O delicado sabor das fêmeas fatais (final)

Miss Millie e Blue Hair demoraram três dias para encerrar os preparativos da viagem. Blue Hair saiu com o carro Ford Fox e voltou de táxi, fiquei com vontade de perguntar que fim ela havia dado ao veículo, mas me calei, sabe-se lá o que passaria naquela cabecinha colorida ao ser indagada assim de repente, sem mais nem menos. Poderia muito ver na pergunta o germe das segundas intenções.

Numa tarde de quinta-feira lotamos o Cherokee de malas e eu as levei ao aeroporto. Esperei que o avião, com destino a Londres, levantasse voo, e só depois retornei à chácara. Já eram mais de oito horas, a noite estava escura, o céu nublado. Sentei-me na sala de estar e como se fosse o dono do mundo me servi de uma dose de uísque. Naquele momento decidi que não comeria mais carne humana, tinha uma casa imensa à minha disposição, dinheiro a rodo para gastar no bem-bom. Pus o copo de bebida em cima da mesinha de centro e subi para o meu quarto em busca de um bom livro. O plano era ficar enchendo a cara e lendo até altas horas, curtindo a sensação de ser dono absoluto do próprio nariz. Escolhia um dos livros recém-comprados quando um alarma qualquer tocou em minha cabeça, não saberia dizer exatamente o que aquilo significava, no entanto como que hipinotizado dirigi-me ao guarda-roupa, abri-o e recuei abruptamente, horrorizado: Blue Hair, a para sempre maldita Blue Hair, havia roubado minhas roupas feitas sob medida. Levou tudo, até mesmo as cuecas. Até as cuecas. Um fogo de ódio ardeu em minhas entranhas, seria capaz de matá-la sadicamente naquele instante. Voltei para a sala, sentei-me, dei um bico no uísque – a bebida estava amarga como fel. Eu tinha que descontar a minha fúria em alguém, na impossibilidade de torcer o pescoço de Blue Hair. Retornei ao Cherokee e dirigi até a cidade, fiquei bestando pelas ruas desertas, ouvindo trovões distantes, os relâmpagos rasgando tudo, os terríveis estalos dos raios – então decidi retornar à casa. No caminho parei num posto de gasolina e enchi o tanque, paguei, continuei a viagem – logo os faróis do carro iluminaram a silhueta de uma jovem vestindo minissaia. Parei o Cherokee no acostamento da rodovia, abri a porta, ela entrou. Era uma prostituta de seios do tamanho de laranjas, tinha cabelos castanhos até os ombros, usava franjinha. Com exceção dos cabelos, ela me lembrava muito a ladra Blue Hair. Abri a porta, ela entrou, acomodou-se no banco do carona.

– Cobro cem paus prum programa simples – ela disse sem rodeios.

– E com benefícios? – indaguei.

– Benefícios? Que diabo é isso? É o seguinte, cara: como disse, trepada, cem paus, chupada, mais trinta. Enrabada, mais oitenta. Motel por sua conta, é claro.

– Quero serviço completo. Eu moro numa chácara aqui perto, não tem problema?

– Você me trás de novo ao posto?

– Claro.

Ela estendeu a mão: – Pagamento adiantado.

Dei-lhe três notas de cem.

– Não tenho troco – ela disse.

– Sem problemas – eu respondi –, afinal vou te comer inteirinha.

Rimos, cada qual feliz do seu jeito. Grossos pingos de chuva pipocaram no teto do carro.

– Essa noite vai ser um inferno – ela disse.

– Depende muito, para mim vai ser um paraíso – eu repliquei. – Como é o seu nome?

– Brigite.

– Nome de guerra?

– Pior que não. Escuta, você tem lá na sua casa alguma coisa pra gente mastigar? Eu tô morrendo de fome.

– Tenho sim – eu disse. E abri um sorriso sem que a garota percebesse. Sentia uma estranha sensação no corpo, uma adrenalina absurda. Brigite seria a primeira das muitas garotas que poderia ser preparada ao meu bel-prazer. Eu iniciar minha carreira solo no campo do canibalismo. Poderia fazer pratos artísticos, finíssimos – ri novamente, lembrando-me de como os pratos de Mr. Seth Moore eram grosseiros. Seios à milanesa, mas que coisa mais ridícula! Pisei no acelerador com o corpo estremecendo de excitação – e o Cherokee afundou nas entranhas da noite tenebrosa.

Já faz quinze dias que abati a garota Brigite. Não consegui comê-la todinha, no grande refrigerador da cozinha ainda tenho porções de coração, fígado, pulmões, rins e muita carne cortada em fatias fininhas e acondicionada em utensílios de plástico, essas magníficas vasilhas com tampas que se fecham hermeticamente apenas com pressão dos dedos. Não sei por que, mas comer o corpo de Vandinha não me tem proporcionado o grau máximo de excitação, apenas sinto a satisfação de estar me alimentando com o mais excelente dos tecidos musculares. Orgasmos múltiplos, verdadeiros, só os tive no momento em que esfaqueava Brigite e sentia o sangue espirrar em meu rosto, mãos, braços e peito. É isso. Tenho o pressentimento de que os orgasmos só irão se repetir quando eu assassinar outra pessoa. Mas não vou enterrar os restos de Brigite, isso não. Como dizia minha vó – nos tempos dos pardais, ratos e cobras –, só é verdadeiramente justificável matar quando aproveitamos a carne como alimento. Então o corpo de Brigite vai durar algum tempo, visto que vou comendo-o em pequenos bocados. Enquanto não acabar com toda a carne, não sairei novamente à caça. É por isso que fico muito tempo em meu quarto zapeando a tevê a cabo sem conseguir encontrar alguma coisa interessante na vasta programação, incapacitado de me interessar pelos livros recém-adquiridos que tanto me seduziram quando os vi expostos na livraria. Rolo na cama por várias horas e, cheio de tédio, pego o caderno e caneta e vou registrando minhas memórias para que um dia você, eventual leitor, saiba que existiu num canto remoto destes brasis um sujeitinho bem singular...

(Quero agradecer a todos que acompanharam o desenrolar dessa novela, em especial à Maria Santino que teceu comentário em todos os capítulos. Muito obrigado, garota!)

Joao Athayde Paula
Enviado por Joao Athayde Paula em 16/12/2013
Reeditado em 16/12/2013
Código do texto: T4613797
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