CAPÍTULO III- A PROFANAÇÃO DO TEMPLO
 
  
Tiago de Molay acordara naquela manhã com o coração oprimido por uma inexprimível angústia. Parecia que uma mão de ferro o apertava toda vez que ele tentava pensar naquilo que o incomodava. No entanto, se alguém lhe perguntasse o que era  ele não saberia exprimir o motivo daquele mal estar que o acometia naquela madrugada da sexta-feira, 13 de outubro de 1307.
Sem dúvida, sua angústia tinha a ver com a situação perigosa em que estava envolvido. Sabia que o cerco em torno do Templo estava se estreitando. O Papa não dissera mais nada com respeito á investigação que ele havia solicitado. As maledicências a respeito dos rituais heréticos e do comportamento promíscuo que os membros da Ordem praticavam intramuros estavam sendo divulgadas por todas as dioceses, conventos, Ordens monásticas e outras instituições da Igreja, não só na França, mas também nas preceptorias de ultramar. De Molay recebera informes preocupantes a respeito, dando conta de que a campanha de difamação contra o Templo já chegara a Aragão, Portugal, Castela, Inglaterra e Alemanha.
Até na Sorbonne, onde a nata da intelectualidade da França se concentrava, essas notícias já circulavam. Os doutores em teologia e direito, a maioria composta de prelados da própria Igreja, comentavam, pelos cantos, sobre a estranha liturgia que diziam ser praticada pelos Templários em seus rituais de iniciação. Pierre Dubois, o advogado que Nogaret contratara para “trabalhar” essas informações, era um dos mais conhecidos e respeitados professores daquela famosa universidade.E segundo ele, tais práticas eram francamente heréticas e afrontavam a moral que a fé cristã tanto empenho havia feito para disseminar pelo mundo. “ E o pior de tudo”, dizia ele, “que isso acontecia justamente dentro de uma Ordem religiosa que tinha por missão a defesa da própria fé. Para isso ela havia sido constituída. Para isso fora dotada, para isso fora aquinhoada com tantas regalias e benesses, que a nenhuma outra organização, dentro da cristandade, havia sido. E o que faziam os Templários, com todos esses benefícios? Simplesmente viviam como nababos, enquanto o povo passava todo tipo de dificuldades. Tinham imunidades e privilégios. Recebiam rendas enormes e não contribuíam com nada para o erário público. Não podiam ser tributados, nem processados, nem interpelados por crime algum que seus membros praticassem. Tinham um direito próprio, que aplicavam entre eles e não podiam ser alcançados pelos tribunais civis. Disso resultava que acabavam sendo imunes e não podiam ser atingidos por nenhum poder além da própria censura que aplicavam a si mesmos.
“Os Templários”, vociferava Pierre Dubois, em suas diatribes na cátreda que professava na famosa universidade, “constituem uma confraria nefasta e perigosa, que macula a fé cristã com a prática das mais odiosas heresias e além disso”, frisava ele, “ mantém um poder paralelo dentro dos reinos cristãos, e ao que tudo indica, eles mesmos pretendem fundar um reino universal por eles comandado, reino esse que submeteria ao seu poder o Papa e todos os demais reinos cristãos.” Em outras palavras, Dubois estava, nada menos, nada mais, acusando a Ordem do Templo de tramar uma conspiração para assumir o poder mundial.
Quanto ás provas, Dubois não se fazia de rogado. Ele as apresentava como se estivesse num tribunal.
─ Os Templários criaram para si mesmos uma religião particular. Eles abjuraram a fé cristã em favor de uma religião que mistura elementos de judaísmo, islamismo e heresias cristãs já condenadas pela Santa Sé.
Se algum dos ouvintes tinha a curiosidade de saber mais detalhes sobre essa estranha religião que a Ordem do Templo praticava, ele parecia ter tudo na ponta da língua.
─ É uma reliigão semelhante áquela que os heréticos albigenses praticavam ─ dizia Dubois.─ Uma religião que nega a divindade de Jesus Cristo, afirmando que Nosso Senhor não era o filho de Deus, mas sim um profeta comum, como Moisés ou Elias, escolhido por Deus para ensinar uma doutrina. Essa doutrina, como sabem ─ enfatizava Dubois ─ é a mesma que os muçulmanos pregam. Como todos sabem, os infiéis não creem na sagrada concepção, nem na virgindade de Maria, nem na ressurreição de Nosso Senhor. Eles consideram Jesus Cristo um mero profeta, menor inclusive que Maomé, o profeta deles.
─ E quanto aos judeus ─ completava Dubois. ─ Sabemos que eles renegaram Cristo e o puseram na cruz para morrer. Nunca o aceitaram como o Messias prometido nas suas escrituras. E, além disso, eles têm estranhas práticas, que são mantidas em segredo, para evitar que se saiba o quanto insidiosas são. Suas missas negras, seus Sabaths, seus rituais satânicos e heréticos, as bruxarias que fazem, tudo isso já é de conhecimento de todos.
─ Além do que, são uns miseráveis usurários e agiotas, que nada fazem se não for por dinheiro ─ emendava ele. ─ Todo judeu devia ir para a fogueira ─ era sempre o fecho do discurso.
Por fim, completava:  Os Templários haviam se tornado hereges, como os judeus e os muçulmanos. Além de imitarem os judeus praticando a simonia, a usura e a agiotagem, também pilhavam e tiranizavam as pessoas que tinham a má sorte de tornarem-se vassalos deles. “Foi assim que amealharam a imensa fortuna que o Templo possui” afirmava Dubois.  “Isso fez dos Templários um bando de tiranos arrogantes, que desdenham das autoridades seculares e eclesiásticas, a ponto de terem criado, eles mesmos, uma religião própria, que substitui os sacramentos instituídos pela Santa Madre Igreja por ritos estranhos á fé cristã.”
Dubois sabia que era este último ponto que mais tocava na sensibilidade daqueles monges que estudavam na Sorbonne. A idéia que as suas atribuições estivessem sendo exercidas por monges não ordenados, como acontecia como os capelães templários e com seus próprios comandantes, feria a fundo a vaidade deles. Afinal, somente padres devidamente ordenados podiam executar os sacramentos instituídos pela Igreja. Aquela história de que os preceptores e os monges capelães dos Templários estavam ministrando tais sacramentos e até confessando e concedendo perdão aos Irmãos pelos pecados cometidos, revoltava os ciumentos membros do clero, pois além das restrições que eles já tinham em relação aos privilégios concedidos ao Templo, privilégios esses que suas respectivas Ordens não tinham, ainda tinham que conviver agora, com essa invasão de competência.
Pierre Dubois dera o tiro certo, no lugar certo, para provocar uma ferida que ficaria aberta. No momento exato, Filipe e seus ministros saberiam explorar bem a vaidade ferida daqueles homens ciumentos. Esse momento finalmente chegara.
 
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      As ruas de Paris estavam silenciosas naquela hora. Eram cerca de quatro hora da manhã. Por isso ninguém viu, ou ouviu, a marcha forçada dos arqueiros do rei, com suas botas de grossas solas de couro, repicando nas pedras do calçamento das ruas de Paris. A tropa armada saiu célere pelos grandes portões do Hotel de Ville, desembocou, como uma grande enxurrada, na Rua do Templo, subiu, com passos largos e marciais a rua inclinada que saia do páteo do Hotel de Ville e terrminava no portão do magnífico conjunto de edifícios que constitua o bairro do Templo. Ali ficava a sede da poderosa Ordem dos Pobres Cavaleiros de Cristo e do Templo do Rei Salomão.
A sede de Paris era o coração e o cérebro do Templo[1] Dali saiam as ordens para todas as preceptorias da Europa e Ultramar. Para liquidar com aquele organismo grandioso, que era Ordem do Templo, Filipe e seus ministros sabiam que a degola tinha que começar pela cabeça. Extinta essa, todo o corpo morreria por si mesmo, dissera Guilherme Nogaret, o fiel ministro dos selos reais, que muita gente dizia ser o verdadeiro governante da França.
     Foi por isso que ele mesmo, á frente de um batalhão de soldados reais, comandados pelo seu capitão, o Cavaleiro Alain Perreiles e o delegado do rei, Reinald de Royes, quis cuidar, pessoalmente do cas[2]
      A madrugada estava fria e úmida naquela sexta-feira, em Paris. A neblina que subia do rio Sena cobria a Cité com um manto de fumaça branca, que aderia nas cotas de malha dos cavaleiros que comandavam os pelotões e se transformavam em gélidas gotas de água que iam escorrendo pelas armaduras deles. Os soldados que iam a pé apertavam o passo para seguir o trote dos cavalos, e na sua respiração, forçada pela marcha e pela geografia do terreno, em aclive, bafejavam no ar pequenas nuvens de fumaça, que se misturavam á espessa neblina que cobria todo o percurso.
     Ao lado do capitão dos arqueiros, trotava, impassível, o garboso cavaleiro Guilherme de Nogaret. Finalmente, as maquinações que perpetrara contra a Igreja e sua principal aliada, a Ordem do Templo, iam atingir o seu objetivo final. Esse seria o golpe fatal nessa guerra surda e suja que ele próprio travava contra a Igreja e tudo que ela representava.  
       Era a hora prima quando os arqueiros de Perreilles ocuparam, sem nenhuma resistência dos cento e quarenta Templários que se encontravam no grande e vetusto edifício, as dependências do Templo. Ainda sonolentos e perplexos, foram todos detidos e acantonados no pátio do castelo, sob a mira das mortais balestras dos arqueiros do rei.
        Tiago de Molay, o Grão-Mestre da Ordem, estava na capela, juntamente com o preceptor da Normandia, Godofredo de Charney, fazendo as orações da manhã, quando o próprio Nogaret, junto com o delegado do rei, Reynald de Roye e mais quatro arqueiros, irromperam no pequeno e sombrio aposento, ornamentado apenas com uma cruz de madeira e iluminado por algumas velas. As sombras fantasmagóricas dançavam na parede e o ambiente, já por si mesmo soturno e constrangedor, se tornou ainda mais pesado, quando Nogaret, com as mãos cruzadas nas costas, adentrou no recinto e disse, com uma voz metálica e fria como o tempo que fazia lá fora:
    – Por Ordem do Rei e da Santa Igreja o senhor está detido, Monsenhor de Molay. E o senhor também, Monsenhor de Charney. Aconselho-os a se entregar sem nenhuma resistência.
     O já idoso Grão-Mestre, ajoelhado no rústico piso da capela, levantou-se com alguma dificuldade. Não parecia haver surpresa em seus olhos.
    – Sob que acusação, Senhor de Nogaret?
    – Terão a oportunidade de responder a elas perante o tribunal do Santo Ofício – respondeu Nogaret, impassivelmente.
    – Quer Vossa Senhoria dizer que a Igreja e o Santo Padre estão de acordo com esta ação bárbara que vocês estão praticando? – perguntou, desta vez com surpresa, o Grão-Mestre.
    – Não estaríamos aqui para realizá-la se não estivessem – respondeu Nogaret.
    Não se tem notícia de qualquer outra palavra, ou de nenhum gesto de resistência que Tiago de Molay, ou Godofredo de Charney, tenham feito para resistir á prisão. Escoltados pelos arqueiros do rei, comandados pelo inefável Perreilles, o outrora poderoso Grão-Mestre do Templo e o preceptor da Normandia foram imediatamente conduzidos á masmorra do castelo do Templo, onde próprio Molay, em várias oportunidades, mandara confinar os Irmãos que descumpriam os regulamentos da Ordem. 
    Aquela sexta-feira, dia 13 de outubro de 1307, ficaria marcada na História como um dia sinistro, no qual o mal estaria a solta e muitas coisas ruins poderiam acontecer. O imaginário popular consagrou essa data como sendo um dia azíago e funesto. Pois nesse dia, a poderosa Ordem do Templo começou a ser desmontada e um dos mais rumorosos processos de todos os tempos se iniciava. E também um mistério que ainda hoje, oito séculos depois, não se esgotou no imaginário popular.
 
 
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NOTAS.HISTÓRICAS

[1]
Mapa de Paris medieval, com a localização do bairro do Templo. Fonte: Medieval Mapas, History Medren.
[2] Alan de Perreiles e Reinald de Royes, oficiais de polícia durante o reinado de Filipe, o Belo. Estes dois nomes são citados nos autos do julgamento dos Templários, como sendo os oficiais que comandaram a ação de culminou com a prisão dos Templários em Paris.