

Marcos ficou horrorizado ao ver o seu pai, em completo estado de decomposição, com apenas metade do corpo, arrastando-se com um pedaço de carne na boca.

- Pai, o que houve com o resto do seu corpo?

- Eu precisava de um corpo adulto para ter o meu de volta, mas como você me trouxe uma criança... Porém não se preocupe, quando matarmos a sua mãe, terei o resto do meu corpo de volta.

- Claro, meu pai, claro... – disse Marcos, feliz por ter recebido o melhor presente de Natal de sua vida.

Um feliz natal a todos os amigos escritores e leitores do Recanto das Letras.

Cleiomar Queiroz
Enviado por Cleiomar Queiroz em 24/12/2013
Código do texto: T4624260
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2013. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.